/ / / t « \ o OF I ^ \ / o OF / N. / \ SI (Hi O r O Of CA'"^'~o>"« -J ?r / \ / \ / / \ \ y 3 Ml X y ESTUUOS DE HISTORIA DA ARTE MEDIEVAL A. NOGUFIRA GON^ALVES ESTUDOS DE HISTORIA DA ARTE MEDIEVAL / E PA R T IJ R Edigoes Portugiiesas de Arte e Turismo, L.^" COIMBRA "1^ 19 80 ''/^^ Reunem-se neste volume breves estudos da epoca medieval, escritos conforme as circunstdncias iam dando motivo e, por isso, com maior ou menor profundidade e extensao. Tiveram os de Santa Cruz um aspecto proprio; escritos uns ante- rior mem e as obras de restauro e consolida^ao, as qua is os vieram a confirmar, outros de estudo e interpretagao dos aspectos novos que as mesmas faziam surgir. O artigo inicial — «IgreJa romdnica de Santa Cruz» — foi publi- cado em 1934 no semandrio «Correio de Coimhra». Sentimos con- tentamento em reconhecer que nada de essencial ainda hoje tem de ser alterado. Imprime-se agora tal como saiu naquele jornal. Foi uma revelagao, tendo o imediato aplauso do Prof. Doutor Antonio de Vas- concelos e do Prof. Doutor Vergilio Correia, cada um mestre no seu sector. Com o artigo de 1979 completa-se o que ha a dizer de fundamental da epoca romdnica e manuelina do mosteiro; mas ndo deverd ser o ultimo. Extraimos o artigo «lgreja de Lourosa» do volume do «Inventdrio Artist ico do Distrito de Coimbra» para onde o escrevemos ; pois que foi um daqueles inteiramente nossos que o prematuro falecimento do Prof. Doutor Vergilio Correia nao I he permit iu tragar, o que I he teria sido muito agraddvel, porquanto fora ele o primeiro a revelar por escrito esta igreja. O estudo da «Arte medieval em Coimbra», redigido inicialmente para introdugao do inventdrio artistico do distrito de Coimbra, saiu extenso em demasia para esse fim, pelo que resolvemos escrever um menor. Ficou de lado. Instados por quem o viera a ler, resolvemos publicd-lo no «Didrio de Coimbra», em 1972, onde, amavelmente, se Ihe deu uma disposigdo capaz de ser coleccionado e posto em volume, como fizeram diver sos le it ores. Destacamos a parte medieval. Os outros sao o exercicio comum de quem estuda e escreve. II EVOCACAO DA OBRA COIMBRA NA EPOCA MEDIEVAL (conferencia) Secuio onze, ano de mil e sessenta e quatro, nove de julho — data acima de todas as datas, a mais memoravel para a cidade de Coimbra. Seis meses, a come^ar no fim do rispido Janeiro, eram passados em assedio, quando a negrura da fome, o panico de uma derrocada de muros, a extrema miseria e o desalento extreme entregaram a Alme- dina nas maos de Fernando Magno. Conservadas as vidas dos habitantes, nao foi, para a maior parte, conservado o que de mais precioso ha na vida humana, a liberdade: 5.050 ficaram prisioneiros. Para o cerco veio a acompanhar o rei um grupo de notaveis que o Cronicon Complutense enumera, tomando um tom de epopeia nao costumado das suas breves ementas: veio a rainha D. Sancha, o bispo iriense D. Cresconio, Vestruario da se de Lugo, Sesnando bispo de Viseu, recentemente conquistada, Soeiro de Mondonhedo, o abade do mosteiro de Guimaraes, o de Celanova e muitos filhos-de-algo. Das magoas que desabaram sobre os vencidos nada nos e conhe- cido; para eles, como em todos os tempos, so houve uma larga, espessa e grosseira pedra tumular; mas desconhecida tambem nos e a esplen- dorosa hora triunfal dos cristaos. Se nada diz a secura dos cronicons em que os feitos da epoca nos chegaram, a secular experiencia humana basta lembrar a tomada guerreira de uma cidade para que todos os horrores e todos os deh'rios de triunfo ocorram. - . Um nome de um homem superior, inteligencia larga e de acgao fecunda, logo a seguir se levanta com tal grandeza que, atraves do esquecimento e da desmedida distancia dos seculos, nos surge como um dos semi-deuses fundadores de nagoes; um homem que vestindo, como Minerva, a armadura de guerreiro, tinha nas maos a oliveira da paz. Esse nome e esse homem traduzeni-se na breve palavra — Sesnando. Poeira de poeira de seus ossos temo-la presente. Nem tudo o tempo leva; quando as vidas foram nobilissimas, alguma coisa delas se vai transmitindo, como um eco, de seculo a seculo e, muitas vezes, uma mao-cheia de p6 do seu corpo assiste a evolugao da obra que suas maos criaram. Em frente de nos, do outro lado deste claustro, esta colocada provisoriamente a osteoteca onde, ao fim do seculo quinze, encerraram o que havia de seus ossos. Evocar a conquista definitiva de Coimbra em frente do humilimo resto do que foi o primeiro entre os grandes a quern a cidade deve venera^ao e agradecimento, nao e pequeno prazer para mim que, nesta serie de conferencias, evoco a cidade medieval. Se, na tomada de Coimbra, no fim do seculo onze, comega a cidade de hoje propriamente dita, se mil e sessenta e quatro e o ano da fundagao da cidade moderna e se, desde entao, o tempo comegou a forte e infindavel tessitura de continuidade de vidas que nos parece que sem quebras, cada vez mais larga, cada vez mais rica, como nobre brocado de ouro, sempre ha-de ondular sobre estas floridas colinas, de longe, tao recuadamente que parece sonhar-se pensar em tal, a vida humana tem passado no solo que calcamos. Nesta serie de conferencias ja se falou das condigoes naturals que fizeram que este monte fosse lugar eleito para cidade; como dos tempos grandiosos, e tao grandiosos que passados tantos centenios, deflagradas tantas guerras, amontoadas tantas ruinas, ainda ha deles testemunhos tao fortes que acabamos de os julgar recentes, tratando-se de Coimbra romana, da cidade de Eminio. Da epoca que primeiramente vou falar, sao quase nulos os restos materials e mais que parcos os documentais. Parece que o mesmo nevoeiro, que em certas manhas se estende sobre Coimbra, se amon- toa em densas camadas no passado, ocultando, a sua cerragao, a larga paisagem humana e so, quando se esgarga, aqui ou alem se descortina um que outro gesto dos actores da vida antiga ou confusamente alguma figura de perfil amortecido. 8 Voltaremos a desgragas e lamentos, que uma c outra coisa sao OS fios mais vulgares na tela e na trama do pano das idades. Alvorecia o seculo quinto. lam caindo, feridas quase sem gloria, as aguias dos emblenias iinperiais. Desabava a torrente dos povos Lucerna romana aparecida no patio da Universidade barbaros, alastrando em ruinas e morticinios. Em 409 atravessava a grande muralha natural dos Pireneus a primeira onda, a dos suevos, alanos e vandalos. O panico adensava-se sobre os hispano-romanos: eram fortifi- cadas, em acelerada obra. as cidades que, crescidas na paz romana. se encontravam indefesas. integravam-se nas muralhas os restos dos templos abandonados, mesmo as estatuas dos grandes deuses, lapides consulares e lapides fiinebres; so era necessario que a obra crescesse, se alargasse a couraga e detras dela os coragoes se sentissem menos oprimidos. Outra lucerna romana do palio da Universidade O mesmo aconteceu com Eminio-Coimbra. Na base da Torre de Almedina, num parainenlo descoberto ao Arco da Traigao e nou- tros pontes ha grandes blocos aparelhados, apressadamente ali postos, e que a edifi'cios classicos pertenceram. Nada se sabe, porem, o que se deu com esta cidade mas tudo convence que a sorte miserrima que locou a Conimbriga-Condeixa foi partilhada por Eminio-Coimbra. A regio desolatur de Idacio deve abrange-ia. 10 Desconhecido nos e o que tivesse sido para ela o dominio dos suevos, em cujo reino ficou. Pertence, porem. ao periodo das invasSes uina das lendas, a mais formosa, com que se querc interprelar o brasao de Coimbra. Infe- lizmente nao tern base alguma, mas nem por isso devem, o brasao e a lenda, deixar de ser menos caros aos conimbricenses. Cindazunda nao foi figura real, contudo, por isso mesmo, mais sobressai como simbolo desta cidade. Ela, a graga e a beleza, entre o leao e a serpe, e a vegetagao natural que, devastada pelo furacao ou pelo calcar das hordas humanas, se reergue em novas e magnificas primaveras; ela e a eterna gentileza das raparigas de Coimbra levantando acima de todas as lutas a sua graga pacificadora e trazendo, nas tagas de hime- neus fecundos, a perenidade de vida sobre esta rocha em que, num tempo velho de milenios, o primeiro lar se estabeleceu numa cabana ou num abrigo feito pela natureza. Nada sabendo o que teria sido para a cidade o dominio suevo, menos escuridao, todavia, oferece o dos visigodos. Eminio-Coimbra foi alguma coisa de valor. Infelizmente nao e a construgao erguida que o aclara. Pedras ha que sao desse tempo, em numero tao pequeno que nem meia duzia chegam a ser. Sao pedras lavradas de motivos populares, geome- tricos, em escultura cavada, que noutros locais podiam ser de tempo mais avangado mas que, consideragoes diversas convencem aqui a que seiam visigoticas. Talvez correspondam a edificios anteriores nos mesmos locais em que foram encontradas, mas sera isto sempre duvidoso. Nao sao pois as pedras esse indicador. Em Condeixa tem aparecido em maior numero e ha lapides fiinebres que Coimbra nao tem. Por esse lado Conimbriga-Condeixa sobreleva a Eminio-Coimbra. A supremacia de Eminio-Coimbra sobre Conimbriga-Condeixa patenteia-se pelas moedas visigodas cunhadas com o nome de Eminio; sao do tempo de Recaredo, de Liuva, de Sisebuto, de Chintila. Mas a verdadeira prova de supremacia manifesta-se em ter compartilhado com Conimbriga-Condeixa a residencia dos bispos conimbricenses. O primeiro bispo da diocese que conhecemos e Lucencio, no tempo ainda dos Suevos. O bispo que se Ihe segue, ainda na mesma epoca, e Possidonio que se assina, no terceiro concilio de Toledo, como bispo eminiense, e que e o linico que aparece assim designado. Que quere significar tao insolita denominagao? 11 Possidonio assinou-se eminiense porque residia em Eminio, antiga paroquia de Conimbriga; os outros continuaram a designa?ao pri- mordial e canonica. Eminio-Coimbra foi a residencia dos bispos no tempo suevo e visigodo, se nao em continuidade pelo menos intermitentemente, e isso explica-nos como mais tarde o nome de Coimbra passou da Alme- dina de Condeixa para a Almedina de Eminio. Apaziguados o leao e a serpe, florescia Cindazunda-Coimbra emergindo da limpida taga do Mondego. Nao Ihe tinha sido, porem, escrito nas linhas das maos um destino proximo em que, dominando da sua colina, levantasse continuamente um ramo de oliveira como cetro. Os seus vestidos haviam de tomar uma cor de carmim, nao porque a purpura se Ihe suspendesse dos ombros gentis mas porque vidas generosas tantas vezes haviam de ser imoladas a sua volta que o sangue transbordaria da taga que so a festejos devia ser consagrada. Clareava a manha do seculo oitavo; sobre os montes da Penin- sula ergueu-se sinistramente, tinto de sangue, o crescente mugulmano, e debaixo do seu poder ficou Eminio-Coimbra. Novos senhores foram estes, de grande personalidade, com uma arte caracteristica e esplendorosa; nada porem resta desse novo dominio na cidade. Contou lentamente os anos a clepsidra do Mondego e, quando mais de um seculo se tinha esgotado, no ultimo quartel do seculo nono, a antiga Eminio-Coimbra entrou na posse do rei leones Afonso III, a quem se deu justificadamente, considerados os tempos, o cognome de Magna. Foi nessa ocasiao que nesta cidade, diademando-lhe o alto da colina, se fixaram as letras de ouro pelas quais, ate ao fim dos tempos, a beleza, sempre renovada em juventude, da princesa de direito de nascimento, Cindazunda, ficou a ser conhecida; formam essas letras a palavra — Coimbra. Acontecimento e este de valor tal para nos, habitantes da cidade, que nao me permite passar adiante sem uma rapida justificagao. Vindo OS bispos da diocese conimbricense, na epoca dos suevos, fixar resi- dencia em Eminio, deviam te-la continuado, pelo menos intermitente- mente, na dos visigodos. Atraves das fases primordiais da expansao da monarquia asturo-leonesa, aquilo que marcava, na recordagao da velha topografia, os pontos administrativamente eminentes na antiga 12 lareira crista, nao era a divisao cesarista, erani sim as sedcs episcopais. Afonso Magno reconquistou a terra ate ao Mondcgo mas ja, tempo antes da conquista, certas ses estavam dotadas de bispos titulares que residlam no territorio cristao e que eram como que o sinal dessas terras, por direito divino, deverem pertcnccr ao novo reino. Eminio fora a ultima sede do bispado conimbricence, era a pri- meira a ser retomada; tinha por si, a posigao eminentemente militar, com largo fosso natural, o Mondego; Conimbriga-Condeixa. dimi- nuida na epoca visigoda, abandonada do rio de aguas que o aqueduto Ihe levava, e que agora corriam pelo leito natural, agonizava no dominio mugulmano, acabando de passar o aglomerado da almedina para a encosta e vale contiguo de Condeixa, outrora certamente bairro pobre da grande cidade. Havia um bispo, antes da conquista, que se designava de Coimbra e que era Nausto, que morreu muito tarde e em Galiza; teve ele um outro, que diriamos hoje, auxiliar, Froarengo, residindo nesta cidade reconquistada. A oscilagao momentanea ve-se em certas passagens de cronicons. Creio poder dizer: quando a povoagao foi tomada ainda era conhecida por Eminio; na organiza^ao administrativa, a que forgosamente se devia logo proceder, na acomodagao do bispo conimbricense ja exis- tente a antiga diocese, na assinagao de uma sede catedratica e epis- copal, que forgoso foi fixar em Eminio, fez-se adopgao do nome de Coimbra; e, bem consideradas as coisas, vemo-nos obrigados a aceitar que a nova denominagao se tomou, nao pela introdugao lenta mas por um acto de comum acordo dos dirigentes e aprovagao suprema do rei. Tudo se devia ter passado nos anos mais proximos a recon- quista. O tempo, pouco mais de um seculo, em que a cidade esteve na posse dos cristaos, nao foi de tranquiiidade: passou e repassou de dominadores. Dessa epoca nao ha restos materiais conhecidos, posto que haja documentos com referencias a edificios, como terei ocasiao ainda de dizer. Estamos chegados ao fim proximo do califado de Cordova. A marca-io de um selo indelevel e heroico aparece-nos a figura do grande Almangor. Nao ha tempo para descrever as suas correrias nem o livido panico que oprimiu as almas dos cristaos. Direi so que na de 987, que teve por fim o arrasamento de Leao, Coimbra foi tomada e despovoada, e assim permaneceu sete anos, ate que, em 994, a repo- voaram os mugulmanos. 13 Causa certa magoa ver passar os exercitos, durante cinco seculos, assolando a vez esta cidade. E necessario correr a um tempo em que florescessem as artes da paz. Recordarei a reconquista de Fernando Magno que inicialmente foi colocada neste discurso como padrao que marcava o comego da cidade moderna. Encontramo-nos de novo em 1064. Fragmento do altar da capela de Mirleus. Sec. xii Nao irei desfiar as acQoes heroicas pois que nao e esse o fim que me propus. Nao me referirei tao pouco a obra de D. Sesnando. Lembrarei so a vinda do bispo D. Paterno, por 1080, e seis anos depois a organizagao da vida capitular, organizagao desvirtuada por aqueles que, dominados por ideias literarias, so veem a cria^ao da escola cate- dralicia, arrancando-a do seu quadro natural e trazendo-a a um pri- meiro piano que Ihe nao compete. A vinda do bispo residencial. a organizagao da vida comum cano- nical Irouxeram para o centro da vida civil os interesses espirituais que se dispersavam e se repartiam principalmente pelos conventos de Vacari^a e Lorvao. Criado o centro tradicional de interesses econo- 14 micos, e causa ainda de vigor para a vida rcligiosa das paroquias, abriu-se uma era para os canteiros, em reforma de igrejas e construgao de outras. Nao permite o tempo que posso dispor. nem consentaneo c com a indole deste trabalho, seguir passo a passo o aparecimento dos edi- ficios cultuais. Trabalho c esse que so em livro de austero estilo se pode fazer. examinando e submetendo a forte critica as parcas indi- caQoes documentais e os raros restos materials. Terei de seguir um outro caminho, apresentar uma visao de con- junto, direi, panoramica, que melhor fa^a sentir o rapido increment© construtivo desta cidade desde a segunda reconquista ate ao grande cimo que para ela e o lindar do seculo doze. Para nos — homens deste seculo vinte. que comemoramos ha poucos anos, no meio de um geral entusiasmo, os oito seculos de vida da nacionalidade. que damos ao facto singelo da vitoria de uma facgao, no reencontro de Sito-Mamede, um alcance universal, ilustrados que estamos pela historia dos nossos feitos no pericdo de maior expansao e de interesse inter-continental — para nos que vivemos nesta cidade, capital da nagao que comicgava, grato sera contempla-la nessa cpoca. Levantar-nos-emos nas asas da imaginagao e, como ave de pequeno porte que se nao pode librar a grandes alturas. vamos examinar Coimbra, planando, para uma visao de conjunto ao mesmo tempo que as minucias se nao perdem. Trabalho facil porque todos nos temos bem na retentiva os pianos e o relevo da cidade. O fim e este: verificar um aspecto de geografia humana, procurar deduzir as razoes da topografia nao propriamente que criaram os bairros, mas sim as razoes topograficas que em certo modo exigiram a construgao das igrejas medievais nos lugares em que se encontram. Sabida coisa e a atracgao que os cimos exerceram nas imaginagoes religiosas de todos os tempos e como o mesmo lugar alto viu suceder cultos diversos. Se e manifesto tal facto para o nosso pais, para aque- les do Oriente, em que existiram civiliza?6es mais complexas, deduz-se com clareza tal que nao e uma das menores atracgoes no estudo desses paises, como por exemplo acontece com a Palestina. Se vier a pensar-se ainda nas regioes de provincia onde nasceu ou se tem passado bastantes anos, ao recordar a situa?ao das igrejas 15 paroquiais, atendendo ainda a forma como a freguesia se organizou, isto e, se foi evolugao lenta e expansiva de um centro antigo ou se foi criagao nova, fragmentagao de outra ou outras, notar-se-a que a arquitectonica do terreno e os aglomerados populacionais conduziram instintivamente os homens a situar o edificio cultual. Dentro de um aglomerado citadino nao podia deixar de se veri- licar a mesma lei e, se ainda for cercado de muralhas, mais uma con- digao topografica se vem juntar e mais entusiasmo provoca a solugao do problema. Examinemos pois o morro da cidade. Veja-se primeiramente como se despega das outras colinas pelo colo dos Arcos-do-Jardim, donde partem os dois vales que o delimitam: o de Santa Cruz e o do Jardim Botanico. Um corrego medio, que o longo deslisar das aguas torrenciais foi cavando, sai indeciso do Marco-da-Feira e logo se acen- tua e se escava de mais a mais; sentimos o correr da agua pela rua que tomou o nome de Rego-de-Agua, vemos o caudal mais volumoso e veloz na Rua das Covas, assistimos ao seu desfazer em espuma nos fragueados do Quebra-Costas e ao avangar do que ja e torrente pelo sitio que foi e e Porta da Almedina, e vemos a mesma agua, agora espraiada, depositar os materials carreados na parte baixa da cidade, aonde se junta aos aluviais do Mondego que vao formando os diversos arnados que sao o substracto do Arrabalde antigo. Tao fundamental e esta topografia que, nas grandes tempestades, a Natureza, violando os condutos humanos, volta as linhas que ela mesma tragou, e assim, no ano de 1411, a 14 de Junho, tal foi a quan- tidade de agua e o volume dos materials transportados, que arrancou as portas chapeadas de ferro da cidade. Temos assim uma linha do corrego que separa em duas partes, dois tergos ou dorsos, a antiga Almedina. Seguia esta linha de corrego um tragado que se aproximava bas- tante de uma recta e que agora vemos cortada, e grandemente, pelo angulo SO do desmedido basamento romano do Museu Machado de Castro, e que mais abaixo e atingida pela esquina NO desta antiga Se. Ficara o arrabalde para mais tarde; regressemos ao alto da cidade, mdo pcrcorrer ligeiramente a linha de muralhas, que ja se viu serem de tragado inicial do fim do imperio romano, e vamos percorre-las nao para examinar as razoes do seu tragado mas para delimitarmos a cidade e cada vez mais as condigoes que concorreram para a fundagao das igrcjas medievas. 16 Dominando o lugar de acesso a cidade pelo seu NE, assenta o castelo propriamente dito; dai, segue a muralha cercando o morro, para sul, pela parte media do flanco; ainda antes de atingir a linha de separagao das aguas, a antiga Estrela, contorna o dorso ou lomba, descendo sobre a riba sul, segundo a inclinagao da Rua das Fangas, atingindo em breve a linha do corrego num ponto bastante baixo, o de mais facil entrada por este lado, a Porta da Almedina. Volta a muralha violentamente para cima, obrigada pela antiga escarpa, a riba norte, sobre que cavalga, e passada a linha de festo do novo dorso, serve de base ao edificio do Colegio-Novo; e flanqueando cada vez de mais perto a linha de separagao de aguas, ao que era obri- gada pela rapida vertente, vai atingindo a cumieira do monte em que quase ja assenta ao chegar de novo ao Castelo. Deixarei de lado as barbacas que posteriormente se juntaram a cerca primitiva. Encontram-se assim poucos espagos de pequena inclina(;ao onde se pudessem estabelecer grandes ediffcios religiosos. Eram estes praticamente pianos horizontais geometricos, de orientagao sensivel- mente E-0, juntando-se a dificuldade de piano e de orientagao, duas novas: os nossos arquitectos medievais nao se langavam a grandes movimentos de terras, o terreno era afeigoado com pequeno dispendio, e era necessario reservar alguns espagos para construgoes civis. Vamos ver pois como os construtores do tempo colocaram os edi- ffcios religiosos. Tern de se considerar em separado os dois dorsos que a linha de depressao media de tal modo delimita, nos aspectos da vida humana, que ate o proprio talvegue e demarcado por intermedio de ruas suces- sivas que formam uma Canada. Irei tratar do morro principal, o dos edificios nobres: palacio real e se. Lembrarei entretanto um aspecto particular. Assim como as habitagoes se adensavam dentro das muralhas e ai se aglomeravam os proprietarios dos terrenos que largamente se estendiam em volta da cidade, tambem as igrejas, como sedes de freguesia, se apertavam no abrigo das cercas, avizinhando-se,_ repartindo avaramente o pequeno agregado humano e estendendo tentacularmente o direito paroquia! para alem das fortificagoes, em irregularidades tais que hoje chocam o nosso conceito de freguesia. Explica isto o numero que outrora 17 havia de igrejas paroquiais dentro do estreito espago das muralhas de Coimbra. O trogo dominante da linha de fastigio deste dorso vai da Alca- Qova a porta do Castelo, ocupando, aquela e este, os extremos, assen- tando o palacio num regular ninho de aguias; lugares estes de ordem tal que, por sua natureza, exigiam as construgoes que la ficaram. A meio daquele trajecto, ligeiramente ao lado da linha culmi- nante, fixou-se a igreja de Sao-Pedro, o centro espiritual do bairro. Pela inclinagao que a Rua do Borralho mostra, se ve a condicio- nabilidade do terreno na local izagao do edificio. Lembrarei que as ruas de Sao-Pedro e de Entre-Colegios sao cortes artificiais, talvez operados no seculo dezasseis. Primitivamente seguia o terreno, em forma ligei- ramente abaulada, da abside de Sao-Pedro ate ao patio da Alcagova. Nesta igreja de Sao-Pedro ha restos. do primeiro tergo do seculo doze (periodo dos condes); sabe-se, porem, que existiu aqui um edificio nos fins do tempo a seguir a primeira reconquista da cidade e nao e improvavel que a fundagao remonte a epoca visigotica porque alem da demonstragao que o sitio da por si, ha ainda certo indicio. A torre sineira ficava mais para a linha culminante, entre a Rua Larga e a Travessa. O terreno continua em pequena inclinagao ate a Alcagova, e o seu proprio postulantado levou o conde D. Sesnando a mandar cons- truir a igreja nova de Mirleus, no sitio da antiga Faculdade de Letras, de mero fim devocional. Parece que ela devia ter tido uma fungao nobilitante, a de capela real; devendo-a ter guardado ate ao seculo catorze, na transformagao do edificio para Escolas Gerais. A fundagao da capela do Pago-Real nao remonta tao longinquamente como se tern julgado. Deixarei a lomba sul deste morro (a voltada para o Jardim Bota- nico) para quando me ocupe de Sao-Cristovao e irei mostrar a loca- lizagao desta Se. Seguindo-se, cm imaginagao, o declive do terreno entre a linha de cume, acabada de ver, e a linha de corrego desde o Marco-da-Feira ate ao fundo da Rua das Covas, considerando o declive pelo inclinado das ruas transversas, so neste lugar da Se se encontra um terreno mais assente, e aqui se forma um patamar cujo valor topografico ressalta notando-se que a Rua do Correio, continuada no outro morro pela dos Coutinhos, marca um mais acentuado desnivel, como que uma riba superior. Para baixo dessa linha sao impossiveis as largas cons- trugoes. Mesmo aqui, a Se, o talvegue do corrego espraia, e assim se explica que alem da Se, igreja principal, fosse tambem a praga do 18 Igreja de S. Pedro. Capitel romanico. Sec. xii ', ■ i *-^'* '^i J ^ k Pi Igreja de S. Pedro. Arcada decorativa. Sec. xii forum aonde se encontrava a domus nmnicipalis e o pelourinho dos primeiros tempos. Nao nos dcixemos contudo iludir pelo espa^o deste claustro, que e artificial, como daqui a pouco veremos. Sendo ponto central da Almcdina e o mais largo, a natureza o votava ao deslino que tern. Por isso mesmo e de aceitar a tradigao que colocava aqui a mesquita-maior no tempo mugulmano, como tambeni que, no mesmo local, estivesse o edificio que serviu de pro- -catedral visigotica. Infelizmente faltam indicagoes documentais. O edificio actual e do reinado de D. Afonso I, construgao come^ada e subvencionada pelo bispo D. Miguel Salomao. Dos edificios ante- riores podem ser conhecidas certas coisas atraves de um exame serio de documentos e consideragoes artistico-arqueologicas. Na lomba oriental deste morro surgiu nova igreja pelas necessidades espirituais do bairro que podemos chamar da Estrela. A igreja, que era a de Sao Cristovao, fora levantada no si'tio do Teatro Sousa Bastos. Porque foi escolhido este local e nao outro? O bairro do Castelo-Alcagova estava sob a influencia espiritual de Sao Pedro e alem disso nao tinha ja espago. Tenha-se o incomodo de reparar primeiramente que os edificios da Trindade e do Asilo iludem, encontrando-se em terrenos de grande declive; relativamente ao primeiro e esclarecedor o espago em frente da igreja e, ao segundo, o pequeno Beco da Pedreira. Por sua vez esse espago citadino era pouco habitado. Os Grilos ocupam um corte no morro. Seguindo o tragado do antigo carreiro descendente que contornava o promon- torio da Alcagova, representado pela Rua dos Grilos e pela da llha, vemos a nossa esquerda o terreno a descair sempre com violencia e podemos praticamente avaliar o seu declive pela Rua dos Palacios Confusos e pela das Esteirinhas. So na terminagao desta e comego da Rua do Correio deparamos com o descanso do Sousa Bastos aonde se iniciava aquilo que ha pouco chamei a riba superior. So ai se encontrava apertadamente o espago da igreja e do adro cemiterial que a flanqueava. A igreja destruida era do romanico afonsino mas a fundagao devia ter sido do tempo condal, ja no seculo doze. Ficou examinada a parte da Almedina que se estende para sul do corrego central. Tern agora a sua vez a do norte. Ha ai duas antigas igrejas paroquiais: Sao Joao e Sao Salvador. 21 A construQao, nos seculos dezasseis e dezassete, dos grandes edi- ficios dos Jeronimos, Colegio das Artes e da Companhia de Jesus e ainda o proprio Largo-da-Feira veio dar a ilusao de terrenes pianos que nao existiam, alterando inteiramente a topografia de toda aquela parte superior, limitada pela rua que vai do Arco-do-Bispo ao comego da Ladeira dos Jesuitas, ao passo que a inferior se conservou. Tentarei ressuscitar o relevo. Estao claras as linhas laterais: uma e a do corrego, tantas vezes citada, a outra e a das muralhas, tambem ja referida. Falta so demarcar a linha de festo ou de cumieira e para isso regresse-se a pequena depressao da porta do Castelo. Comega ai essa linha ideal de partigao de aguas, sensivelmente na esquina do Hospital de Sao Jeronimo e, indo-se encurvando, devia atingir a sua culminancia no patio intermedio aos edificios hospitalares, cortar em diagonal a Se Nova e ir emergir no comedo da Rua da Mate- matica. Deixando esta rua pela altura da Travessa de Sao Salvador, a sua inclinagao torna-se violenta, o que se mostra com clareza pela rapida descida da Rua do Loureiro. Para quern conhece bem a cidade, e manifesto que na parte para norte desta linha de festo nenhuma construgao do tipo da nossa igreja medieval citadina era possivel ; na parte do sul deste morro do Salvador mais nenhum outro local se encontra. O edificio do Colegio Novo, no sitio do antigo bairro cruzio da Porta Nova, exigiu uma grande adaptagao de terreno. Porque se nao acomodaram as duas igrejas na zona ao nascente do Arco do Bispo, em terrenos de pendor pouco acentuado? Houve aqui um poderoso centro de atracgao: a gradiosa ruina de que resta o desmedido basamento formado das galerias do tempo do imperio romano, subjacentes ao Museu Machado de Castro. A primeira igreja a fixar-se devia ser a de Sao Joao, num sentido perpendicular ao que actualmente tem, com a frontaria para o patio do Museu. Ocupou-lhe, com o claustro e edificagoes anexas, a secgao NE. Da igreja medieval foi exumada uma parte do piano e viu-se que pertencia ao primeiro tergo do seculo doze, ao findar do periodo dos condes. Certos indices conjugados coni a necessidade de dar aquele morro o respective edificio cultual e a atracgao que necessariamente exercia a grandiosa construgiio romana, dao plausibilidade a sua exis- tencia no tempo visigodo. Sao Salvador, apesar do edificio existente ser da segunda metade do seculo doze, deve ser todavia de fundagao da primeira reconquista, quando o aglomerado daquele bairro exigiu uma cesura. Dentro dos 22 Igreja de S. Salvador. Sec. xii limites da sua paroquia, procurou, na exposigao a sul, o si'tio suficiente- mente largo para igreja e campo cemiterial, antes da descida da encosta se acentuar aonde ja nao era possivel construi-la. Fica examinada a topografia que condicionou a construgao das igrejas medievas da Alta. Pedirei novamente para me acompanharem, em espirito, ao Arra- balde, a parte fora das muralhas, diremos hoje, a Baixa. Novamente se tem de pensar no cavado dos vales que fez destacar o bloco calcario da colina. O vale do Jardim Botanico rasga-se a sul da cidade. Correndo as suas aguas em terreno menos denso cavaram-no forte- mente e o calcario da colina isolou-se, mas encontrando elas a corrente quasi perpendicular do Mondego, que corre tangencialmente ao dorso sul, nao fez planura que convidasse o aglomerado humano da parte baixa. Este, como que impelido pela corrente do rio, desviou-se mais para poente, colocando-se em frente da cidade alta. Do outro lado o vale de Santa Cruz, com grande bacia de recepgao pluvial, contornou a colina e, como era abundante de agua — com aquela serie de nascentes que da Fonte da Rainha as que se encontram na parte trazeira da Penitenciaria, que no seculo dezasseis formaram o caudal do aqueduto, com as outras nascentes, como a da Nogueira, Fonte Nova e a fonte do claustro de Santa Cruz — ficou o vale com uma corrente continua de aguas, pequeno ribeiro que se prolongava pelo sitio da runa, na parte posterior da Rua da Moeda, que antes do seu encanamento pelas obras de Santa Cruz, tinha pelo menos um pontao e a sua corrente movia moinhos em varias epocas. Delimitava, pois, esse ribeiro, do lado norte, o arrabalde que tinha forma de triangulo. Para alem da runa havia o pequeno bairro de Santa Justa, que tera o seu lugar daqui a pouco. Permita-se-me que faga notar que encontrando-nos, por hipo- tese, em 1130, ainda nao estava fundado o mosteiro de Santa Cruz; todo o vale era de hortas e outras culturas. No espago, entre a corrente da runa e o Mondego. tinha o arra- balde duas igrejas: Sao Bartolomeu e Sao Tiago. Duas outras igrejas, citadas em documentos muito antigos e que se tem julgado que ficassem juntas as muralhas, encontravam-se a grande distancia. Poder-se-ao adivinhar as razoes topograficas da existencia de duas freguesias em tao pequeno arrabalde? 24 Volte-se novamente a vista e consideragao do corrego medio da parte alta da cidade. Cavado, nao pela acgao de aguas continuas mas sim das de genero torrencial, tem a Porta da Almedina como que o seu canal de transporte, posto que ai ainda se fizesse sentir fortemente o poder erosivo. A parte inferior, aonde se vinham acumular os materials transportados, subiu tanto psias aluvioes do rio que hoje se perde toda a ideia do leque de dejecgao. Meditando porem sobre esse terreno e dando desconto as transformagoes topograficas que os homens imprimiram, pela cons- trugao das fortificagoes e corte de ruas na parte terminal da bacia, somos levados a concluir que o cone de depositos devia ocupar, na sua maior estreiteza. um espago correspondendo sensivelmente ao que fica entre a Rua das Solas e a das Azeiteiras. Permita-se-me que faga notar que tudo isso se encontra hoje a uma profundidade regular e que o cone nao devia ser grande porque, sendo o terreno superior pouco movel, nao se produziam massas consideraveis de detritos e ainda que o leque devia ser disperso, na sua parte terminal, pelas aguas do Mondego e pouco a pouco coberto pelas suas areias. Apesar disso, quando o homem comegou a construir no arrabalde, essas aguas torrenciais obrigariam a repartir o povoado em dois grupos. Devia ser essa causa que originaria em parte o espago livre da Praga do Comercio e que levaria os romanos, utilizando eu agora a feliz hipotese do Prof. Dr. Vergilio Correia, a construir ali uma especie de praga agonal. Dois grupos populacionais haveria, duas igrejas portanto e ate de padroado diferente. Sabemos da existencia de Sao Bartolomeu no seculo decimo, na primeira reconquista, posto que o resto mais antigo, ate hoje encon- trado, seja do doze, do periodo afonsino, e que o edificio actual date do dezoito. A igreja de Sao Tiago e do fim do seculo doze e principio do treze, do reinado de D. Sancho. Houve uma construgao anterior de que nada se conhece e e hipotese nao desnudada de probabilidade que a fundagao remonte a primeira reconquista. Para alem da runa, a receber a gente que do norte demandava a cidade pela Rua Direita. encontra-se o agregado de Santa Justa a antiga. Novo grupo populacional, nova igreja. Ficou o edificio no Terreiro da Erva. Sabemos da existencia dela no fim do seculo onze, conhe- 25 cemos a sua doagao ao mosteiro de Charite-sur-Loiie (Charitas ad Ligerim), a sua reedificagao pelo presbitero Rodrigo, na primeira metade do seculo doze, da qual restam dois pequenos capiteis do Igreja de S. Tiago. Sees, xii-xni lomanico afcnsino e vemos que foi reedificada no seculo calorze como indicam a capela-mor e a da epistola que ainda conservam as abobadas fora das aluvioes e que servem de oficina ao serralheiro cinzelador, Daniel Rodrigues. Esta conclui'da a romaria das igrejas que existiam pelos anos de 1130, c passadas em revista as razoes topograficas e populacionais que Ihes deram origem. Sendo porem o meu fim evocar nao propria- 26 mente as constru<;6es desapaiecidas mas examinar o que resla das obras dos diversos periodos, irei mostrar o que ficou do tempo condal. Pouco e, mas de grande interesse pelo conlrastc com a seguinte, a afonsina. Com as aguas do Mondego que, esquecendo as linhas divagantes que seguem por entre as arcias do seu leito, no tempo da estiagem, avangam, na epoca das enchentes, pelos campos marginals e, subindo, deixam a mostra, de toda a topografia inferior, so as cimeiras das mais altas arvores, assim tambem o tempo arrasta grande fouce que esquece uma que outra vez uma breve testemunha antiga. Do grupo arquitectonico condal foi ressuscitada uma parte da igreja de Sao Joao de Almcdina e do seu claustro, e neste foram rein- tegrados os restos das suas arcadas que tinham aparecido muito ante- riormente. Veio a luz essa parte da igreja e do claustro na reforma das salas baixas do lado nascente do patio do Museu Machado de Castro. Ha ainda na igreja de Sao Pedro alguns fragmentos construtivos e decorativos. Na cidade nada mais existe, fora dela outras coisas se encontram. Ao achado de todas elas devemos juntar o nome do primeiro histo- riador de arte portuguesa, o do Prof. Dr. Vergilio Correia. Nestes restos, a distingui-los da obra erudita dos construtores afonsinos, ha a notar duas coisas: a maneira ainda rude de tratar a alvenaria e o processo e reportorio decorativos. A tcdos os artistas que em Coimbra se ocupam da arte da pedra recomendo o exame do aparelho do que resta de Sao Joao e o seu confront© com o desta Se. Aparece neste periodo condal a escultura figurativa, de formas rudes mas desaparece com ele, e passar-se-a um seculo ate que de novo OS escultores afeigoem na pedra as imagens dos santos ou dos grandes personagens nas suas estatuas tumulares. A escultura conti- nuou mas so nos mestres dos retabulos metalicos e certamente entre os entalhadores de madeira. Abandonado este cimo da magnifica e nova juventude da cidade, definitivamente colocada no caminho livre que ja ha perto de nove seculos vem a percorrer, irei passar a outro ponto de horizonte histo- ric© em que a cidade se encontrou renovada e a nagao com a sua lareira mais larga e livre de senhores estranhos. Dormia ja o Fundador em Santa Cruz e governava o reino o primeiro Sancho. De 1200 vamos examinar os ultimos dois tergos do seculo que acabava. 27 A epoca condal foi para Coimbra de expansao catedralicia e paro- quial, a afonsina sera a das fundagoes conventuals. Tinhamos visto o vale que cerca a cidade do lado norte, ocupado por hortejos. Surge ai, naquela parte em que abrandava a inclinagao, ao principiar do segundo tergo do seculo doze, o mosteiro cruzlo. Nao sao para este momento as circunstancias da fundagao; refe- rir-me-ei so as topograficas. Langou-se a primeira pedra a 28 de Junho de 1131. Ao mesmo tempo (pode dizer-se, actualmente, depois de estudos meus) foi langada a primeira pedra de uma nova forma artistica do romanico conimbricense. O vale era estreito, os edificios tiveram de assentar no proprio talvegue, pois que a runa atravessa o claustro e a igreja, e tem sido a principal causa das inundagoes ali registadas. Ficava-lhe a cidade a sul, havendo entre a muralha desta e o vale, alcandorado num socalco, o bairro judaico, representado pela Rua do Corpo de Deus; a norte elevava-se o flanco de Montarroio, pelo qual descia a via antiqua (sensivelmente a Rua Ocidental) aonde se encon- trava, no fim da descida, perto da corrente e nos limites da freguesia de Santa Justa, a Porta Mourisca, que nao podendo ser porta de bar- baca seria provavelmente ultimo resto de velha construgao, talvez resto daquilo que o Prof. Dr. Vergilio Correia presume que no vale existisse no tempo romano, um balneario. A construgao cruzia ocupava o bloco formado pela igreja actual, claustro e Pagos do Concelho. Nao descreverei agora a repartigao interna do mosteiro; lembrarei que encontrando-se em lugar desguar- necido de cerca de muralhas, os sens muros tiveram de tomar uma feigao de cortina militar, formando-se no fim do seculo e principio do seguinte o grupo acastelado que ruiu com a torre dos sinos. O mosteiro trouxe consigo a criagao de uma nova paroquia que, limitada inicialmente aos terrenos que ele ocupava e aos que Ihe ficavam acima ate a Manutengao Militar, ainda no mesmo seculo se alargou para o rio, provocando conflitos com a paroquia de Sao Tiago e a de Santa Justa. Ao mesmo tempo que se construiu o mosteiro foi comegada uma obra de grande alcance, a ponte sobre o Mondego. A ponte trouxe consigo o principio do bairro de Santa Clara. No ultimo quartel do seculo doze construiu-se ai o mosteiro de Santa Ana e com ele tambem comegou aquilo que se pode chamar a grande tragedia do Mondego, sendo o primeiro a soterrar-se lentamente nas areias. Ficava para aquem do mosteiro de Santa Clara. E bem 28 St.'' Claia-a-Antiga, na imindavao dc 19-1-1955 provavel que o bairro, que nos parece ter surgido do burgo Clarissa, tivesse principiado com um burgo de Santa Ana e de Sao Francisco e as mesmas areias que garrotaram o mosteiro tivessem destruido OS primeiros agregados populacionais. Logo a seguir a fundagao de Santa Cruz veio a de uni outro con- vento, tambem segundo a regra de Santo Agostinho, que distante da cidade e conveniente mencionar, o de Sao Jorge, aonde ja havia uma ermida. Ao findar o seculo, D. Sancho mandou construir a torre quinaria do Castelo, bem como uma outra, no principio do imediato, e de igual recorte, a Estrela, da qual ainda se ve a parte inferior. 29 Que resta dessas fundagoes novas? Quasi nada. Santa Cruz foi inteiramente modificada no seculo dezasseis, a ponte e o mosteiro de Santa Ana afundaram-se nas areias em grande parte, acabando, a parte livre deste, de ruir ou de ser destruida e a daquela de ser transformada. Sao Jorge viu-se reconstruido duas vezes: nos seculos dezasseis e no dezoito. Arrazaram a torre quinaria nas reformas pombalinas. Se nada resta para que sao as minhas referencias encomiasticas ao periodo afonsino? A razao e simples: desapareceram as novas fundagoes, ficaram todavia os edificios renovados da se e de certas igrejas paroquiais. De tal valor sao estes que trazem, ao primeiro piano da arquitectura romanica portuguesa, a privativa desta cidade. Aparece-nos por 1131, com a construgao de Santa Cruz, um grande arquitecto e alguns canteiros que traziam novos processos. Transformado o edificio de Santa Cruz no seculo dezasseis, ficou contudo perceptivel a estrutura romanica e alguns fragmentos de decoragao restam. Depois de examinar e estudar demorada e cons- cienciosamente tudo, pude chegar a conclusoes bem inesperadas, publicadas umas, outras a espera de oportunidade. O estilo que nos aparece em todo o seu esplendor nesta se, ali se encontra. A sua estrutura organica tinha tal arrojo que um ilustre arquitecto, de idade e grande experiencia, duvidou no princfpio mas acabando por aceitar as minhas conclusoes depois de um exame demo- rado, com rapidas medigoes e calculos, Foi Santa Cruz o laboratorio deste segundo romanico de Coimbra e ali se criaram formulas arquitectonicas que se haviam de repetir, como aconteceu com o portal que se reproduziu nesta Se Velha, ori- ginado na forte galile torre defensiva que precedia a igreja criizia. O seu arquitecto, como demonstrei com clareza, foi Roberto. Originario da regiao de Clermont, na Basse Auvergne, a terra aonde se reuniu o concilio donde saiu a primeira cruzada, ai tomou os ele- mentos essenciais da sua profissao e, metendo-se ao caminho das peregrinagoes a Sao Tiago, nas grandes igrejas que no momento se erguiam no itinerario — Conques, Saint Sernin de Toulouse e na maxima de Compostela — completou a sua educagao. De Espanha trouxe o resumido numero de canteiros que haviam de criar as for- mulas decorativas, tao elegantes, que se encontram nos capiteis desta catedral. 30 Ja Roberto se tinha ido (ixar em Lisboa quando o bispo D. Miguel Salomao o encarregou de reconstruir, desde as bases, esta Se. Como tinha deixado canteiros que educara, facil foi, com algumas visitas, levantar este nobre edificio. ComcQado no decenio de sessenta, viu sagrado o seu altar-mor em 1 184 c paravam os trabalhos algum tempo depois. De pericdo intermedio devia datar a destruida Sao Cristovao de que restam alguns capiteis. Contemporaneo da Se, e Sao Salvador que mostra os reci;rsos dos artistas nacionais, educados pelos estranhos e entregues a si proprios. Sao Tiago indica evolugao da obra dos nacionais. Entra-se noutro seculo, o treze. e orientagoes novas, sociais e de constru^ao aparecem. Irei referir primeiramente a funda(;ao de novos m.osteiros. Encontra-se, no principio do reculo, o de Celas, da ordem bene- dictina, funda(;ao de D. Sancha, filha do segundo rei. Foi o nucleo daquele burgo que ate ao seculo passado ficava longe da cidade e hoje e um bairro dela. Os outros conventos provem de nova orientagao espiritual. Levantara-se com o seculo a imagem inefavelmente estranha do estig- matizado de Assis. Do mesmo modo que as comunas no mundo civil, as duas ordens de mendicantes reagiram contra a igreja feudal e, em lugar dos abades vivendo com grandes senhores e dos mosteiros de largos domi'nios, apareceram os frades irmanados com os pobres, levando pelo mundo, como unica riqueza, os L.eus livros de reza. Chegaram os primeiros franciscanos, a esta cidade e corte de D. Afonso II, em 1216 e no ano seguinte outros estabeleceram-se em Santo Antonio dos Olivais. No m.eado do seculo passaram para o novo convento alem da ponte. A igreja so foi sagrada no seculo imediato. A ordem de Sao Domingos teve igualmente a sua casa. Come- garam as obras ainda no primeiro quarto do seculo. Com estes dois conventos voltamos as lastimas e a tragedia do Mondego que devora vidas e edificios. Deles nada resta. O de Celas foi transformado. Tiveram as Clarissas, no ultimo quartel do seculo, um pequeno convento, com igrejinha breve, claustro e parte do dormitorio. de funda^ao de D. Mor Dias; mas dissolvida a comunidadc imperfeita, 31 Claustro da Se Velha. Sec. xiii a seguir a sua morte, e nascidas graves lutas, ficaram os edificios aban- donados e so ligeira parte deles se conservou na renovagao feita pela rainha Santa Isabel, e tudo isso desapareceu sob as areias. Lamentavel foi esta sina dos grandes edificios das margens do Mondego! Que deixou pois o seculo treze em Coimbra? Uma obra grande que faz esquecer aquelas que as areias afun- daram e essa obra e a deste claustro em que estamos. Se a igreja foi obra episcopal, este claustro foi de iniciativa e de custeio real, de D. Afonso II. Comegado no segundo decenio ficou pronto antes do meado. E uma obra perfeita do primeiro gotico. Permita-se-me que chame a aten(;ao para a sucessao equilibrada dos tramos, para a caden- cia das abcrturas para o jardim, para a austera elegancia de todos os elementos e que pega que se confronte esta obra com a da igreja. Sao ambas perfeitas, em dois estilos sucessivos, que um feliz acaso aqui reuniu c que, para o prazer do nosso olhar, se conservam. 32 Ja nada tiveram os artistas da igreja com os deste ciaustro, eram homens novos, vindos de outro lado, educad©s no estilo novo. Tinha, o seu arquitecto, visao larga; descendo a vertente da Alca- gova em pender rapido, como se ve ao nascente pela rua chamada do Norte, era pequeno o espapo livre, principalmente para esse lado, cortou, por isso, fundamente a rocha; o que poder-se-a notar, entrando nas capelas de nascente e de sul, e vendo que nao ha paredes e que as abobadas assentam na propria rocha corlada perpen- dicularmente. Nao e esta, obra pequena a marcar um seculo da cidade; fora de Alcobaga, nenhuma outra se levantou entao no pais a iguala-la. Entramos no seculo catorze. A ilustrar o seu comego, duas figu- ras se destacam nesta cidade: D. Dinis e a rainha Santa Isabel. Ele ficou, para os conimbricenses, alguma coisa mais que o poeta das formosissimas cantigas de amor e de amigo, colocando aqui os Estudos Gerais. Da sua obra de construtor do edificio desses mesmos estudos, no sitio da igreja de Mirleus, que e o mesmo que ocupava a antiga Faculdade de Letras, restam algumas colunas de caracter utilitario, arrecadadas no Museu Machado de Castro. D. Isabel, aureolada das suas virtudes e coroada do ti'tulo de santa, e nao um longinquo modelo de crista, envolvida na neblina da admiragao de um recuado seculo, mas a presenga continua e pro- tectora. E em certos dias, quando o nevoeiro se amontoa no vale, parece que o mosteiro novo, visto desta colina, pousa em nuvens e elas descem e vem deixar, nas maos suplicantes, a caixa das reliquias tutelares. Das construQoes que mandou erguer resta, como por milagre, a grande igreja do seu mosteiro, parecendo nau que se voltou e, meia submersa nas areias, levanta no ar a forte querena. As pedras gastas, obra do primeiro tergo do seculo catorze, sao a maior construgao que desse seculo nos ficou na cidade. E um estilo gotico robusto e arcaizante, de mestre muito inferior ao deste ciaustro, em muito atrazo a obra internacional, o que choca bastante. Desse seculo temos ainda a capela-mor e uma lateral de Santa Justa-a-antiga. Na Rua do Corpo de Deus, no coragao do antigo bairro judaico. ficou tambem uma capela que guarda desse tempo a capela-mor. 33 No nome de Corpo de Deus comemora um antigo sacrilegio, no de Nossa Senhora da Vitoria o magnifico triunfo do Salado, a grande vitoria da Cruz. E nada mais para tao grande seculo? Alem de fragmentos arquitectonicos, renova-se a escultura figurativa e sobre os altares, representando santos, colocaram-se as mais lindas imagens de rainhas e princesas, donzelas de cabe- los floridos, austeros prelados e piedosos leigos que encontrar se podem. Da segunda metade do seculo anterior ficaram nesta Se rigidas imagens fiinebres de bispos: na passagem de um para outro seculo esculpiram-se os lindos capiteis de Celas em que passa a vida do Senhor, e com o novo seculo vieram artistas estranhos, um dos quais e o maior deles esta identificado, pelo Prof. Dr. Vergilio como Mestre Correia, Pero. A escultura assentou de vez arraiais em Coimbra e, como planta colocada em terra eleita, enraizou e cresceu. Nem este seculo catorze nem o quinze deixaram agrupamentos escultoricos, resumiram a sua actividade a imagens de altar ou a areas tumulares; mas nesse genero quantas joias nos legaram! O seculo quinze gostou das largas roupagens, deixando-nos certas Senhoras envolvidas em amplos mantos, caindo estes em elegantes cascatas de encanudados. Algumas, sentadas e com o Menino brincando no regago, sao de tao humana expressao, de tao suave olhar que da vontade de nos sentarmos a seus pes e pensarmos que voltamos a ser pequeninos como quando na verdade eramos pequeninos, que ate sera maravilha nao parecer que a sua mao pouse de leve na nossa cabega e que de novo ougamos aquelas palavras maternas, tao simples e de tao esque- cida ressonancia. Alem da imaginaria, que este seculo de quatrocentos espalhou com mao larga por todo o centro do pais, pouco legou de arquitectura nesta cidade. Ha, num recanto escuro de Santa Cruz, uma abobada esquecida. Todavia, como portada magnifica para o ultimo capitulo, ergueu na igreja de Sao Tiago a entrada da capela lateral. Sobre o arco, de finos colunelos, folheados capiteis e delicadas molduras, levanta-se uma decora^ao flamifera, parecendo todo o portal arder em chamas que, subindo, vao morrer na faixa ondeante terminal, ao passo que floridos cordoes cercam a composigao, como preanun- ciando que a chama final do gotico iria suceder a primavera da Renascen^a. 34 Acabamos de ver passar dez seculos da vida de Coimbra, con- siderada atraves dos restos materials, da obra dos canteiros. Das primeiras epocas quasi tudo o tempo devorou: ficaram ran'ssimas testemunhas que nos permitem avaliar, em certo modo, os estadios da cultura da cidade. So com o seculo doze desaparece esse tracejado indeciso, com frequentes interrupgoes, e nos e dado ver grandes edi- ficios, alguns dos quais se conservam. Aos artistas produzindo obras de nivel popular, sucedem-se geragoes de educagao superior e, atingida certa altura, essas linhas de cimos ondula, tendo momentos de cul- minancia e descendo, de quando em vez, a passos mais baixos. Cada seculo traz formulas novas e a cada uma delas os artistas citadinos se vao acomodando, dando-lhes um certo jeito que as diversificam e as tornam caracteristicas desta cidade. E costume fazer a historia do passado de modo que seja puramente a historia dos grandes e a dos grandes feitos; ora aquilo que o passado nos legou de mais vivo para o evocar, para o tornar, em certo modo, presente, sao as obras das maos dos operarios especializados. Podem ser largos os recursos economicos postos a disposi^ao das grandes construQoes mas so poderao realizar-se se as tecnicas tiverem atingido certo nivel e haja grupos de artifices com a educagao suficiente para as come^ar e as levar a cabo. Estudando eu as velhas construgoes de Coimbra, aquilo que em primeiro lugar tenho em frente, nao sao os grandes dignitarios que as mandaram construir, pois que eles so me servem de indicador crono- logico, o que se torna presente sao as series de geragoes de artistas que receberam e criaram tecnicas, renovaram e transmitiram tecnicas, sao as suas maos criadoras, as suas maos que floriram os materials de construgao ou de decoragao; eles que, pobres, modestos, tendo muitas vezes a miseria no seu lar, levantaram a casa dos santos e a casa dos grandes e que, tendo criado o meio expressivo pelo qual o passado nos e conhecido, desceram a terra ignoradamente. (Conferencia pronunciada no claustro da Se Velha, a 27 de Junho de 1943, promovida pela Sociedade de Defesa e Propaganda de Coimbra, sendo seu presidente o advogado Dr. Alfredo Fer- nandes Martins. Em opiisculo: Coimbra, 1944) 35 Ill LOUROSA Lourosa foi doada a Se de Coimbra pela rainha D. Teresa, a 13 de Mar^o de 1119, como diz Herculano, e nao 1115, como traz Brandao. D. Afonso Henriques coutou-a, englobando a metade da se com a que pertencia a Pedro Usureis, a 2 de Novembro de 1132, em troca de setenta morabitinos e uma boa mula. Na carta demarcam-se-lhe OS limites, encontrando-se nela referenda a estrada da Beira (uiam antiquam), estrada de tragado talvez pre-historico mas de que nao tern aparecido marcos ou pavimentos romanos. Nas rendas da igreja tinha sido estabelecida uma comenda da ordem de Cristo, chamada das novas. Teve foral dado, em Coja, pelo bispo de Coimbra, a 6 de Feve- reiro de 1347. D. Manuel deu-lhe o novo a 12 de Setembro de 1514. A revelagao da igreja para o mundo dos historiadores de Arte foi feita pelo ilustre e malogrado Prof. Dr. Vergilio Correia. Esteve la em Agosto de 1911, publicando em seguida alguns artigos na Folha de Oliveira, semanario de Oliveira do Hospital, artigos que em Janeiro de 1912 apareceram em opusculo. Muito de notar e que, sendo novo e estando no comeQO dos seus estudos de historia de Arte, visse tao bem e classificasse convenientemente a igreja. Seja, pois, este suma- rio monografico escrito como uma homenagem a sua memoria. Dr. Joaquim de Vasconcelos foi la em Outubro de 1911, publi- cando OS artigos respectivos na Arte; um desses fasciculos tem a data desse mesmo ano mas e de publicagao um pouco posterior, como e habitual acontecer em tais publicagoes, o que nao obstou a que mais tarde se nao viesse a jogar com essa falsa data. Os dois estudiosos de Coimbra que a tinham visitado antes, apesar do seu marcado valor nos assuntos proprios, um deles artista e o outro historiador geral, faleceram sem possuirem conhecimentos bastantes para a classificarem, encontrando-se portanto fora de causa. 37 O primeiro trabalho de analise estrutural e serio foi o de D. Jose Pessanha, em 1916. Os trabalhos cujo fim era o restauro da igreja iniciaram-se em 1930. Por circunstancias naturals e humanas, nao se usou nas demoli?5es daquele metodo que era necessario, o da anotagao de todos os achados e as posiQoes que ocupavam, o que hoje e fonte de embarapos e nao permite tirar conclusoes, que seriam possiveis se tal processo de tra- balho se tivesse usado. O material, nao so o que foi encontrado solto como o que estava ainda em obra, e de diversas epocas: romana, visigotica talvez, moga- rabe, romanica, gotica e posterior ate a actualidade. A construgao presente pertence estruturalmente ao mogarabe, mas com muito mate- rial anterior reempregue, ao romanico e, agora, a epoca corrente. Nao ha documentos escritos da alta idade-media que Ihe digam respeito. Tres milesimos esclarecem : numa pedra solta, «ERA dccccL :», que corresponde ao ano de 912; numa imposta, a primeira da arcada do lado do norte, «C.C.XXVI / E M» (que poderia ter tido um ou dois tragos a mais, como a fractura sugere a duvida, isto e, estar VII ou VIII), lendo-se pois, era de 1226, ano de 1188; na imposta fronteira, a que agora, depois de limpa a pedra, diz 1677, de algarismos mal gravados e os seus tragos confundindo-se com os acidentes da mesma pedra. Os verdadeiros documentos sao aqui as pedras; as consideragoes, como se tem feito, sobre a Reconquista pouco esclarecem, pois que nao ha documentos respeitantes a regiao, e os que uma vez se Ihe ligaram viu-se (como ja no sec. xviii escrevera Manuel Rocha) que tratavam de outras terras. Todavia e bom voltar-se as reflexoes sobre a primeira reconquista, posto que em esbogo somente, e ao que os historiadores ordinariamente desconhecem, isto e, as razoes tactico-topograficas dos territorios em que a historia decorre. As serranias que incluem a Estrela e se prolongam pela da Lousa ate as alturas do Espinhal formam uma muraiha natural. As regioes da bacia do Mondego que elas defen- dem nao podiam ser tomadas, vindo do sul, por um ataque frontal mas so por um avango dos flancos, pelo nascente, penetrando por Seia, a poente, por Miranda do Corvo e fortalezas desta linha; tornados OS pontos extremos estava dominada a regiao media. Devemos ainda fazer notar que esse sistema natural de fortaleza abaluartada 38 It- ftfrnaitM/ Planta de Lourosa. Estiido preparatorio do Arq. Jose Vilaga se dispoe diagonalmente de NE a SO, protegendo mais eficazmente o territorio. Conquistada Coimbra para o rei D. Afonso III pelas maos do conde D. Hermenegildo, em 878, e avangando o mesmo rei, como diz o Chronicon Conimbricense, com conquistas ou devastagoes ate Idanha, ficava o largo tracto da bacia do Mondego na posse dos cristaos. Pegas de epocas diversas encontradas nas demoligoes Nao obstante as oscilagoes que poderiam ter tido os campos abertos que ficavam nos extremos (sabidas como sao as de Coimbra), e de crer que os do centro teriam tido seguranga ate as fundas inves- tidas de Almangor, em que se conta a tomada de Coimbra em 987 e a de Montemor em 990. A reconquista abaixo Douro, pelo lado de Castela, fortalece essa persuasao. Falecido Afonso III em 910, deixou relativamente firmado o seu predominio acima do sistema montanhoso central. As incursSes orientals no seu tempo verificavam-se segundo uma linha ascendente, demarcada por Coria, Salamanca, Zamora. Seu filho Garcia I (909) continuou as incursoes no distrito de Toledo, que Ordo- nho 1 (914-924), seu irmao, depois de tres anos pacificos, continuou, 40 percorrendo, em outros pontes e outros partidos, os centres mugulmanos. De outra parte, encontramos Abdala (888-912) metido em graves insurreigoes internas, que seu neto e sucessor. Abderramen III (912-961) viu acrescidas das ameagas fatmi de Africa, so pensando seriamente na luta com os cristaos para responder as agressoes de Ordonho. Pegas de epocas diversas Lourosa naturalmente dependente de Seia, como a encontramos na baixa idade-media, veio a reentrar na definitiva posse crista pelas conquistas de Fernando Magno. Tomando este Seia, em 1056, para Ihe servir de padrasto e apoio na conquista de Viseu (1057) e Lamego (1058), cobrou Coimbra em 1064. O ano de 912 da iapide entra com seguranga na primeira recon- quista e, repetimos, as grandes razoes historicas que a apoiam conti- nuam a ser de base tactico-topografica. Assim ja o anteviu, no sec. xviii, o erudito Fr. Manuel Rocha: «fechadas as portas em Coimbra aos Mouros da Estremadura, so pela parte Oriental poderiam acometer a Provincia da Beira, a quem pelo Meyo dia serve de muralha a grande Serra da Estrella...» O mesmo repete e confirma quando trata do estado politico e militar das terras do ano de 900. 41 O nosso fim e o de inventario; iremos pois descrever so o que se encontra, no presente, de antigo e de novo e fixar classificagoes. O piano possui actualmente os seguintes elementos: um atrio aberto que precede a nave central, tres naves, transepto saliente, abside, dois absidi'olos que ficam no eixo das naves colaterais. Pe^as de epocas diversas As epocas das construgoes podem-se resumir: cabeceira moderna, transepto mogarabe, naves mogarabes na parte baixa, que e a das arcadas so, baixa idade media nos muros superiores aos arcos. atrio de tragado mogarabe. Ficou um razoavel grupo de pegas soltas encontradas nos muros mais recentes e especialmente no cheio do velho campanario, segundo dizem. Nao se coadunaria com o trabaiho deste inventario mas requeria um outro exclusive, a seriagao de todas elas, se eias se encontrassem em ordem e em bom luear. 42 Pertencem a variadas epoca's. Sao cm grande numero da epoca romana, como aras votivas ou funebres, uma delas ja vista pelo Dr. Ver- gilio Correia nuni muro fora da igreja (dedicada a Jupiter: lOM), outras que tinham sido adaptadas a mesa de altar cristao; visigoticas, como parecem das fotografias mas que, dado o amontoado dos restos se nao podem examinar e classificar com seguranga; mogarabes, como as vergas de frestas; medievais, ja do sec. xiv e nao do anterior, frag- mentos de colunas e bases com os capiteis de botoes florais; manue- linas, como uns rudes montantes de entrada de vao, e dos sees, xv-xvi quatro pedras com letreiros, lendo-se numa domvs / (ley e noutra, domvs martijni, nas outras, uma delas reempregue agora, ih(es)us; cabeceiras de sepulturas discoides e medievais; outras pedras de tem- pos modernos; bastantes incaracteristicas ou podendo abrangcr cpocas largas. Estao hoje estas pedras em verdadeiro abandono, esquecendo a entidade responsavel que elas sao elementos nao so dum estudo que nao acabou mas que este inventario inicia em novos moldes, como tambem sao pegas justificativas do trabalho feito. Nem o atrio nem o adro sao lugares proprios. Requere-se um pequeno recinto fechado, como se requere uma sacristia, anexa ou isolada, para a conveniente ordem das pobres alfaias da igreja. Descreveremos a igreja em certo pormenor. A cabeceira, isto e, a capela-mor e as colaterais, rectangulares, com o muro frontal e seus respectivos arcos, pertencem as obras actuais. Serviram de elementos para a sua planta alguns trajectos de alicerces, em disposigao regular, e que teremos de classificar de epoca indefinida, verificado o complexo da construgao total da igreja. Deveria ter dado uma forte sugestao para a adopgao desta planta e algados o estudo duma outra conjectural, publicada antes das obras e que fora pen- sada sobre a de certa igreja peninsular. Por esses tragados de fun- dagoes nada se podia deduzir do destine dos espagos; se tinham tido o de camaras, se o de absides, como tambem a forma e a disposigao dos seus acessos. O transepto e um, relativamente, extenso espago, tendo maior comprimento que a nave central, de largura inferior a desta mas supe- rior a das naves laterais. Excede estas naves laterais, para o exterior, num espago correspondcnte a largura delas. 43 E um ambito complexo, agravado o juizo que dele poderemos fazer pela incerteza do algado da cabeceira e do espago do cruzeiro. Reparte-se naturalmente em tres partes. A central, que e pro- priamente o quadrado do cruzeiro, que se liga as outras por dois arcos (OS que parecem agora arcos extremos da nave central e que nao sao), -- -^ Arcos do transepto tendo desaparecido a parede que cortava a nave e que era aberta de uni arco, arco triunfal, parede divisoria portanto do cruzeiro e da nave. As partes dos bragos do mesmo transepto abrem-se, no primeiro sector, para as naves laterais, ao lado W, por arcos identicos aqueles, e ainda do mesmo lado, mas no sector ultimo, por duas portas adinteladas, para o exterior; igualmente outra porta adintelada se encontra a cada topo (a N. e a S.). Deixaremos estes arcos para o descri^ao da nave. 44 Poderia ter havido mais um arco em cada ramo do cruzeiro, a separar os sectores, na linha das paredes externas das naves, mas parece nao se terem encontrado sinais claros disso. Vejamos os this topos. O topo do norte, tanto na fachada do topo (a N.) com na do lado da frontaria (a W.), isso e, nos lados do angulo recto que formam, apresentam um aspecto muito tipico da construgao, pois que nao forani refeitos nas obras. Nao e necessario ser tecnico de construgao para se verificar que nao houve ali uma obra regular mas somente um empilhamento sem metodo, de material anterior e que esse mate- rial e silharia romana, quer aproveitada directamente quer de obra visigotica para a qual ja tivessem procedido de igual forma. Este topo corta-se de uma porta rectangular, que tem a caracte- ristica de possuir um arco de descarga e timpano, a flor da paredc. So nesta porta e na do topo sul aparece tal arco; nao sendo ele mais que um aproveitamento de material igualmente romano, e mal acomo- dado, como um olhar atento bem discerne. A esquina da esquerda (a E.) foi refeita; a parede acima do arco e nova. Na parede lateral da direita (a W.) rasga-se uma porta rectangular, so com verga direita. Nas fotografias das obras ve-se ao lado e acima da porta um sarcofago usado como material de construgao, e mais para dentro e mais alto, no empilhamento mais regular (do sec. xii?) alguns modilhoes. Acima da porta a parede foi refeita. Estas portas rectangulares (voltas a W.), como as dos topos das naves laterais tem por linteis pedras antigas, de dimensoes varias, seguindo o mau tipo de construgao local que ainda hoje se ve nas constru^oes utilitarias de mais baixo nivel. O topo sul do transepto apresentava aspecto identico, so mais carcomido e com pedra mais miuda, sem solidez. Refeito, apesar do aproveitamento da pedra e da sua numeragao, nao serve de documento. pois que o documento e aqui so a propria parede sem deslocagoes. Foram encontrados indicios da porta lateral (para W.) do mesmo braQO. O interior do transepto. Aplica-se as partes extremas o que se disse relativamente aos respectivos exteriores. Agora ha a considerar OS dois arcos para as naves laterais e os outros dois divisorios do cruzeiro. Hoje esta parte do cruzeiro parece ser o comego da nave, mas nao era inicialmente. Na linha da parede do transepto encontraram-se OS dentados do que deveria ser parede com grande arco central, parede que seguia ate ao alto (podendo formar-se lanterna nesse espa^o rec- 45 Arcada do siil tangular do cruzeiro) e que deveria ter sofrido altera?oes no todo ou em parte, quando a nave alta foi modificada no sec. xii. Os quatro arcos existentes sao de igual tragado, so ligeiramente mais largos os do cruzeiro. Assentam em pes-direitos simples, com impostas chanfradas em cavado (e cortadas numa pedra mais alta que o seu perfil). O arco e ultra-semicircular, mas irregular, tendo o centro a mcnos de um tergo de altura, mas nao seguindo a linha do extradorso a linha ultrapassante do arranque, mostrando as juntas das aduelas convergindo irregularmente. A linha extrema da aduela do arranque fica ligeiramente retraida do extremo da imposta, como igualmente acontece nos arcos da nave, arcos que sao mais regulares. A curva interna e sensivelmente tangente a vertical do pe direito. Estes arcos encontram-se no mesmo cnlcgimento dos da nave, indicando unidade de construgao. 46 A nave central e so propriamente a parte das arcadas, porquc a dos arcos junto a cabeceira fazia parte do cruzeiro e transepto. Compoe-se, a cada lado, de tres arcos, que se apoiam medial- mente em colunas cilindricas, dum tipo dorico; aos lados, em pes- -direitos com impostas, do mesmo tipo'ja descrito. Esta parte so pertence a epoca mo(;arabe na rcgiao compreendida entre o solo e a primeira fiada acima dos arcos, sobre os quais se esta- beleceu o enlegimcnto ou nivelamento para o assentamento da parede superior, o que bem se nota pela parte da nave da epistola. Estes arcos da nave trazem muitos problemas. O fuste das colunas deve ser da epoca romana, bem como aquilo que serve de capiteis, que sao bases invertidas, e romanas, como tambem o sao as actuais bases, que foram sendo mutiladas e arredondadas atraves do uso dos seculos. Nas demoligoes foram encontradas igualmente colunas romanas, cortadas na mesma pedra dos pes-direitos, e bases respectivas de tipo atico e toscano, alem de fragmentos de fuste cilindrico e de bases diversas, tendo nos visto um outro fuste numa casa da aldeia. Os arcos sao de tra^ado mais regular. A aduela de arranque que e media entre arcos contiguos e Ihes e comum apresenta bom tragado. As aduelas da arcada sul e na sua face voltada para a res- pectiva nave lateral sao rusticadas, no mesmo tipo de blocos rusti- cados romanos que se encontram empregues nas paredes. Este rus- ticado sugere que grande numero de pedras dos arcos possam provir ou de blocos romanos aonde se cortassem as aduelas e se aproveitasse e afeigoasse o rusticado, ate mesmo podendo provir de outros arcos romanos (cujo tragado original obrigaria a mesma abertura de vao), como parece ter acontecido na visigotica se de Egitania, em cujas aduelas se veem ainda os sinais do forfex. O regular tragado dos arcos e o aprumo das colunas igualmente sugerem que, na reforma do sec. xii, tivessem sido desmontados para serem reaprumados (operagao que que temos visto realizar nas obras de beneficiagao e de restauro correntes), podendo haver nesse tempo um retoque geral. Na regiao de Coimbra o arco ultrapassado usou-se nas fortificagoes, e parece que so ai, ate a segunda metade do sec. xii. A regularidade das fiadas de cantaria acima dos arcos, a sua boa construgao, em que os perpianhos alternam com placas, e as juntas sao regularmente desencontradas, aliando-se-lhe a existencia duma facha lacrimal na parte sul, e ainda a continuidade das mesmas fiadas, que abrangem a nave e o cruzeiro, transgredindo a estrutura inferior, convencem da sua construgao num novo periodo artistico. Esse periodo artistico na regiao do Centro so pode ser depois do primeiro 47 ter?o sec. xii, possivelmente no ano medio de 1188 (Era de 1226) como se le na primeira imposta da arcada do norte. Esta reforma nao se deveria ter limitado a estas duas paredes, como certos restos pare- cem indicar. A nave lateral do evangelho (a do N.) lem a parede longitudinal inteiramente refeita, por causa do estado precario em que se encon- trava, nao servindo para estudo; conserva a do topo poente, porem remexida acima da verga da porta. Esta porta e rectangular, do tipo das do cruzeiro, voltada para este lado (o W.); a fresta foi encontrada. A nave lateral da epistola (a de S.) mostra igualmente refeita a parede lateral, cujos restos encontrados tinham a irregularidade geral do aparelho. A parede de topo, com a porta rectangular, ate a fresta nao foi remexida. Acima e ao lado da fresta ve-se, nas fotografias das obras, a pedra com o letreiro dos sees, xv-xvi, em que se le, domvs dey. Ja ai se encontrava no principio do sec. xviii, como diz certo manuscrito. O piano da galile ou narthex foi encontrado com rigor, bem como a cravagao das suas paredes nas da nave, e as da parede da porta axial. O mesmo aconteceu a parede frontal e ao seu arco (que ja bem se notava anteriormente as obras); nao sendo rigorosamente perceptivel a altura que as paredes tivessem originariamente, porque uma pedra com um entalhe nao foi inicialmente colocada com a finalidade que se julgou, nao sendo ela mais que uma pedra antiga em posigao de acaso. O arco e de volta inteira simples, de juntas irregularmente orien- tadas, rebordado dentro e no extradorso, bem como na aduela do arranque, por um cordao, tipicamente mogarabe. Por ter aparecido cortado o cordao do extradorso, foi-lhe cravado um novo. Antes das obras a porta da igreja seiscentista inscrevia-se neste arco. Os pes direitos, como ainda se ve bem das fotografias das obras, excediam a perpendicularidade da parte interna do arranque, isto e, o seu vao era mais apertado, como se ve de outro exemplar pre- -romanico peninsular. A pouca solides e a persuasao da perpen- dicularidade obrigaram ao desmonte da parede. A parede do topo da nave central e inteiramente nova, posto que se encontrasse o seu cravamento nas laterais. Sobre a porta colocaram a inscrigao da Era dccccl (ano de 912), que antes das obras se cravava interiormente, acima do arco da porta seiscentista e abaixo da moga- rabe, isto c, entre eias. Acima, na empena, reempregaram a janela geminada que havia sido trazida para a frontaria que existia antes das obras. A sua verga 48 e cavada por dois pequenos arcos ultrapassados: cerca estes e todo o perimetro da pedra um cordao duplo; assenta lateralmente em dois pilaretes quadrados, dotados de rudes bases e capiteis e integrados nos pes-direitos. Deram-lhe um pilarete medial, do mesmo tragado dos outros. O alto campandrio, que ficava na fronlaria da igrcja, ligado ao lado norte da fachada actual da galile, foi colocado isolado, para alem da cabeceira. A sua construgao pertence ao sec. xv avaiKjado, como a sua integragao na arquitectura do Centro indica. Na sua desmon- tagem foram encontrados muitos elementos antigos, mas infelizmente nao se sabe quais. Atraves daqueles restos disperses que nao oferecem duvidas, dos que estavam em construgao e do estado da igreja antes das obras podem-se definir os seguintes periodos de edificagoes. Desnecessario sera dizer que as obras dum seculo poderiam ja nao ser modificagoes da obra mogarabe mas de outra ou outras inter- medias, e que os mesmos elementos poderiam tambem ter passado por diversas reconstrugoes, umas vezes como elementos activos, outras como mero material de enchimento, tanto mais que se trata duma igreja muito pobre e de uma freguesia pobre. Uma igreja e um ediffcio vivo e, como tal, sofre continuamente modificagoes, podendo-se dizer que todos os cincoenta anos tem uma de certa importancia; e a dife- renga das que tem recursos ou nao os possuem reside so no volume e no valor da modificagao, como os trabalhos de inventario nos tem esclarecido. O campo cemiterial que se encontra no ediffcio e fora dele, de sepulturas antropomorficas e muito deterioradas, e de baixa epoca, nao podendo recuar para alem do sec. xii. Sobre tais tipos sepulcrais pode-se ler o estudo O Cemiterio Medieval da Se Velha do Prof. Virgilio Correia, que Ihe inserimos na colectanea Coimbra {Obras, vol. 1, 1946). O que existiu de notavel na zona da povoagao, constituindo ainda no sec. IX fonte abundante de material (tanto de cantaria como de ceramica), foi uma ou mais constru?6es romanas, entre as quais se deveria contar um santuario. Na epoca visigotica construiu-se, como parecem atestar pedras avulsas mas que no momento nao se podem examinar. Em certo modo, a parte do cruzeiro poderia pertencer a esse tempo se certas particularidades dos arcos se nao opusessem formalmente a essa hipotese. 49 A parte mais antiga acusa influencias moparabes e asturienses. De que epoca do dominio cristao, perguntar-se-a? Da primeira reconquista do territorio do Mondego, sees, ix-x? Da segunda recon- quista que artisticamente vai de 1064 ate perto do fim do mesmo sec. XI, que foi no Centro uma nitida epoca mogarabe. sob o governo do antigo vizir mugulmano D. Sesnando? O modo irregular de construgao, com o emprego sem metodo de silhares classicos e de material de toda a ordem, como acontece nas partes mais antigas das muralhas da cidade de Coimbra {Inventdrio, pags. 1, 3, 4, 6, 69), a inscrigao que ate ao fim do sec. xvii se deveria encontrar na fachada antiga, convencem que o ano que ela indica, e o da obra. A esta construgao nao compete a classifica?ao de moga- rabe; usamo-la por ser pratica; a sua verdadeira denominagao e a de arte da reconquista. No sec. XII, ano de 1188 da inscrigao, reformaram toda a parte alta da nave, logo a seguir a zona dos arcos, englobando a nave e o cruzeiro, suprimindo o arco intermedio destas partes, mas nao tocariam na galile. Seriam as obras feitas so pela vontade de modernizar? Nao; a definitiva reconquista deveria ter encontrado a igreja muito danificada, e depois duma precaria renovagao, impunha-se uma seria obra de consolidagao e de acomodagao aos novos tempos. Se faltam documentos do tempo intermedio para a alta bacia do Mondego, OS que se referem as zonas confinantes e incluidas na regiao tactico- -topografica, saidos dos arquivos de Lorvao ou da se mas para aqui trazidos do mosteiro de Vacari^a, dao o clima de toda a bacia fluvial. As duas fortes colunas monocilindricas do sec. xiv indicam tra- balhos que agora se nao podem definir. Dos sees, xv-xvi foram outras obras, indicadas pelos letreiros domvs dey e domvs martini (esta talvez duma capela de S. Martinho que existiu para a parte da cabeceira) e pelos dois ih(es)vs. A epoca manuelina denuncia-se pelos fragmentos dos pes-direitos dum vao. Ao sec. XVII pertencia a porta principal, incluida no arco da galile, e o arco da capela lateral aberta a direita do mesmo espa?o (capela chamada ultimamente de Nossa Senhora da Piedade, instituida por Simao Tavares e Susana da Barquia); porta e arco eram de arestas curvas sistcma originario do sec. xvi e que perdurou pelo de seiscentos. A estas obras deve corresponder a data de 1677, gravada na primeira imposta da arcada do sul. Seriam elas que modificariam a galile, que destruiriam a fachada da nave, provocando a colocagao da lapide de 912 no ponto em que foi encontrada, bem como a da janela geminada 50 na nova frontaria. A lapide e o arco ja la estavam no primeiro tergo do sec. XVIII, como diz certo manuscrito dessa epoca. A segunda metade do sec. xviii colocou o pulpito no arco medio do lado do norte, levantou o arco da capela-mor, avangando-o sobre a linha dos arcos laterals do cruzeiro, renovou os suportes do coro alto. Ao principiar o sec. xviii havia uma capela em mau estado, dos Martires. dificil de localizar. Os tres retabulos de madeira eram do sec. xix, imitando tipos setecentistas. A outras obras e impossivel determinar epoca. Assim acontece a uma escada que partia da saida (a W.) da nave do norte e se algava ao longo da galile; poderia ter servido de acesso a um campanario anterior ao do sec. xv, e que depois da reforma seiscentista da galile ficou a dar servidao ao coro. A igreja e hoje um edificio em que se conservam bastantes partes e elemenlos antigos, harmonizados dentro duma composigao de feigao complexa, entre piano mogarabe e algado romanico, como nao podia deixar de nao ser, dados os restos das constru^oes encontradas. Deveriam ter-se limitado as obras modernas a uma limpeza e a consolidagao, que ja nao pequenas dificuldades oferecia, dentro da finalidade cultual do edificio. Todavia ninguem aceitaria nessa epoca tal solugao, e a que se deu (temos de o afirmar em toda a verdade) foi a mais sobria das que se propunham e a mais aceitavel. Intervieram diversas pessoas, em fungao oficial ou espontanea. Nao e licito hoje censurar ninguem, devendo-se estar grato a todos que intervieram, porque todos eles, pelo seu concurso, ajudaram a salvar o monumento, e, acima de tudo, deram possibilidade de que se estudasse cada vez melhor. Todavia as obras nao se podem considerar acabadas; ha que salvaguardar os restos arqueologicos, ha que dotar o edificio de capa- cidade cultual, para que a pobre e boa gente local se nao sinta ludi- briada na sua confianga nem vexada nas suas convicgoes. A parte nuclear mogarabe desta igreja e de dupla ligao: historica e de historia de Arte. Mostra por um lado que o nivel economico nos principios daquela primeira reconquista nao era grande, por outro marca o esforgo reno- 51 .iwAt* ■mmsSSMi ■m A igreja de Lourosa vador numa regiao que nao era ponto capital do territorio que entao constituia fronteira. Esse esforgo e a ocupagao do territorio entre Douro e Mondego podem-se sentir, marcando num mapa as numerosas terras referidas nos escassos documentos que restam da epoca. Pela parte artistica, o nivel e fraco. Encontra-se um aprovei- tamento excessivo e sem metodo construtivo, do mesmo modo que aconteceu nas muralhas de Coimbra, das cantarias classicas (muitas delas em que e ni'tida a abertura dos ferros de luva, posto que noutras se confunda com as aberturas para as cunhas de desmonte das pedreiras), sente-se a ausencia de decoragao, e convencemo-nos que so deveria ter intervido um ou poucos canteiros mas de pequeno nivel, auxiliados pela mao-de-obra ocasional e sem pratica. 52 BIBLIOGRAFIA Vergilio Correia, A Igreja de Louiosa da Serra da Estrela, artigos na Folha de Oli- veira, \9\\\ A Igreja de Lourosa da Serra da Estrela, Lisboa, Janeiro de 1912; Monumentos e Esculturas, Lisboa, 1919 e 1924; A Vila e a Igreja de Lou- rosa, em Excursoes no Centro de Portugal, Coimbra, 1939; Ohras, vol. I, Coimhra, Coimbra, 1946. Jose Pessanha, A Architectura Pre-romanica em Portugal, em Terra Portuguesa, Lisboa, 1916 e 1917; S. Pedro de Balseniao e S. Pedro de Lourosa, Coim- bra, 1927. Joaquim de Vasconcelos, Presbyterio de Lourosa, em Arte, Porto, 1911-12. Marques Abreu, Arte Romdnica em Portugal, album, Porto, 1918; Gravuras das fotografias tomadas durante as obras, na sua revista Ilustra^ao Moderna, Porto, 1930-32. (Em «Inventario Artistico de Portugal — Distrito de Coimbra». Acad. N. de Belas Artes. Lisboa, 1952. Pag. 169-176.) 53 A ARTE MEDIEVAL EM COIMBRA SEC. X — SEC. XV ASPECTOS GERAIS ARTE DA RECONQUiSTA. Dois pen'odos de reconquista temos a considerar. O primeiro delimitado pelo ano de 878, tomada de Coim- bra pelo conde Hermenegildo. e pelas conquistas de Almangor (987 e 990). Todavia a posse de Coimbra foi precaria. Sabemos que S. Rosendo a teve de libertar do poder muQulmano em 968, mas regressando pouco depois ao mesmo poder, ate que, em 981, o rei D. Vermudo com os condes Gongalo Mendes e Gongalo Moniz a voltaram a retomar, ja quando Almangor, vencida a guerra da Mau- ritania e elevado ao califado Hixem II, comegou a exercer o mando como primeiro ministro, fazendo nesse ano o primeiro ataque ao reino leones. O segundo periodo e o do fim do sec. xi, e seguir a reconquista definitiva, marcada pelas de D. Fernando Magno: Ceia em 1056. Lamego em 1057, Viseu em 1058, Coimbra em 1064. Montemor-o- -Velho ja no tempo de D. Afonso V fora tomada por Mendo Luz, ser- vindo de posto avangado, mas demorando pouco tempo na posse crista. Esse segundo periodo e dominado pelo governo de D. Sesnando, que fora vizir de Almutadide, cadi de Sevilha. Faleceu em 1091. No primeiro periodo veio para a antiga Eminio o nome de Coim- bra, facto de grande importancia em todos os campos. Para compreender tal facto e necessario pensar-se na posigao tactico-topografica ocupada pela colina do Mondego e na importancia que a categoria eclesiastica de cidade episcopal representava na menta- lidade da epoca, na equiparagao que ela dava a Igreja e ao Estado, o que o Albeldense denuncia que, no tempo de D. Afonso III, «a Igreja renasceu e o Estado se ampliou». A posiQao tactico-topografica nao e meramente a local por si, mas a integragao desta na do centro do Pais, como bem viu, ja no sec. xviii, fr. Manuel da Rocha. 55 Sob esse aspecto, Coimbra-Eminio, vindo do norte, como veio a reconquista, sobrelevava na sua posigao de fortaleza a antiga Conimbriga. O bispado restaurado assentaria naturalmente na principal cidade da circunscrigao antiga; e a sua designagao, que era inalienavel, aca- baria, como acabou, por ir insensivelmente dominando. D. Afonso III, no ano a seguir ao que tomou conta do reino, e onze anos antes de se assenhorear de Coimbra (segundo os dados do epitafio episcopal) nomeou-lhe bispo, como esperanga de conquista (e nao como conquista efemera) e ainda como reinvindicagao dum direito, a Nausto (867-912), o que igualmente se verificou para mais partes. Conquistada Coimbra (878), manteve-se na Galiza falecendo a 22 de Novembro de 912 e sendo sepultado na igreja de Santo Andre de Trobe, perto de Santiago, cuja campa se conserva. No entanto outro bispo Ihe serviu de substituto na cidade reconquistada, agora sede do bispado, Froarengo. Bern pouco e o que resta da primeira reconquista: as fundaQoes das muralhas de Coimbra e a Igreja de Lourosa. As muralhas da cidade de Coimbra que atribuimos a esta epoca limitam-se as partes mais arcaicas das existentes. Na sua construgao reempregaram-se espessos silhares de iniludivel tecnica imperial romana, tendo vindo a luz, naquelas partes que tem sido demolidas, elementos sepulcrais do mesmo tempo. Esses silhares nao se dispoem em forma de construgao regular mas a mistura com pedras de varias categorias; sinal este que encon- tramos sempre como tipico (no distrito e fora dele) das obras do inicio duma ocupagao militar, feitas com todos os materiais mais a mao e executadas por pedreiros de acaso. Distinguem-se dois conjuntos, o das muralhas propriamente ditas e o da alcagova (hoje escolas maiores). Nao nos alongaremos, pois que no Inventario da Cidade (pags. 1 e segs e 99) demos a descrigao suficiente. As muralhas, reconstruidas a seguir a ocupagao (878), a vinda do nome de Coimbra e o desaparecimento do antigo (Aeminio), o assen- tamento aqui da sede do bispado, fazem deste periodo a base do ciclo moderno da cidade. A Igreja de Lourosa ficou suficientemente esclarecida na rubrica descritiva, tanto historicamente como relativamente a construgao. A obra fundamental corresponde a data duma pedra, ano de 912 (o mesmo do falecimento em Galiza do referido bispo conimbricense Nausto). 56 Pilastras visigoticas de Eira Pedrinha O conjunto actual nao passa dum complexo de construgoes: mo^arabe, romanico do sec. xii, e obra moderna. A parte do sec. X foi executada com o irregular reemprego de material romano e comp6e-se so da parte inferior ao nivel do fecho dos arcos da nave. De nenhuma forma se pode saber como foi o seu algado alto, nem convenientemente a organica da cabeceira. Essa parte antiga organiza-se, em planta, por meio da nave prin- cipal e de duas colaterais e ainda dum transepto que excede a linha destas. A nave e precedida por atrio, aberto para o exterior. A nave central separa-se das colaterais por duas arcadas de tres arcos ultra- passados, de colunas classicas reaproveitadas; estando-lhe agora englo- bado um espago que pertenceu ao cruzeiro, e que seria separado dele por um largo arco. O transepto decompunha-se em cruzeiro e nos dois bragos, sepa- rados deste por dois arcos ultrapassados e levantados em pes direitos; dois outros arcos comunicam os bragos com as naves colaterais. O atrio e rectangular e conserva o arco semicircular antigo mas restaurado. A parte alta da nave, acima dos arcos, pertencente ja ao sec. xii (ca. 1188). As pedras soltas encontradas nas demoligoes sao de epocas diver- sas, desde a romana aos tempos modernos. A unica igreja, concluiremos, da primeira reconquista existente no centro do Pais e dum nivel artistico baixo, com aproveitamento excessivo das cantarias classicas e sem metodo construtivo; arte de ocupagao ainda precaria do territorio e nao de desenvolvimento normal. A esta primeira reconquista pertence uma nota historico-artistica. Sendo Primo abade de Lorvao (ca. 966-985) veio de Cordova o mestre Zacarias, certamente chamado para as obras laurbanenses. O Con- celho coimbrao pediu-o ao mesmo abade para as construgoes privativas; o proprio abade o acompanhou; dirigiu a duma ponte ao Ilhastro, outra em Coselhas, outra junto do Bugaco e finalmente a da ribeira da Forma com moinhos anexos. O segundo periodo, o do governo de D. Sesnando, na reconquista definitiva, e historicamente, como os documentos revelam, um periodo mogarabe. Infelizmente, ao lado do grande nome do repovoador, ao lado dos documentos que indicam o renovamento da vida local, nao ha restos a justapor. A este periodo deve corresponder uma porta do mosteiro de Lorvao. Encontrada muito danificada, foi restaurada. O seu tragado, irregular, 58 I e em forma ultrapassada. Parece poder ter lido a fungao de porta de entrada de torre de defesa. I I A arquitectura romanica no centro do Pais forma grupos crono- logicos e artisticos, distintos entre si, sucessivos mas nao produzidos por evolugao local. Desenvolveu-se dentro do sec. xii. Sao esses grupos: proto-romanico, romanico condal, romanico afonsino. ARQUITECTURA PROTO-ROMANiCA. Designamos assjm aquele estilo em que sobre o fundo peninsular, mogarabe, se veio enxertar o roma- nico europeu. Castelo de Soiire. Este castelo, ou melhor, o seu niicleo antigo, e o unico exemplar com que nos deparamos. Deve ser colocado na primeira vintena do sec. xii, talvez ja quando na cidade de Coimbra se construia no romanico condal. Representa a arte do fim do sec. xi e do inicio do xii. O castelo era um quadrilatero, formado por cortinas com torres angulares, destinado a residencia. Obra modesta, levantada por pedreiros de acaso, com reemprego de material vario e especialmente de cantarias romanas. Os elementos caracteristicos sao as pequenas janelas do andar principal. O seu arco duplo e cavado num lintel unico, seguindo tragado ultrapassado e irregular. O unico colunelo medio e rude, de feigao romanica. Torre militar de Bera — (freg. de Almalagues). Podera colocar-se nesta fase. Todavia a falta de elementos decorativos nao deixa fazer dedugoes; e essencialmente um documento destinado a esclarecer a ocupagao das terras na margem sul do Mondego. Pequena, de apa- rellio irregular e rude, encontra-se em ruina avangada. ARQUITECTURA ROMANICA CONDAL. Bem longe cstavamos, em 1938 (Novas Hipoteses acerca da Arquitectura Romanica de Coimbra) , quando nos referimos a esta fase artistica, classificando-a de roma- nico A, que passados anos haveria de ser avultado o niimero e o valor dos exemplares descobertos, em contraposigao com uma so igreja, 59 a de S. Joao de Almedina, que as obras do museu acabavam entao de revelar. Nao ha urn edificio complete; todavia, como os restos de cada um sao de partes arquitectonicas diversas, pcdemos ajuizar conveniente- mente do conjunto. Para as naves serve S. Joao de Almedina; para a cabeceira, S. Pedro, Santa Maria da Alcagova e S. Paulo de Frades; para o claustro, S. Joao de Almedina; na decoragao capitelar, S. Pedro, S. Joao, Montemor, Soure; na escultwa figurativa S. Joao e Sepins. Atraves destes edificios nao se encontra um centro ou centros principais, com desenvolvimento em edificios satelites; aparecem diversas oficinas afins e trabalhando quase ao mesmo tempo. A sua epoca e o primeiro tergo do sec. xii, no tempo do governo do conde D. Henrique e do periodo de conde de seu filho D. Afonso, o primeiro rei. Talvez, e dizemos talvez porque nao ha restos esclarecedores, que viesse a primeira oficina para a reforma da se conimbricense, feita sob a egide do conde D. Henrique, cerca de 1 108. Veio do Norte o estilo ja formado e durou uma so geragao. Cerca de 1130 apareceu Roberto com companheiros mais bem dotados, tanto na arte de construir (alvenaria e cantaria) como na escultura decorativa; desaparecendo estas pequenas oficinas condais. Ao contrario, no norte do Pais, onde se reconhecem tres oficinas mestras com respectivos sub-grupos, este romanico condal prolon- gou-se, posto que modificando-se; as correntes novas nao tiveram aqui vigor suficiente para suplantar de vez a velha fase. Era pois o romanico condal uma arte generalizada no pequeno condado entre Minho e Mondego, no primeiro tergo do sec. xii. Tomou em Coimbra uma graga maior porque o calcario dava outras facili- dades que nao o granito nortenho. Nao obstante a obra de canteiro e dura, como deficiente e o seu assentamento; excedia a do proto- -romanico mas ficava muito aquem da afonsina. Os seus restos, descritos em resumo, sao os seguintes. Igreja de Santa Maria da Alca^ova em Montemor-o-Velho. Guar- daram-lhe, na reforma manuelina, a cabeceira anterior, a que foi sagrada entre 1 128 e 1131. Formam-na tres absides pouco profundas, semicircularcs, conservando abobadas tanto a central como a cola- teral esquerda, que sao simples, sem arco de reforgo, sendo as paredes de alvenaria. Capitel isolado, na mesnia vila. Foi encontrado avulso, fora ja da linha das muralhas. Nas respectivas faces vem-se figuras humanas, do mesmo tipo das de S. Joao de Almedina. 60 Igreja de S. Joao de Almedina, em Coimbra. As obras de arranjo de salas baixas do museu e antigo Pago Episcopal permitiram trazer a luz o piano da parte ocidental da igreja e o angulo SO do claustro anexo. Datam estes restos da reconstrugao que se executava em 1 128-1 131. Era de tres naves, nao devendo ter mais de tres ramos. Os pila- res seriam cruciformes, suportando arcos longitudinals e Iransversos. A porta principal era muito larga. Havia duas portas travessas, no segundo tramo, urr.a para a rua outra para o claustro. O claustro, de cobertura lignea, era formado de arcadas pequenas e simples, apoiadas em alto parapeito. Colunelos monocilindricos sustentavam arcos de arestas vivas. As bases das colunas seguem o tipo atico, tendo algumas a esco- cia alta, mugulmanizante. Os capiteis sao no claustro de tipo floral simplificado e duro. Alguns do portal deviam ser figurativos. Foram encontrados restos dum relevo de figuras. Muito notavel foi o aparecimento, em 1938, de fragmentos de grandes figuras de profetas ou de apostolos, no mesmo estilo duro de todas as represen- tagoes humanas do tempo. Igreja de S. Pedro, de Coimbra. Conservava esta igreja. como dissemos no Inventario da Cidade, antes das demoligoes gerais da Alta, parte da sua reconstrugao no primeiro tergo do sec. xii, isto e, a cabe- ceira: as duas absidiolas laterals, semicirculares (mas com abobadas posteriores) e a parte recta da capela-mor, mais profunda que na Alcagova e em S. Paulo de Frades. Descobriram-se nas paredes da mesma capela-mor e a cada lado, um arco duplo, ornamental, separado por pilastra quadrada e ornada de temas vegetais, assentando num par de leoes mutilados. As demoligoes das alvenarias trouxeram a luz diversos capiteis muito tipicos: uns derivados do corintio, outros decorados de entrelagados vegetais, ou com quadrupedes ou aves contra- postas e, na face dum deles, uma sereia. Deviam ser comuns, nos pila- retes e nos colunelos decorativos, as bases em forma de leoes sentados. S. Paulo de Frades. A capela-mor pertence a epoca de que tra- tamos. Larga e baixa, divide-se em parte recta e parte curva com abobadas respectivamente de canhao e quarto de esfera. Um arco simples abre a entrada e outro separa as duas partes. O azulejo e as argamassas nao permitem ver pormenores. Externamente ha na parte da metade inferior tres magros e indecisos contrafortes e um cordao; a cornija e trecentista. Sepins. Conserva-se so um pequeno timpano, cravado na parede interna da moderna capela-mor. Gravaram-lhe na base o letreiro: Pertencia a antiga Igreja e.sta pedra com a data de II 18. 61 Capitel avulso, em Montemor-o-Vclho. Sec. xii A data e aceitavel como ano de Cristo, nunca como era hispanica. Todavia nao e de presumir que o letreiro antigo tivesse sido lido com rigor, tanto mais tratando-se do meio rural e da epoca da reforma; mesmo nas cidades e muito raro que as leituras antigas dos letreiros medievais sejam bem feitas. Representa Cristo sob urn arco de dois coluneios, sentado num trono, cujo subpedaneo e recortado com quatro arcos de ferradura; havendo, aos lados dos arcos, dois simbolos dos evangelistas, a aguia e o homem. Tecnica dura, tanto nas folhagens como nas tiguras, que sao do mesmo tipo de S. Joao de Almedina. O tra(;ado dos arqui- tos do escabelo e um aspecto do mugulmanismo que se manifesta cm certa parte do romanico condal do Centro e do Norte. Soure. Capela de S. Pedro da Vdrzea. Conserva-se o arco triunfal. Os dois capiteis sao dum corintio degenerado. Os chanfros dos abacos sao decorados. Aqui o trabalho ainda e mais duro que nos outros exemplares. ARQUITECTURA ROMANICA AFONSiNA. Dcixamos suficientemcnte esclarecida a origem e evolugao desta fase romanica no volume Novas Hipoteses acerca da Arquitecturo Romanica de Coimbra (Coimbra, 1938) e em pequenos trabalhos posteriores, que aclaram e completam aquele. A igreja antiga do mosteiro de Santa Cruz, de que existem restos, cuja primeira pedra foi lan^ada em 1131, mostra-nos esta fase do romanico em plena maturidade. Por um lado, nao se notam lagos com a fase condal; os seus canteiros, alveneis, arquitecto, decoradores, eram outros e dotados em nivel superior. Por outro, liga-se intima- mente com o edificio primacial do periodo, o da Se Velha. Estabe- lece uma unidade, artistica e de tempo, bem definida. Nao e o romanico afonsino produto duma evolugao local ; aparece- -nos como uma invasao duma oficina completa, provinda duma regiao estranha, como que uma camada sedimentar que se tivesse depositado sobre outra de formagao diversa. Ate as proprias siglas dos canteiros sao diferentes das da epoca condal, pelo tamanho e desenho. Todavia nao ha centro nenhum em que se tivesse dado esta simultanea evolugao arquitectonica e de escultura decorativa. Santa Cruz aparece-nos como um laboratorio onde sc fundiram as direcgoes do arquitecto e as capacidades dos canteiros; aquele, Roberto, homem da Basse- -Auvergne, valorizado pela passagem nas igrejas de peregrinagao, estes, provindos duma oficina afim da do claustro de Silos. Um desses homens seria Bernardo. Soeiro, o ultimo mestre a intervir na Se 63 Velha, pertencia a segunda geragao, a que levantou as ultimas igrejas paroquiais da cidade. Igreja de Santa Cruz dc Coimbra. Langaram-lhe a primeira pedra a 28 de Junho de 1131, devendo estar acabada em 1150. Os restos arquitectonicos existentes permitiram-nos a reconstituigao da sua organica; os fragmentos da decoragao, incluidos em muros ou que se encontram no si'tio proprio, definem com clareza a sua cate- goria e fornecem elementos suficientes de iigagao com as outras obras que se seguiram neste periodo. Foi aqui que mestre Roberto aprendeu a utilizar os canteiros, que tinham tido um aprendizado diferente do seu, e em que eles se habituaram a sua maneira de ver, e onde ele con- cebeu certas formulas, como a do portal, as quais haveriam de ficar fundamentals nesta fase romanica. Precedia a igreja um narthex fechado, que tinha a fungao de torre defensiva. Compunha-se de dois andares; o de baixo dividido, por pilares, em tres tramos longitudinals abertos para a nave e de quatro transversos. A nave era uma construgao excepcionalmente robusta, bem con- cebida como nenhuma outra. Foram as obras posteriores, como as do sec. XV, que causaram a ruina da abobada principal. Compu- nha-se de alta nave e da largura da actual, coberta de bergo, tendo tres capelas a cada lado, e estas com fortes abobadas de alvenaria, dispostas perpendicularmente aquela. Formava o conjunto um macigo estatico de primeira ordem. Para a nave abria-se a abside e mais dois absidiolos. Na frontaria do narthex foi concebida a formula que se ve na Se Velha. Se Velha de Coimbra. Devia ter sido comegada por 1162, ano da subida ao pontificado de D. Miguel Salomao, e estar terminada em 1184, data da mesa do altar. Posto que de pequenas dimensoes, pode Roberto fazer com ela um modelo reduzido das igrejas da sua regiao natal, completadas do que examinara nos grandes santuarios de peregrinagao (como seriam Toulouse e Compostela). Teve porem de se amoldar as condigoes topograficas criadas pelo edificio anterior, ao reduzido raeio populacional e as medianas receitas catedralicias. Residia ja em Lisboa, dirigindo aqui a obra Bernardo e depois da sua morte Soeiro. Comp6e-se a Se de tres naves, transepto simples e tres capelas de cabeceira, sem deambulatorio. As naves laterals sao dominadas 64 .^'•- / Se Velha. Sec. xu de grande galeria de triforio e com a mesma largura que aquelas pos- suem, abrindo-se para a nave por arcos duplos, no tipo das igrejas de peregrinagao. «A construgao, como dizia o restaurador, o Prof. Antonio Augusto Gongalves, prosseguiu, desde o principio, sern solugao de continuidade, na vigencia e unidade do mesmo estilo». Nao se chegou a levantar a lanterna do cruzeiro posto que pro- jectada, como se ve do arranque; foi ja o gotico que a completou. O aspecto externo e o de uma fortaleza tendo os adarves e os salientes a mesma altura. Na verdade foi concebida como fortificagao rudimentar; dando a certeza disso nao so o ameado normal da epoca mas principalmente as ligagoes internas feitas por meio de galerias e escadas, que estao dispostas para uma circulagao sem descontinui- dade; a larga janela sobre a entrada, dispositivo concebido em Santa Cruz na frontaria do narthex-torre de defesa. Na Se Velha, como nas outras igrejas menores, a torre dos sinos estava isolada, destinando-se tanto ao fim proprio como ao de torre de refugio. S. Salvador de Coimbra. Reside o interesse desta igreja, bem como acontecia com a de S. Cristovao, em se tratar duma simplificagao estrutural do estilo criado em Santa Cruz, realizada pelas oficinas secundarias, que os aprendizes dos primeiros mestres iam formando. A lapide de 1179, que comemora a benemerencia de Estevao Martins mandando fazer o portal, da-nos a data media. Levantou-se o templo quando ja ia adiantada a Se Velha. Comp6e-se de tres naves, de transepto e tres capelas absidais, mas conservando so a da epistola. As naves sao de tres tramos, com colunas monocili'ndricas; o transepto nao e saliente, indicando-se porem por uni degrau e por um pilar de duas colunas, que substituem esteticamente a col una monocilindrica. A frontaria segue modestamente o tipo criado no narthex cruzio. A torre dos sinos encontra-se isolada. Deveria ter sido erguida ja no sec. xiii. Pica a porta de entrada a um ni'vel alto, como era proprio de torre de fortificai^ao. S. Cristovao de Coimbra. Foi destruida no seculo passado. Conservam-se desenhos, capiteis e os sens muros laterais formam ainda as paredes externas do teatro que a substituiu. Nao ha documentos que indiquem directamente a data da sua construgao; pelos desenhos e restos, conclui-se que deveria ter sido levantada na segunda metade do seculo, possivelmente ja depois de S. Salvador. 66 Formavam-na tres naves dc quatro tramos, e se tinha transcplo nao era acusado em planta; Ires capelas absidais, sendo poiigonal a do meio. Deviam as naves ter, alem dos arcos longitudinals, outros transversos: todavia a abobada, a que ha referencias, era de epoca muito posterior. A frontaria modelava-se igualmente pela do narthex cruzio. A pseudo-cripta encontrada, com tres absidi'olos, poderia repre- sentar a pequena igreja inicial, do primeiro tergo do seculo, mas difi- cilmente. Santa Justa dc Coimbra. A inscri^ao funebre do presbi'tero Rodrigo, falecido em 1155, diz-nos que ele construiu o templo, o claustro e edificios anexos. No sec. xiv a igreja foi inteiramente re form ad a. Um pequeno capitel e uma base, encontrados em 1936, mostram que a reedificagao rodriguina era da epoca do romanico afonsino. S. Bartolomeu de Coimbra. Um grande capitel esclarece a sua reconstrugao neste mesmo tempo. Penela. Na Igreja de Santa Eufemia serve de pia de agua benta um capitel deste periodo, certamente da obra romanica desta igreja. ARQUITECTURA CIVIL. Tratamos da torre de menagem do castelo de Coimbra no Inventdrio da Cidade (pags. 2 e 232) e mostramos quando era perfeita a sua construgao. A alvenaria tinha a mesma perfeila execugao e assentamento que se ve na Se Velha. Como obra de for- tificagao, excedia o que se fez antes e depois. O nivel do primeiro piso ficaria a mais de dois metres acima do terreno do assento dela, sendo preenchido esse espago por um macigo de betao de primeira ordem; em contraposigao com os de terra batida das torres proto- -romanicas de Soure e o de burgau e argamassa da torre vizinha, a quinaria, de D. Sancho I, como adiante se dira. O mesmo aparelho perfeito se nota na ponte da Redinlui (dist. de Leiria), no dominio dos Templarios, que eles povoaram prosse- guindo no repovoamento dos terrenos, abaixo do seu primeiro dominio de Soure. Fica esta ponte na parte oposta da vila, em relagao ao transito habitual. A porta de arco de ferradura, no exterior do antigo pago episcopal, hoje museu regional, e quanto resta duma cerca de resguardo da Igreja de S. Joao de Almedina e do mesmo pago. Tem duas faces, com espago para alojar os batentes entre os ressaltos internos quando se 67 '■k._ r^ "_vjf''-'^f^ S. Cristovao de Coimbra. Sec. xii i abriam. O arco externo rasga-sc no rectangulo do alfiz. O aparelho indica nitidamente o periodo afonsino. Esta forma de arco conser- vou-se nas entradas das fortifica(;oes, tendo havido em Coimbra no periodo condal o provavcl exemplar da porta da Traigao, e devendo ter lido esse mesmo tragado o vao da porta de Almedina. ARQUITECTURA ROMANICA FINAL. Nao constitui lima fasc dis- tinta do romanico afonsino, isto e, nao estabelece uni corte ou um sub-grupo; nao e mais que a sua evolugao, a sua fase de declinio. Obra da segunda geragao, dos discipulos dos intrcdutores, tem um aspecto equivalente na escultura quinhentista final, a dos disci- pulos dos mestres estranhos. Encerrados neste meio, sem contactos, limitaram-se a reproduzir cada vez mais debilmente a obra anterior, com uma outra ligeira novidade. Assim aconteceu na arquitectura como na escultura decorativa. Os proprics arcos continuaram semi- circulares, apesar do norte do Pais ja ter iniciado os quebrados. Essa obra de desagregagao comega a sentir-se no Salvador e em S. Cristovao, como foi dito. S. Tiago de Coimbra. A sagragao, a 28 de Agosto de 1206, indica o termo das obras. Divide-se em tres naves de igual numero de tramos, terminadas por um transepto. As naves sao separadas por colunas monocilindricas ; o cruzeiro e demarcado por pilares quadradcs e de quatro colunas adossadas, por um degrau no solo e por uma leve reentrancia na forte espessura das paredes. Nao ha arcos longitudinais, process© de que ha mais exemplos no Pais. Eram tres as capelas absidais, conser- vando-se totalmente so a do Evangelho, exteriormente poligonal como ja era a principal de S. Cristovao. Sao muito espessas as paredes, pois que se destinavam a ter adarves com ameias. A frontaria era como a da Se Velha; de corpo medio, o do portal, e OS contrafortes-cubelos dos angulos, isto e, na tradi^ao do narthex cruzio. Nas obras da primeira restaura^ao interpretaram mal certos restos, que eram de epoca posterior, e uniram a parte alta. A novidade encontra-se no grande oculo, do qual o fim do seculo peninsular ja da exemplos. Os portals acusam maos diversas, apresentando o do sul certa interpretagao mugulmanizante dos ornatos, especialmente na faixa que debrua o arco externo. 69 PorU\ da ccrca privativa do paQO episcopal. Sec. xii Lorvao. No linal do seculo, nas vcsperas dos monges serem espoliados, tinham elcs mandado erguer, pelo menos, o claustro. Foram encontrados alguns capiteis e abacos, de ornate bastante deca- dcnte. Nota-se aqui um regresso a decoragao dos chanfros dos abacos, lugar aonde o romanico afonsino so colocava molduras. S. Tiago de Coimbra. Sec. xii Capela de S. Tome, de Soure. Pequena, como capela de quinta, com corpo e capela-mor, porta lateral de vao redondo e sem ornatos, desprovida ja da antiga frontaria. Tern a capela-mor parte recta e parte curva, em piano, e ainda abobada. Os capiteis sao tipicamente desta epoca final. Igreja de S. Pedro, de Leiria. Posto que ja fora do distrito, incluimo-la aqui. para completarmos o conjunto romanico conim- bricense. Data dos fins do sec. xii ou principios do xiii. Levantada pelos cruzios que tinham o dominio eclesiastico da regiao, quiseram dar-lhe certo aspecto da sua igreja monastica, dotando-a de tres capelas abertas para a nave linica. 71 Capitcl de S. Pedro. Sec. \ii Encontram-sc duas orienlagoes escultoricas: a dos capileis das absides, perfeitamente coimbra, e a do portal mais evolucionada, com certa independencia. As figurinhas do mesmo portal terao adiante a referencia exigida. Capela de S. Miguel e Igreja cle Santa Maria, cle Pomhal, (dist. de Leiria). Se a torre de menagem do castelo e obra do sec. xii, do mestre do Tempio, Gualdim Pais (rude, como tendo sido executada por pedreiros de acaso), no fim do sec. xii todo o castelo sofreu uma larga ampHagao e reconstrugao, como haveria de ter outra no principio do sec. XVI que haveria de obliterar aqucla, em grande parte. Construiram os freires uma pequenina capsla dentro da primeira cerca, a de S. Miguel, de que se encontrou a parte baixa da abside; na segunda cerca, a igreja grande, de Santa Maria, de que igualmente resta a parte baixa da capela-mor. Os breves elementos decorativos achados sao do mesmo tipo do portal de S. Pedro de Leiria. Tomar. Na igreja poligonal do castelo, empregaram os templa- rios um ou mais escultores de capiteis, idos de Coimbra; sao esses capiteis os dos arcos da parte central. No resto do Pais ha capiteis de imitagao dos conimbricenses; sao ja generalizagao de tem.as feita por canteiros isolados. O aparecimento e desenvolvimento da arquitectura romanica, tanto condal como afonsina foi puramente um facto artistico, pro- vocado pelo natural movimento de emigragao dos artistas, sua coorde- nagao em oficinas locais e seus desdobramentos. Em nada influiram as ordens religiosas ou militares. como Cluny, Premonstrado, Regran- tes de Saint Ruf, templarios, ou os prelados ou os principes. Todos OS individuos destes grupos utilizaram os artistas que havia ou que naturalmente apareciam e nada mais; nenhuma fonte documental ou presun^ao razoavel demonstra o contrario. ARQUITECTURA MiLiTAR. Duas torrcs mandou construir D. Sancho nas fortificagoes da cidade, a torre quindria, no castelo, e a torre da Estrela. Foi aquela mandada levantar em 1198 e esta de 1209 a 121 1. Eram ambas poligonais. Aquela. posto que arrasada na epoca pom- balina, conservou as fundagoes, incluidas nos aterros, como se encon- trou no desmonte dos mesmos. Tinha, como a da Estrela, as faces de alvenaria e so os angulos de cantaria. O maci(;o interno era de betao, mas em lugar dos fortes blocos de pedra encorporados na abun- 73 dante argamassa que se encontraram na torre de menagem, eram burgalhaus, tambem em boa argamassa. A torre da Estrela conserva ainda uma certa altura, desde o nivel aproximado do largo da Portagem ao do alto da ribanceira. Ja se estava longe da boa tecnica dos grandes mestres afonsinos. ESCULTURA ROMANiCA. EPOCA CONDAL. A escultura de figura humana, que nos aparece tanto no timpano de Sepins como nos frag- mentos de S. Joao de Almedina, e dum nfvel baixo. Em Sepins, tanto os rostos como as extremidades entram no caracter do espontaneo e do ocasional, proprio dos artistas que nao conseguiram dominar a arte dos seus contemporaneos. O pregueado, dando desconto ao esquematismo do tempo, sofre do mesmo defeito e e desprovido daquela estiliza?ao ordenada com que se obtinham bons efeitos. Nos fragmentos de S. Joao de Almedina, entre os quais entra um busto, e no capitel de Montemor o caracter e o mesmo. A escultura decorativa dos capiteis tem dois conjuntos, o do claustro de S. Joao e o de S. Pedro. No claustro de S. Joao de Almedina sao os capiteis pequenos e de ornato simplificado. O abaco e direito e a cesta nao se acusa. Formam-nos folhas altas, quer lisas quer riscadas de nervuras, quer a pender-lhe da ponta uma bola, juntando-se-lhe um ramo duplo de cauliculos, que partem tanto de baixo como so aparecem no alto; ou folhas baixas e cauliculos superiores; ou cauliculos partindo da base do capitel com as folhas transformadas numa especie de palmetas invertidas e so riscadas. Os capiteis encontrados nas demoligoes da igreja de S. Pedro de Coimbra tem maior caracter porque, pertencendo as colunas das naves, ofereciam largo espago a decoragao. Sao OS abacos rectangulares, sem reentrancias, com o listel liso ou adornado duma corda, nao havendo indicagao de cesta. Os de folhas, ou mostram estas sobrepostas em tres ordens, com esfe- ras pendentes, ou folhas altas tendo pendente um rosto. A ornamentagao dos capiteis de animals ou de hastes entrelagadas segue um diagrama geometrico em que as linhas de simetria se dis- poem ao meio das faces e nos angulos. A simetria dos ornatos e rigorosa, conforme as orientagoes mugulmanas; o seu recorte e ver- tical, tendo so os animals certo modelado. Os leoes e pombas, dos pares contrapostos, sao tratados como meros temas de ornato; uma 74 Capitel da Se Velha. Sec. xii sereia, que aparece na face lateral dum deles, se adaptou ao diagrama geral. Os temas animals eram muito procurados; alem da sua apre- sentagao principal no corpo dos capiteis, aparecem ainda so cabegas de feras segurando folhagens, tanto nos mesmos capiteis como nos frisos; leoes aos pares e sentados servem de base as pilastras e a grupos de cinco colunelos unidos. As folhagens nas pilastras, esculpidas so em dois pianos, ou sao representadas como hastes onduladas com folhas ou so como folhas sobrepostas, ou ainda como folhas-palmetas dentro de espagos cor- diformes. Os capiteis da capela de S. Pedro da Varzea, em Soure, mais rudes, mostram uma zona de meias folhas, pendendo esferas da ponta das angulares e uma outra zona de cauliculos, saindo botoes dos espagos medios nas duas zonas. O chanfro do abaco orna-se ainda. * * EPOCA AFONSINA. A figura humana, que era dura e popular na epoca anterior, nao aparece nesta senao como acidente de ornato num ou noutro capitel. Os escultores afonsinos viam que a anterior era ma mas, nao a sabendo executar, omitiam-na simplesmente. Para a figurativa dos retabulos e frontais havia artistas de prata e cobre, como OS documentos revelam. A maior placa decorativa que neste periodo nos aparece e de representagao animal, a do Agnus Dei da desaparecida igreja de S. Miguel de Mirleus: um cordeiro (de hastes caprinas, como os de Apocalipse de Lorvao) entre espirais de folhagem. Digamos inicialmente, em relagao a escultura ornamental: o ornato desta epoca nao tem nada com o da anterior; a sua origem esta num centro afim da parte primitiva do claustro de Silos. O capitel e o principal lugar do ornato, possuindo um caracter nitidamente hispanico. Tudo o distingue do condal, o esbogo, a decoragao vegetal, animal e geometrica, como ainda a seu sentido de estilizagao e composigao. A forma geometrica do capitel comp6e-se de dois elementos ni'ti- dos o abaco e a cesta. O abaco, encurvando e com a saliencia media, e a cesta, sempre bem desenhada, sao os elementos de fundo a que se adapta o ornato. So nos capiteis das partes secundarias do ediffcio ou nas oficinas de segunda ordem se nao vem acentuados. A estes elementos de fundo vem juntar-se o esbo^o geral, que fica a constituir a envolvente sempre clara do ornato; na parte superior, cerca dum tergo, apresenta a forma dum paralelepipedo, descaindo rapidamcnte para o cilindro inferior. Tao sintomatico e esta forma 76 que o Prof. A. Augusto Gon^alves o denominava «galbo de elegancia arabe», nao se referindo aos capiteis contemporaneos iras aos gra- nadinos, o que era uma simples considera(^ao estctica c nao indica(;ao de filiagao. O ornato dispoe-se segundo linhas verlicais de simelria do capitel: linha media das faces, linha dos angulos e, nos que sac ornados com mais elementos, ainda outra linha intermedia. A mesma simetria, absoluta ou equivalente, se encontra nos tem.as florais e na disposigao dos animais. Os tipos de decoragao nao sao numerosos, numerosa c a variedade de OS intercambiar e interpretar. Nos tipos florais nao sao vulgares as folhas sobrepostas do genero corintio. Sao comuns: o tipo de folhas altas (lisas, divididas a meio, onduladas, etc.) com pequeno desenvolvimento das hastes cauliculares; o de folhas baixas, com grande desenvolvimento das mesmas hastes; so hastes cauliculares ascendentes com os encurvamentos superiores; entrelaces de hastes foliadas, ou so de hastes simples, como se a com- posigao fosse estudada para ornato de friso. Os capiteis animalistas contem leoes ou quadriipedes indetermi- nados, pombas, pavoes, centauros, dragoes alados, grifos, aspides, basiliscos e ainda homiinculos na fungao de atlantes angulares. Estes animais (so com raras excepgoes), tanto os colocados em disposi^ao oposta ou contrariada, tem uma posigao sensivelmente natural e sem se sobreporem, a excepQao dos dragoes que, em virtude de se Ihe poderem alongar os pescogos e as caudas, desempenham a fungao e produzem o mesmo efeito dos cauliculos desenvolvidos. O mu?ulmanismo de interpretagao dos motivos decorativos foi enunciado ja em 1935 pelo Prof. Doutor Vergilio Correia. Os tumulos reais e principescos, que deveriam serem ornados desapareceram. Os cruzios de S. Teotonio e do bispo D. Miguel Salomao sao inteiram.ente lisos, mostrando so o letreiro no corte de tampa, sobrios como convinha a dois monges. O ornato popular da tampa deste ultimo foi-lhe oposto no seculo xiii, ou epoca proxima. EPOCA FINAL. Reaparecc timidamente a figura humana, como manifestagao de influencias externas pouco profundas. O tinmilo do Infante D. Henrique, filho de D. Sancho I, no claustro de Santa Cruz, apresenta na face o busto dum anjo de asas estendidas, sob largo arco de folhas espalmadas. 77 O portal de S. Pedro de Leiria tern nos arcos internos bustos, reduzidos as cabegas e a bragos filiformes, que se agarram ao toro angular. Posto que o escultor fosse um homem de Coimbra, tinha visto, directamente ou num outro portal de imitagao, o arco esquerdo do portal ocidental de Santiago de Compostela. A figura humana ainda aparece. uma ou outra vez, no ornato capitelar, como em Tomar, um homem sentado entre leoes (Daniel?). A escultiira capitelar continua os paradigmas afonsinos, mas sempre numa certa decadencia e com interpretagoes um pouco mais livres e mais duras. Nota uma certa multiplicidade, nao propriamente de oficinas mas de canteiros. Verificando-se isso num mesmo edificio Em S. Tiago de Coimbra ha o mestre do portal principal, que segue mais a tradigao; o da porta lateral, que reduz o ornato dos capiteis a um piano estendido na forma do esbogo dos mesmos, com certo caracter mu^ulmanizante, acentuado na banda do arco de testa, como o Prof. Dr. Vergilio Correia anotou: um outro que trabalharia na capela-mor, como mostra um capitel, no museu regional, de leoes e folhas turgidas. S. Pedro de Leiria tem o escultor dos capiteis das capelas, que e mais tradicional e o do portal, ja apontado, que, alem das figuragoes humanas produziu umas folhagens secas, em tentativa malograda de movimentagao do ornato. Este homem, ou gente da sua oficina, trabalhou na capela de S. Miguel e na Igreja de Santa Maria do castelo de Pombal, como demonstram restos de ornato ali encontrados. ILUMINURA. Acentuamos, tratando de Lorvao, que no fim do sec. XII, o mosteiro se encontrava numa vida florescente, muito ao contrario do que as usurpadoras fizeram crer ao sumo pontifice. O scriptorium laurbanense deveria ter-se constituido ja na segunda metadc do seculo, pois que os seus trabalhos tem um caracter que exclui uma longa lradi(;ao de iluminura. Os livros principals sao o Comentdrio do Apocalipse, escrito pelo monge Egas, que o findou em 1189, de ilustragoes mais caligrafadas que pintadas, e o Livro das Aves, de 1183, dum caracter afim mas de melhor mao. Outras obras sairam daqui; todavia no estado incipiente dos estudos dos nossos codices miniados nao se podc ir a grandes dedugoes. Da actividade do convento de Santa Cruz de Coimbra ainda pouco ha estudado e sao de por de remissa as afirmagoes dos cronistas. 78 Sabemos que, logo a seguir a fundagao, vieram livros do mosteiro de Santo Rufo de Avinhao e que o convento linha muilos iluminados. O Vetus Testamentum, agora na biblioteca do Porto, mostra desenhos de arcos e ornatos muQulmanizantes, o que meramente indica tratar-se duma obra peninsular. OURIVESARIA. Sao conliecidos nomes de ourives e a calegoria dos trabalhos que executaram, que alem dos correntes, eram tambem figurativos, como acontecia com os retabulos, frontais e cruzes. As sucessivas transformagoes das pratas, roubos e contribui(;6es de guerra fizeram desaparecer as especies desta epoca. O calice de D. Gueda Mendes, de prata dourada, do Tesouro da Se, agora no museu regional, era originario de S. Miguel de Refoios. Nao e facil saber qual o centro de fabrico, se nortenho se coimbrao. D. Gueda Mendes, cuja identificagao nos fizemos, era um poderoso nobre da regiao das terras de Basto, Aguiar da Pena e Panoias, sendo rico homem nesta, que aparece confirmante nos diplomas regios desde OS primeiros anos do governo de D. Afonso Henriques (como ja em anteriores) e do qual este diz, «Gueta Menendis quern diligo, quoniam fuisti michi semper fidelis», chefe de linhagem e cujos filhos entron- caram nas melhores do tempo. Grande protector do mosteiro, deu- -Ihe este calice, datado de 1152 (era 1190). Mostra na copa, sob uma arcada, Cristo e os Apostolos, no pe os simbolos dos evangelistas em espagos circulares, que hastes vegetais formam. As figuras e o ornato sao pianos, recortados sobre o fundo: o pormenor e mais gravado que esculpido; tecnica inspirada nos esmal- tes que entao abundavam. A cruz de D. Sancho I, de ouro, processional, pertenceu ao mos- teiro de Santa Cruz de Coimbra, encontrando-se agora no museu de Lisboa. Executada em virtude do testamento de D. Sancho, tern a data do ano da Encarnagao e corrente de 1214. As hastes mostram o desenho terminal flordelizado do tempo. Nao possui imagem do Crucifixo porque era cruz-relicario do Santo Lenho, tendo-lhe sido arrancado o respectivo receptaculo. A ornamentagao e essencialmente gravada: na face, feita por meio duma faixa medial dos bragos, com cabuchoes (rubis e safiras) cercados de aljofares, e por cabuchoes sol- tos e dispostos aos pares; alguns gravados de letras arabes e de animais. O reverso nao tern pedras, mas as mesmas faixas com ornatos da mesma categoria dos outros (no inferior o letreiro), ao centro o Cordeiro e 79 Cdlicc de D. Gucda Mcndcs. Ano dc 1152 nos angulos os simbolos dos evangelistas. Pega esta que se podera crer que seja conimbricense. ARQUITECTURA DUCENTISTA. O sec. XIII constiuiu pouco, rclati- vamente ao anterior. Os assoreamentos do Mondego causaram a perda do convento de S. Francisco e do de S. Domingos, entao levantados. Claustro da Se Vel/ia. E o monumento que resta. Obra de iniciativa e custeamento do rei D. Afonso H, conforme os documentos publicados pelo Dr. Antonio de Vasconcelos, devia ler comegado a construir-se em 1218 e ter sido acabado antes do meado do seculo. Encontra-se estilisticamente dentro do gotico purista, projectado e executado por artistas que nao tinham ligagao alguma com os da igreja. A propria siglagem e diversa da romanica e inconfundivel com ela. Obra perfeita, nao teve no distrito, no seculo seguinte, outra que se Ihe possa dar por equivalente em categoria tecnica. Tem cada nave quatro arcos e quatro tramos de abobada, com mais outro tramo angular e comum as duas naves contiguas; a solugao do problema da ligagao angular das naves obteve-se externamente, pela supressao do contraforte. Empregaram os arcos de tragado quebrado nos formeiros e torais, os funcionais; os de volta plena nos secundarios, os que subdividem os arcos do jardim. Os arcos cru- zeiros sao ainda semicirculares, como no purismo peninsular. A sec- gao destes e estreita, ao passo que e larga a dos torais, em identidade da fungao que exercem; o conjunto do seu arranque, isto e, o leque de nervuras que poisa nas impostas, e bem tratado, tanto em piano como em algado. Os capiteis interrompem nitidamente a tradigao anterior, tal como o faz a estrutura arquitectonica. O abaco e quadrado, sem recortes nem molduras. O calice e subentendido sempre sob o ornato. Este e feito primordialmente por botoes florals, dispostos em duas ordens, angulares e mediais das faces, e sendo os largos peciolos ascendentes daqueles acompanhados por numerosas folhas. Outros exemplares simplificam-se, aproxi- mando-se dos colchetes classicos, mas em duas ordens; ou reduzem-se ao botao floral superior, com folhas simples e aderentes. O tratamento da folhagem ainda nao e naturalista, mas feito geralmente por forma larga, ao que faz excepgao um pequeno grupo. dum trabalho minucioso. 81 Aparecem alguns animals mas ja tratados num estilo e sentido diferente das epocas anteriores, alem de que os animais fantasiados acompanham o gotico peninsular. A lanterna-conuheu do cruzeiro da Se Velha. Pertence ao mesmo tempo e a mesma obra do claustro, como ja em J 934 o aclaramos. O claustro nao precede artisticamente de Alcobaga, como e ten- dencia dizer-se na cidade: nem pela estrutura nem pelos pormenores. Capiteis do claustro da Se Velha. Sec. xiii Nao deu tambem origem aos claustros abobadados do Sul. Serviu de modelo ao da se do Porto mas nao foi origem daquela oficina; o arquitecto portuense, sabendo construir abobadas mas sem pratica de claustros, veio a Coimbra tomar o modelo que necessitava e nada mais, posto que o seguisse muito de perto. A fase artistica do seculo seguinte ja comegou neste; todavia reservaremos as conslru?oes dataveis para o conjunto que se segue. ARQUITECTURA TRECENTiSTA. Nao tevc a unidadc e a orientagao de escola que encontramos no romanico afonsino; obra difusa, dum nivcl do simples construtor. A fase trecentista estremenha, a de 82 I D. Afonso IV a D. Fernando, nao aparcce senao nos poucos capiteis encontrados do claustro de Santa Clara. Arquitcctura sobria tanto no tragado geral como nos pormenores. Sentiu todavia o gosto pelo abobadamento: fc-lo por abobadas de arcos cruzeiros, mas de cons- trugao tecnicamente inferior a do claustro da Sc Velha; fe-lo por abobadas de bergo quebrado, obras lisas (Montemor, Santa Justa, Oli- veira do Hospital), ora com caderna media, ligada a nervuras trans- versais (Santa Clara). Esta abobada nao e a continuagao da romanica mas a abobada gotica empregada nas repartigoes de caracter utilitario, e aqui elevada a categoria de cobertura das naves religiosas aonde, por excelencia, so era empregada a de arcos cruzeiros. Referir-nos-emos aos edificios principais, ou antes, aos que dao caracter a este periodo conimbricense. Inicia-se esta fase por alguns do final do sec. xiii. Capelas do Claustro da Se Velha. A capela de Santa Maria (nave de E.), do ultimo ter^o do sec. xiii, e de tres tramos, paralelos a linha do claustro. Sente-se ainda a influencia do claustro, nao tanto como execugao mas como modelo; arcos torais quebrados e cruzeiros semi- circulares, mas todos de secgao larga, o que naquele nao acontece: OS capiteis sao evolucionados, aparccendo animais ja naquela estili- zagao que foi comum na peninsula, diferente da anterior. A cape/a de Santa Catarina ou de S. Nicolau (nave de S.) pertence ao primeiro tergo do sec. xiv, e comp6e-se de dois tramos. A indepen- dencia da obra do claustro e nitida; apresenta-se como produto duma arte de simples construtor e a desenvolver-se normalmente nesse nivel. Todos OS arcos sao quebrados e de secgao larga, com as nascengas independentes mas irregularmente concatenadas; os capiteis sao do tipo generalizado no Pais. Claustro do mosteiro de Celas. Interessa-no principalmente pela escultura dos capiteis. A parte antiga, as galerias de S. e O., deverao ser, como deixamos dito no volume do inventario da Cidade, um desdobramento, feito no sec. xvi, das quatro breves galerias primitivas. Claustro pequeno, coberto de madeira, de colunas emparelhadas, levantadas em parapeito alto e a suportarem arcos de volta inteira. A porta do capitulo, de arco quebrado, e do mesmo seculo. Os dois capiteis, com calice transbordante, botoes florais abertos, seriam noutra parte de epoca anterior, mas enquadrados porem na arte portuguesa e coimbra, tern de se datar deste seculo e sua segunda metade. Capela de S. Pedro de Arganil. Capela vasta, de tres naves e tres capelas de cabeceira, quadradas e sem abobadas. Foi levantada longe da povoagao, no fim do sec. xiii, por D. Marinha Afonso, ultima 83 O Mcnino cntre os doutores. Claustro de Celas. Sec. xiv donataria do senhorio da vila, e por scu marido, Fernao Rodrigues Redondo (ambos sepultados cm Santarem). Os pes direitos, como as respectivas bases e as impostas, os ties arcos que aqueles sustentam a cada lado, os arcos das capelas e os das portas sao meramente chan- tYados; e pois o chanfro o unico modo de ornar que ali se encontra. Capela vasta como uma igreja paroquial e seguindo o tipo mais austero do gotico dionisiaco; unico exemplar de tres naves, de cober- tura lignea que resta. Ser-lhe-ia equiparada a igreja de Travanca de Lagos, mas so possui hoje a parte inferior dos pilares das naves. Igreja de S. Martinho, de Montemor-o-Velho. Obra de transigao dos sees, xiii-xiv, poderia ter sido na verdade construida pelos bens testamentarios (1285) de Joao Guilherme Chancino. Consta de uma so nave, coberta de abobada de bergo quebrado, repartida em oito tramos por meio de arcos torais, que se apoiani em pilastras de igual teor. Tem toda a aparencia das reparligoes utili- tarias (celeiros, refeitorios, etc.) dos mosteiros peninsulares cister- cienses. Capela dos Ferreiros, em Oliveira do Hospital. Dos sees, xiii-xiv. Pequena, abobadada, de bergo quebrado, sem arcos de reforgo, nem medio nem nos topos, com cachorrada de tradigao romanica. Se nao fossem OS dois oculos quadrilobados e o contraforte aos degraus pare- ceria mais recuada no tempo. Igreja de Santa Justa-a-Antiga, de Coimbra. Resta so da reno- vagao trecentista a capela-mor e a colateral da direita, abobadadas. Sao do mesmo tipo, de abobadas quebradas, e com arco medio na central so. Igreja do mosteiro de Santa Clara-a-Antiga, de Coimbra. Cons- trugao da rainha Santa Isabel, esposa de D. Dinis, foi comegada cerca de 1314, sendo sagrada em 1330. Resume todas as tendencias e todas as possibilidades da arqui- tectura local. Compoem-se de tres naves, cobertas de abobada, sendo as laterais de arcos cruzeiros, a central de bergo quebrado e com arcos torais e caderna media, bergo que nasce na linha superior das abobadas das colaterais; tres capelas de cabeceira; duas portas laterais, sem a prin- cipal, porque se tratava de mosteiro de monjas. Tem-se formulado a seu respeito juizos desencontrados, por se nao ter atendido a arquitectura regional do tempo, e habitualmente pouco ou nada se conhecer de construgao. O nosso estudo de con- junto remonta a 1934, apresentado numa conferencia da Escola Livre das Artes de Desenho. 85 Se apresenta. por um lado, formulas arcaicas, por um outro mos- tra avangos tecnicos de constru?ao, com a caderna longitudinal, amplas janelas, robustas contrafortes. Resumindo, que nada mais aqui se pode fazer. O seu construtor tinha a capacidade suficiente para as abobadas goticas correntes, tanto nas absides como a cobrirem curtos espagos, para os bergos quebrados, para as igrejas de tres naves mas de cobertura lignea. St.''' Jiista-a-antiga. Arcos de cntrada da capela-mor e da direita. Sec. xiv Tal qual o construtor do claustro do Porto fez, vindo a Coimbra, de igual forma procedeu o de Santa Clara, indo a Alcobaga, nao para imitar mas para conseguir uma sugestao, na qual se encontram ele- mentos ali vistos, como as abobadas a uma altura sensivelmente igual, colunas de pilares cortadas, os arranques dos arcos cruzeiros das abobadas laterals, etc. Alcobaga nao originou uma escola mas deu sugestoes aos cons- trutores tardios e de poucos recursos tecnicos, como se ve no claustro dionisiaco do mosteiro. Em Santa Clara a um esquema habitual de tres naves, o seu arquitecto tentou langar abobadas, para o que robusteceu os pilares, arcos e paredes. A solugao foi ma; as ligagoes das abobadas de cru- zeiros com arcos das naves sao irrcgulares, o conjunto do abobada- 86 mento e hibrido, mesmo toda a conslru^ao rnostra a falla dc conhe- cimentos superiorcs. Bern longe ia a maestria do claustro da Sc Velha! Quando comegou a obra de limpeza da igreja, surgiu na cidade a ideia de que se tivesse projectado abobada de cruzaria na nave central, atendendo a urn determinado conjunto de capiteis dos seus extremos. O exame cuidado a que procedemos deu-nos a convicgao contraria. O claustro do mesmo mosteiro dc Santa Clara esta por desen- tulhar. As descrigoes antigas nao passam de vas palavras encomias- ticas. Pelo pouco descoberto, parece que as suas abobadas foram em bergo continue e os seus capiteis duma fase avangada e naturalista, da segunda metade do sec. xiv, distinta da obra decorativa da igreja. Os outros edificios desta epoca, que se podem procurar no corpo do inventario, completam o quadro geografico e pouco mais. ESCULTURA ORNAMENTAL DOS CAPITEIS. As igrcjas austcras nao possuem capiteis. Os figurados encontram-se so no claustro de Celas. Formas destacadas so se vem nos poucos capiteis conhecidos do claustro clarissa. Dentro do nivel secundario em que tcdos os outros se encontram nao ha uma linha de progressao; variam conforme a habilidade de cada canteiro. Nas capelas do claustro da Se Velha, estao em primeiro lugar os da capela de Santa Maria, com a cesta mais acusada que no claustro, a folhagem menos habil e com a tendencia para a foiha de tipo fendido, havendo-os tambem de animais de fraco relevo e no recorte do tipo peninsular da epoca; os da capela de Santa Catarina sao so foliados, de estilo degenerado e frequentemente cavados em biselado. No claustro de Celas, alem dos figurativos, ha-os de hastes florals, em diversas combinagoes, rebentando em folhas maleaveis, de ten- dencia naturalista. Na porta do coro ve-se um par de capiteis, mais tardios, da segunda metade do sec. xiv, de calice transbordante e botoes florals. Esta vegetagao do claustro nao se conservou na cidade. Os capiteis do Estiido Geral, no museu regional, tem o tipo uti- litario de outros encontrados na cidade. O calice e a ligagao geome- trica entre o fuste octogono e o abaco quadrado, cobrindo-se as faces de folhas espalmadas, de limbo unido ou fendido, mostrando alguns grosseiros botoes angulares. Na igreja nwndstica de Santa Clara, predominam no interior os capiteis de botoes florals, so numa ordem, aos quais se juntam os de folhas alastradas, todos de modelagao deficiente, com tendencia para 87 Claustrn dc Cclas. Degolacjao de S. Joao Baptista. Sec. xiv J o cavado. Nos dois porlais cnriquece-se o maior numero coin duas ordens de botoes florais, sendo o trabalho geral inais cuidado, mas sempre artificianal. Os poucos capiteis encontrados ale agora do claustro do mosteiro Clarissa trazem a infiuencia naturalisla para a cidade. Envolvem o calice folhas soltas, volumosas, crespas, ou ramos de pereira, etc. Fizeram escola. Os capiteis, igualmente emparelhados, da gale- ria desaparecida dum paldcio a Estrela reproduzem a disposigao dos calices e a ligagao dos capiteis, nao tendo porem a folhagem o relevo dos anteriores, posto que sejam de tendencia naturalista. Os capiteis das duas colunas enccntradas avulsamente na Pago Real igualmente mostram o calice cuidado e as folhagem alastradas. ARQUITECTURA TRECENi ISTA CIVIL. Dividimo-la por tres paragrafos. ARQUiTECTURA MiLiTAR. Os eieiiientos fernandinos das fortifi- cagoes de Coimbra despareceram. O pequeno castelo de Avo, da epoca dionisiaca, conserva a porta, de arco quebrado, e as bases das muralhas a que so se ligava uma torre, a de menagem. O de Penela apresenta a parte das muralhas em que se abrem as portas. O mais complete e o da Lousa, posto que o seu ambito nao seja grande. Mostram as formulas simples e correntes da arte de fortificagao. * PONTES. A mais importante e a Ponte de Miicela, numa estrada antiga, de ligagao internacional e de invasoes; come?ada em 1298, cortada na terceira invasao francesa, modificada pelas obras publicas; sendo ainda um bom exemplar, com arcos redondos e fortes talhamares. Mais modesta e a de 5". Sebastiao da Feira, de dois arcos redondos. O arco principal, alto e largo, da ponte de Alvoco de Vdrzeas ja e quebrado. ARQUITECTURA DOMiciLiARiA. O palacio da raiuha-sauta D. Isa- bel, anexo ao mosteiro clarissa de Coimbra, que ja deveria ser modesto por destino (para albergar a sua viuvez), conserva um pano dos muros voltados para a cerca conventual. Rasgam-se-lhe duas janelas, cada uma de dois arcos emparelhados, quebrados e so de arestas chanfradas. 89 Restam das dionisiacas Escolas Gerais umas colunas oitavadas; da obra dos Pagos Reals, feitas ao tempo, duas colunas cilindricas e possivelmente certos elementos de arranjos de paredes; dum palacio ao sitio da Estrela, colunelos de galeria. ARQUITECTURA QUATROCENTISTA. A COnStrUQaO do SCC. XV foi de pequeno volume, pois que nao houve fundagoes monasticas, nem tambem foi de riqueza decorativa, a excepgao da capela da igreja de S. Tiago. Nao se produziu pois um agrupamento nitidamente regional. As obras distribuem-se por ties pontos geograficos: Coimbra, Tentugal e Soure. Coimbra. Na igreja de Santa Cruz conserva-se, no espago escuro entre as capelas de epistola, uma abobada de cruzeiros e com uma caderna que a ligava ao tramo contiguo, oculto ate ao ano de 1972, em que foi posto a luz. Pertencia a capela de Santo Andre e dos Mar- tires de Marrocos, mandada fazer, no espago de duas laterais da igreja romanica, pelo prior-mor D. Gomes (1437-59), destinando-a a seu jazigo, tendo sido acabada no principio do ano de 1458. A re forma manuelina conservou-a. Na igreja de S. Tiago ha uma capela fiinebre , de abobada simples, mas de portal muito ornado, do flamejante da Batalha, enquadrada num alfiz e com a parte plana de rede de ovais quebradas e uma faixa superior, no genero das grilhagens externas. Em Santo Antonio dos Olivais, a porta austera [Inv. da Cid., pag. 92) e as paredes laterais da igreja e quanto resta da reforma do final de quatrocentos, ou inicio quinhentista. Tentugal. Os tragos quatrocentistas que aqui se encontram nao sao, como uma certa sugestao historica fazia esperar. da epoca do Jnfante D. Pedro, mas sim do fim do seculo. Infelizmente nao permanece intacto. O que, todavia, se con- serva guarda tragos comuns, como sao os arcos, de proporgao sensi- velmente equilatera, so chanfrados nos exemplares mais modestos ou de finos colunelos continues, sem capiteis nem impostas (igreja e capela ducal). A igreja paroquial mostra, na frontaria, a porta de colunelos e singelo oculo, na parede da esquerda a porta simples e a torre com certas aberturas antigas. A torre municipal foi modificada na epoca manuelina e ainda posteriormente. 90 O paQo ducal seria um interessante exemplar de habitagao se nao tivessem havido incendios, abandono e restauros posteriores muito precarios. A capela de S. Miguel porem conserva o seu nobre esque- leto; corpo alto e alias empenas, capela-mor poligonal, porta de finos colunelos e oculos superior, arco cruzeiro e porta lateral mais simples. Da capela de S. Joao, da Povoa de Santa Cristina, so resta uma singela porta lateral. Soure. Os edificios que existem distribuem-se por esta vila e pela antiga de Vila Nova. Vila Nova de Angos, se nao tivessem sido os abandonos e as transformagoes, seria encantadora para visitar, com o conjunto da matriz e dos pagos colocados perto. A igreja da Senhora de Finisterra, destelhada, com a fachada substituida, conserva duas modestas portas travessas iguais e a capela- -mor. Esta e abobadada em bergo, com o arco de entrada e o toral semicirculares, o que e tipico a notar. A igreja de S. Tiago de Soure, mandada levantar por D. Manuel, ainda infante, e acabada em Agosto de 1490, seria um edificio de, excepcional interesse se nao tivesse desaparecido a fachada antiga as portas travessas e o arco cruzeiro. Conservam-se as duas arcadas divisorias da nave, de quatro arcos cada. Ha pilares e nao colunas, sem capiteis, e so com leves ornatos no extreme do chanfro daqueles, de inspiragao batalhina. ESCULTURA DUCENTISTA. Em contraste com a penuria figurativa romanica, surge na segunda metade do sec. xiii um grupo de escultores, revelados infelizmente so pelos tumulos. o de Grijo e os episcopais da Se Velha de Coimbra. O tumulo de Rodrigo Sanches (fal. em 1245), no claustro de Grijo ja foi mandado fazer pela irma D. Constanga Sanches, monja das Donas anexas ao mosteiro de Santa Cruz (em cuja igreja mandara da mesma forma erguer o seu) e que deixou a Grijo bens de alma por D. Rodrigo. A estatua jacente e rigida, com o sao, e com certo sabor romanico, as figuragoes de Cristo e dos Apostolos das arcadas da frente, a que se deu a aparencia dum frontal de altar. O tumulo de D. Tibiircio, na Se, mostra na frente da area o escudo de Portugal, entre outros dois de veiros as ondas, que eram as armas da familia do Bispo. Esta bem identificado. D. Tibiircio, um dos do pacto de Paris para a deposigao de D. Sancho II, faleceu nas lutas 91 Claustro da Sc Vcllia. Capclu dc S.-' Maria. Um centauro. Sec. xiii civis, cm Montemor, no ano de 1246. So depois da pacificagao pode ser transportado para a sua sc, e o brasao real (no qual ja ha os cas- telos da bordadura) deve indicar que fo: a gratidao rcgia que fez vir as ossadas. Deve pcrtenccr ao decenio de 50. Pancjamentos angulosos, duros e monotonos. rosto com barba de traQado linear, ondulado e paralelo. Marca com o de D. Rodrigo um inicio e, por isso, merece especial atengao. O tiimulo c/c D. Egas Fafcs encosta-se ao topo none do Iransepto da catedral. Esle prelado, acabado de nomear arcebispo de Com- postela, faleceu em Monlpellier, em 1268; todavia ja tinha aqui ins- tituido a sua capela, para onde fci trazido. O monumento fiinebre deve datar do decenio de 60. A estatua e de melhor categoria que a anterior; pregas cheias, de efeitos mais naturais, cabega vigorosa e de barba crespa. O jacente de D. Pedro Martins (fal. em 1301) no outro topo do transepto da se, denuncia o estilo na transigao dos seculos. Igual- mente o faz a lapide funebre da abadessa de Celas, D. Mor Fernandes (a da lenda das maos cortadas), falecida em 1300. A de Honor ico (fal. em 1282), no museu regional, e uma obra nitidam.ente popular, de gravura incisa, sem valor algum para a evolugao da escultura. ESCULTURA TRECENTiSTA. No scc. XIV ha em Coimbra dois periodos distintos. o do primeiro quartel dominado psla arte de Celas e o do resto do seculo, com o mestre do tumulo da Rainha Santa, mestre Pero e os seus seguidores. Indicative da evolugao dos tumulos episcopais mencionados para linha do novo seculo encontra-se na mesma se, o jacente de D. Estevdo Anes Brochardo, bispo falecido em 1318. Apesar das mutilagoes e composturas, apesar de certos recurscs plasticos usados nas figuras anteriores, mesmo certo decalque, e pouco vigor, ha ja mais uma busca de naturalismo. Os capiteis do claustro de Celas sao o melhor documento da escul- tura coimbra no primeiro tergo do sec. xiv. Nao se conhecem documen- tos que OS datem mas as ligagoes artisticas indicam-Ihes este periodo inicial trecentista. A corrosao da pedra deve ter causado a perda de cerca de um tergo do numero provavelmente inicial. Representam a vida de Cristo e, poucos outros, motivos agiograficos. Em virtude da variedade das cenas e composigoes e das figuras, revelam todas as possibilidades do mestre. Sao de escultura atrasada 93 para a epoca, monotona nos rostos, de pregueados sem grande varie- dade, ora perpendiculares ora em angulos duros, com um pouco de maior valorizagao num ou outro exemplar. Do mesmo tempo ha no referido museu a ana dos Mdrtires de Marrocos, provinda de Lorvao. A arte do mestre de Celas e independente da dos tumulos epis- copais e nao e sua evolugao. A nova fase escultural coimbra comegou a ser individualizada em 1929, pela ilustre e malogrado Dr. Vergilio Correia. A obra principal e o grande tumulo da rainha-santa D. Isabel de Aragao e o da sua netinha D. Isabel. Aquele estava acabado em 1330. Tumulo volumoso com a rainha em grande vulto sobre a tampa, Cristo e os Apostolos a um lado, S. Francisco e Clarissas ao outros. O pequenino tumulo da Infanta e do mesmo tempo, e inutil e procurar diferengas estilistas que marquem uma factura anterior ou posterior. A obra de mestre Pero reune como obras de primeira categoria a area tumular do arcebispo Pereira, de Braga, a Senhora da Expec- tagao, o busto da Senhora, a Senhora de Podentes, todas no museu regional, a Senhora e o Anjo da Anunciagao de Montemor, S. Tiago e S. Joao Evangelista (Santo Martir) tambem no mesmo museu, e ainda os tumulos de Oliveira do Hospital e o de Vetaga na se de Coimbra. Outras obras marcam esta corrente nacionalizada, como o pequeno retabulo e a Virgem de Oliveira do Hospital e o outro retabulo da Paixao, das Lages (hoje ornato de jardim particular, sendo so conhe- cido pela reprodugao do museu), e ainda os anjos atlantes e o S. Tiago do museu. Na segunda metade do seculo aparecem novos aspectos desta arte, como a Santa Agueda e especialmente com o magnifico Cristo morto, ambos no referido museu, e ainda a Virgem de Lorvao. Os restos da estatua e da area dum bispo desconhecido da Se Velha indicam que a influencia dos tumulos reais de Alcobaga aqui se fez sentir esporadicamente. Pouco sabemos da escultura figurativa de madeira. Parece que, como no seculo imediato, se reservava para os Cristos crucificados, em virtude do alargamento dos bragos e da suspensao do conjunto. Resta o grande Cristo de Santa Cruz, duma arte de sentido realista, e o de Santa Clara, duma arte mais serena e corrente, ambos no museu regional, alem dum outro pequeno de Santa Clara-a-Nova. 94 ESCULTURA QUATROCENTiSTA. A sua destripQa c classificagao deve-se a Dr. Reynaldo dos Santos. Os principios do seculo apresentam esculiuras isoladas, marcando especialmente tendencias, como a Virgem com o Menino. de Tentugal. No segundo tergo revelam-se as duas fortes personalidades. chefes de escola local, do mestre Joao Afonso e daquele que se denominou, por uma das suas obras, o mestre de Santa Luzia. A uma e outra correntes se ligam numerosissimas esculturas de divulgadores. Joao Afonso, mestre dos sinos, lavrou de 1439-40 o tumulo de Fernao Gomes de Gois, em Oliveira do Conde, com a figura do cava- leiro estendida na tampa. Pelas figuras de santos e santas da area podem-se fazer as ligagoes com a imaginaria avulsa. Sao esculturas de panejamentos finos e harmoniosos, como na Senhora com o Menino de Bolho. a Senhora sentada de Bobadela, e provavelmente a Senhora em pe de Tabua, que e mais fina. Deste mestre dependem outras, como as Senhoras com o Menino de S. Martinho de Arvore, Sepins, Sarzedo, Pombalinho, etc.. O mestre cie Santa Luzia, de panos volumosos, foi o mais operoso e o de mais larga influencia. Pertencem-lhe a Santa Catarina de Tentugal, o Santo Antonio e o S. Bras de Portunhos, a Santa Marinha de Oliveira do Mondego, S. Mamede de Quiaios, Santa Madalena de Maiorca, Santa Catarina de Vila Nova de Barca; as Senhoras sen- tadas de Maiorca, Botao, Cordinha, Anga, etc.. Oficiais sai'dos da sua oficina divulgaram e espalharam os seus modelos pelo centro do Pais, sendo algumas esculturas de bom tipo como a Senhora sentada de S. Paulo de Frades. Um outro grupo de esculturas, tendo por prototipo o pequeno retabulo do Corpo de Deus (1443), no museu, liga-se a arte do mesmo mestre. Dele fazem parte o S. Louren^o, Santo Andre e S. Miguel da igreja de Tentugal. O S. Pedro, do velho mosteiro de Arouca e tantas outras esculturas de S. Pedro, como o graciosissinio de Avo, pode bem ser ainda do mesmo mestre. Escultor de grande ni'vel, mas de pequenas represen- tagao, e o mestre da Madalena do museu regional. Outro duma categoria menor e o da Santa Catarina de Carvalho. Na segunda metade do seculo, antes da invasao da arte requebrada do ultimo quartel, encontra-se o tumulo da duquesa de Coimbra, em Santa Clara-a-Nova (cerca de 1450) e uma graciosa Senhora com o Menino do museu referido, alem de obras correntes. 95 O ultimo quartel do seculo e a passagem para o seguinte e domi- nado pelo nome de Diogo Pires-o-Velho. Em 1473 ja recebia uma tenga de D. Afonso V e em 1514 ainda era vivo, tendo feito no ano anterior a escultura de Cristo para Vouzela. O seu estilo e o dos panejamentos requebrados e o das faces vigo- rosas, realistas. A base da identificagao encontra-se na Senhora com o Menino de Lega de Palmeira, de 1481. Sao-lhe atribuiveis os tumulos de Fernao Teles de Meneses, em S. Marcos (no ultimo decenio), o de D. Afonso, na colegiada de Ourem (cerca de 1485). Deixou bastante imaginaria avulsa, entre a qual se Ihe podem dar com seguranga a Senhora com o Menino da capela da Senhora da Esperanga de Coimbra, a Santa Ana (Santas Maes) de Oliveira do Hospital, Santo Andre do referido museu, etc.. Ao lado dele, outros artistas menores, quer saidos da sua oficina quer educados no seu ambiente, produziram larga obra. A sua flo- ragao e mais acentuado no periodo manuelino, desde o findar o seculo ate cerca de 1520, a influencia dos tumulos reais e a da primeira renascenga. PiNTURA QUATROCENTISTA. Da cpoca anterior encontraram-se restos de pintura a fresco na demoligao da torre de Santa Cruz, de significagao indecisa, dos fins do sec. xiii ou principios do seguinte. O triptico de Santa Clara, originario do mosteiro Clarissa, e o grande exemplar que o ultimo quartel do sec. xv apresenta em Coimbra. Fora do distrito ha obras com ele relacionadas. Ao centro, Santa Clara e a fuga dos sarracenos, aos lados, Horto e Cristo deposto da cruz, os bustos de Cri&to e de Apostolos no banco. Sao OS rostos vigorosos e individualizados como retratos populares; habeis e minuciosos os panejamentos mas sem envolvencia das figuras; composi(;ao com fraca coordenagao de pianos e em cada piano as figuras sobrepondo-se falsamente para darem uma apresentagao indi- vidual; paisagem simplificada como numa tempera: todavia e obra dum bom nivel medio. Urn pano de linho pintado, proveniente do mosteiro de Santa Cruz, com a Senhora do Rosario e soldados, e prova duma actividade pictu- rai cquivalente a dos frescos que temos encontrado pelo Pais. 96 BET \ i i i^wwmmv Retabulo do Corpo de Deus. Ano de 1443 OURIVESARIA GOTICA. O natural desgaste das pegas, originando a sua transformagao, as contribuigoes de guerra (no tempo de D. Fer- nando, D. Afonso V, D. Joao VI), os roubos (como o da se, gover- nando D. Jorge de Almeida) fizeram rarear as pegas medievas. As que restam encontram-se no Tesouro da Se, em guarda do museu regional. Conserva-se do sec. xiii o pe de uma caldeirinha de cristal, que a magnifica D. Catarina de Ega reformou no periodo manuelino. O sec. XIV abre-se com o conjunto do tesouro da rainha-santa D. Isabel de Aragao (cruz de agata, relicario de coral, colar, imagem), pegas que devem ser nacionais. Ha mais uma escultura de prata dourada, de S. Nicolau. Obra de importagao devem ser as duas cruzes de cristal, Clarissas, uma delas mostrando duas iluminuras da escola de Murano. Do comego do sec. xv sao dois relicarios, um de cilindro horizon- tal e outro em forma de templete, do deao Joao, medico do Infante D. Pedro. A cruz catedralicia, de ornatos flamejantes e esmaltes ranslucidos fecha o seculo. 98 AS PONTES DO MESTRE ZACARIAS DE CORDOVA NO SECULO DECIMO A vinda do mestre Zacarias de Cordova a regiao de Coimbra, no sec. X, e conhecida pelo documento Amnmtione de molinos de Forma do cartorio laurbanense. Fez sua primeira publicagao Manuel da Rocha no 'Portugal Rcnas- cido'' (Lx.^ 1730) e, por ela, os estudiosos conimbricenses do seculo passado (Filipe Simoes, Reliq. da Arch. Rom. — Byz. em Por. Lx.^ 1870) e do presente tiveram conhecimento do facto. A publi- ca?ao cuidada deve-se ao Dr. Rui de Azevedo {O most, de Lor. na reconq. crista. Lx.^ 1933), a qual utilizamos na transcrigao que vamos fazer. Procuramos dar-lhe certa clareza, separando o texto por tragos e dividindo-o tipograficamente em certos paragrafos, sem que de qual- quer modo o alterassemos. Nao esta datado; encontra-se a sua redacgao, como do mesmo se deduz, entre o ano da reconquista definitiva da cidade, 1064, e um ou dois a seguir ao falecimento do mesmo rei leones, 1065, que ainda dera sentenga final e a qual, sem demora, se teria seguido a execugao desta. Amnmtione facimus de illo molino de Forma in diebiis domino Pri- mus abba. a) Venit magister de Cordoua nomine Zacarias et miserunt con- cilio de Colimbrie suum mandatum pro ille abbas. Et dixerunt ad ille date nobis ille magister de Cordoua qui uenit ad uos ut faciat nobis pontes ad nostros ribullos. — et dixit ille abbas, ego uadani cum illo pro mea memoria. Et uenit ille abbas cum illo magistro et ficauit sua tenda im Aluiaster. — et uenerunt homines de ilia terra cum suos directos 99 et cum carros et cum petra e cum cale et fecerunt ipsa ponte. — et uene- runt ad Coselias et fecerunt ibi alia. — et uenerunt ad latera Buzat et fecerunt ibi altera — et inde uenerunt ad Forma et fecerunt altera. — et dixit ipse magister ad illo abbas. — faciamus molinos in ista ponte pro ad ille monasterio pro nostra memoria. sicut e fecerunt. b) Et postea uenit Pelagio Halaf et dixit nobis quia fecerat illos molinos suo auolo Ezerag. — et ego Arias dixi quia fecerat illos domino Primus — et mandauit nobis domino Sisnandus que iurassem ego Arias pro illos. et iuraui eos. — et postea uenit Zuleiman Alafla. suo conger- mano et querit nobiscum causare. et mandauit nobis domino Sisnandus a rege. — et ille dixit quomodo fuit suo aulo Ezerag de Condeixa. et (juando filiarunt mauros Colimbrie fuit ille Ezerag ad Far f on iben Abdella et fecit se mauro. et petibit xxx'^ mauros de arragaza et metiuit illos in matos. et dixit ad illos christianos de illas uillas. exite gente benedicta. quia pacem filaui cum mauros. et exiebant de illos matos et populabant illas uillas et exiebant illos mauros de illos matos et leuarunt eos ad Sancta- rem et uenumdabant eos et fecerunt in illos VI ex haretas de argento. et inderenzarunt illos ad Cordoua cum carta de Farfon et cum isto ganato. et petiuit illos molinos de Forma et alias uillas multas et donauit illos Almanzor. c) et postea uenit rex domino Ferenandus et mandauit nobis donare nostros molinos. — et donauit nobis domino Sisnandus nostros molinos et nostra ponte et auctorgauit eos. Deduz-se que, reconquistada a regiao de Coimbra, os monges de Lorvao procuraram reocupar as terras que Ihes pertenciam. Gozava, no momento, do dominio util dos moinhos de Forma Pelagio Halaf. Op6s-se ao esbulhamento, alegando ser senhor directo pois que os construira seu avo Ezerag. O governador que ficara a seguir a reconquista, D. Sesnando, e ao qual pertencia julgar dos direitos antigos de posse, ou da legitimidade das presiirias, ouvidas as partes, sendo por Lorvao o monge Arias, o narrador dos factos, mandou-os entregar ao mosteiro. O monge afirmava que no tempo do abade Primo (sec. x, governo do ano 966 ao de 985, em que faleceu), tendo o convento chamado de Cordova o mestre Zacarias, os homens do concelho de Coimbra pedi- ram a sua cedencia para a obra das suas pontes. O abade Primo foi mais alem, acompanhou-o. Fixaram-se em Alviaster e, tendo vindo a gente local com carros e instrumentos necessarios, trazendo pedra 100 e cal, fizeram ai uma ponte. Em Coselhas levantou-se outra. Ao lado do Bugaco construiu-se outra. Vindo a Forma executaram outra mais. Estando aqui, o mestre Zacarias, atendendo certamente a boa corrente de agua, aconselhou ao abade Primo se fizessem moinhos para uso e posse do mosteiro, alegando que por eles ficaria memoria dos trabalhos. Se Pelagio nada mais sabia e alegara que os moinhos os construira o avo, seu irmao Zoleima Alafla conhecia mclhor os factos e veio con- testar. Expos esta estranha serie de ocorrencias que revelam a incerta epoca das perdas e reconquistas pelas quais o territorio passou. A seguir a tomada de Coimbra pelo grande chefe militar que foi Almangor (ano de 987), seu avo, Ezarag de Condeixa, foi ter com Farfon iben Abdella; passou-se ao mugulmanismo e pediu aquele trinta mouros de rectaguarda (regaza = ragaga = rectaguarda), isto e, de apoio para a presuria humana. Os cultivadores das terras baixas haviam fugido para os montes; procurou-os, garantindo-lhes que firmara paz com os novos dominadores e que poderiam voltar, o que alguns credulamente fizeram. Ezerag, que escondera em si'tios isolados, por matagais, os seus mouros, apoderou-se dos pobres iludidos, levou-os a Santarem e vendeu-os como escravos. Com o dinheiro obtido e uma carta de Farfon, foi a Cordova, obtendo de Almangor nao so os moinhos como diversas vilas rusticas. Estas acgoes, que repugnam a nossa sensibilidade, estabeleciam direitos julgados legitimos. D. Sesnando nao quiz ou nao pode julgar o agravo e mandou subir a causa ao conhecimento superior. O rei leones, Fernando Magno, acabou por atribuir os moinhos ao mosteiro laurbanense, o que D. Sesnando fez executar. Da narragao do monge Arias parece deduzir-se que o mosteiro fora alem de seus direitos, tomou moinhos e ponte {nostras molinos et nostra ponte), quando ela era do concelho citadino. * Reporta-se o documento a epocas muito diversas, o que obriga a tomar a narragao com tantas e maiores cautelas quanto mais afastados eram os acontecimentos referidos. Havia uns proximos, os da questao, do fim do sec. xi; outros mais recuados, da segunda reconquista mugul- mana (Coimbra: An. 987-1064) e logo dos primeiros anos da mesma; ainda outros, os que verdadeiramente interessam para o nosso caso, ainda mais, do tempo do governo do abade Primo (An. 966-985). 101 Temos pois de acentuar que a noticia da construgao das pontes e dos moinhos, repousando numa tradigao, nao ]he pode ser dado o valor de um documento exarado na epoca propria; exige cautelas. Acrescentaremos ainda, como observagao preliminar, que pelo termo pontes — que, referindo-se a obras nos limites da regiao de Coimbra e nao erani no Mondego, nem podiam veneer senao pequenas correntes, nem terem grande extensao nem tao pouco elevada altura, nada comparado com a ponte dos sete arcos dos contos populares — se tem de entender s\mTg\t%m.tr\\.Q pontoes, com um ou dois olhais baixos. Basta ter percorrido e conhecer a regiao para ajuizar. Em que locais se encontravam essas pontes? Que restara das mesmas ? Sera de crer que tivessem surgido estas perguntas mais que uma vez aos estudiosos da cidade. Creio que nenhum procuraria, por trabalhos de campo, as respostas. Nenhuma tradigao dessas pesquisas encontramos, nem as dificuldades de deslocagao ate aos tempos actuals convidavam a faze-las. Pontes, ou mesmo simples pontoes que eram as do documento, numa epoca pobre e incerta como foi a da primeira reconquista, nao seriam construidas ao acaso de necessidades locais de atravessamento de cursos de agua. As pontes medievais, ou sens restos, que temos encontrado incluem-se em caminhos de longo percurso, posto que a primeira apa- rencia seja a de simples utilidade local. Numa serie de artigos que publicamos em diario da cidade de nossa residencia, acerca do rio Alva, aparentando mera evocagao romantica mas que frequentemente estru- turamos em cuidadosos estudos anteriores, referimos algumas pontes desse tipo e reconstitufmos os caminhos em que se integravam, hoje de obliterada memoria. Aquelas pontes do sec. x, de execugao promovida em serie pelo municipio conimbricense, nao poderiam deixar de ser elementos de caminho de grande interesse geral, digamos, servindo percursos mili- tares, visto que Coimbra era povoagao principal de fronteira. Levados desse sentido. entregamo-nos a dedugoes e fizemos pes- quisas. Caminhos daquele nivel havia para o norte, porquanto o sul estava vedado, pois que para alem da vista da cidade, ultrapassado o fosso natural do Mondego, nao se encontrava mais que uma incerta terra dc ninguem. 102 Havia o caminho do Porto e o de Viseu, cujos tragados, que nos ultimos tempos temos tentado reconstituir nos proprios locals, nao eram senao o decalque das logicas pistas aborigenes, condicionadas pelo atravessamento dos colos, ladeagao dos vales, aproveitamento de linhas de festo e das altas cumeadas, travessia de rios em vaus aces- siveis. Os nomes identificaveis levaram-nos naturalmente para o cami- nho de Viseu. Diremos desde ja, sumariamente, que as pontes se situariam em Coselhas {ad Coselias), Lagares {in Ahtiaster), Botao {ad latera Buzat). Por mera hipotese, colocamos a de Forma na Ademia, na outra estrada, a do Norte. O trajecto de Viseu indicado por Baptista de Castro e o seguinte, com suas leguas; De Coimbra a Eiras 1, a Botao 1, ao Galhano 1, a S. Antonio do Cantaro 1, a Freirigo 1, ao Barril 1, ao Criz 1, ao Casal de Maria 1, a S. Joaninho 1, a Tondela 1, a Sabugosa 1, a Fail 1, a Viseu 1. Pormenorizando levemente na parte que interessa a este estudo, sem entrarmos naquelas minucias que adiante exporemos, digamos: — saindo de Coimbra, seguia pelo vale de Coselhas, Botao, Casqueira, Ponte da Mata, Galhano e, transmontando o Bugaco, a St.^ Antonio do Cantaro, ribeiro de Freirigo (freg. Marmeleira), ao lado de Cor- tegaga, Barril (Mortagua) e seguia. Quais eram neste percurso, ate ao alto da vertente ocidental da serra, as correntes de agua mais importantes? A ribeira de Coselhas que drena o vale que define por norte a cidade e ladeia o morro do cemiterio do Pio, e por Sao Romao contorna Santo Antonio dos Olivais. Descai no Mondego, passada a ponte de Agua de Maias. O seu principal atravessamento e em Coselhas, na Ponte do Promotor. A seguir a ribeira de Eiras que reune os fios de agua que do vertice de Agrelo ao do Dianteiro se vao reunindo, passando a Sao Paulo de Frades, a Eiras, depois a Ademia de Cima e desagua na Vala Real do Norte (posto que ate Sao Joao do Campo ainda Ihe chamem ribeira de Botao), que circunda o campo do Bolao, o qual representa vasto assoreamento da bacia do Mondego neste ponto. O atravessamento 103 antigo nesta estrada de Viseu, era em Eiras. Tern pequeno afluente na margem direita, que vem de Brasfemes, e que a mesma estrada atravessa em Gondileu. Ha agora uma linha de aguas de maior importancia que as ante- riores, a do Botao, que vem designada na carta 1/50 000 como rio de Fornos. Produz o vale alargado, aberto de sul a norte, ao qual vem morrer lateralmente as ondulagoes que se destacam da serra do Bugaco. Seguindo-o ascendentemente, da mencionada Vala Real do Norte e do campo do Bolao, vai-se a Souselas. Ai recebe um secundario, a que em breve nos iremos referir. De Souselas continua para Botao, vindo- -Ihe um pouco antes o fio de Marmeleira; a seguir a esta confluencia forma grande cotovelo, voltando-se a nascente, passa o Botao, dirige-se a serra sempre entalado entre asperas vertentes, ate a Ponte da Mata; come^a aqui a bacia alta de recepgao das aguas, a qual se abre em leque para nordeste, a Cacemes, e para sudeste, a Espinheira e Midoes. Em Botao era o atravessamento principal. A ribeira secundaria de Souselas, afluente da do Botao {fluvius Viaster dos documentos medievais) corta para os cumes, pelo Remun- gao, Lagares, e vai a bacia alta, da Granja por Telhado a Alagoa, drenando a parte noroeste da freguesia de Figueira de Lorvao. O atra- vessamento antigo desta ribeira de Souselas era em Lagares. O da ribeira principal, como acabamos de dizer, em Botao. A norte destas linhas de agua comega a bacia do Certoma. Um tra- gado obliquo de cimos vem das alturas de Cacemes as de Santa Luzia (E. N. 1, km. 210), separando as duas bacias, a do norte, a do Certoma, que se dirige ao Agueda e Vouga, a do sul, a dessa ribeira do Botao, afluente do Mondego. O valor desta depressao que a ribeira do Botao ou dos Fornos define ascendentemente, desde as Ademias ate ao colo anterior a Pam- pilhosa, a divisoria baixa das bacias, que a linha do caminho de ferro do Norte aproveitou para o seu atravessamento, pode avaliar-se da estrada nacional, do novo desvio ao Sargento-Mor. Desse ponto (km. 209, segundo a marcagao ainda do momento) se pode estudar a arquitectonica das elevagoes que se vao sucedendo e erguendo ate a linha da cumeada da serra do Bugaco. Ao mesmo tempo sera pos- sivel adivinhar o tragado do antigo caminho de Viseu, principalmente se o exame se acompanhar numa carta das referidas ou na militar. Reparar-se-a atentamente num ponto que e de valor para este estudo, nos dois trechos da serra do Ilhastro, cortados a meio pela ribeira de Souselas (fluvius Viaster), marcada na carta 1/50 000 pelos vertices de Alhastro e Brasfemes, como voltaremos a dizer. 104 O caminho de Viseu tragado sobre a carta 1/50 000 do I.G.C. Temos, pois, as mais marcantes travessias das correntes de agua, aquelas que pediam uma obra permanente de passagem: a da Ponte do Promotor, na ribeira de Coselhas; em Eiras, na ribeira de igual designativo; em Lagares, na ribeira de Souselas; e em Botao, na ribeira do mesmo nome. Esbogado o terrene, seguiremos o velho caminho de Viseu, par- tindo de Coimbra mas nao ultrapassando o alto da serra do Bugaco. Na saida da cidade para o norte, a Casa do Sal, rasga-se para nascente o vale e ribeira de Coselhas. Acompanha-o pela margem esquerda uma estrada, que nao e mais que esse caminho rectificado nos fins do ultimo seculo. Ultrapassado o morro do Pio e a leve linha lateral de Vale Meao (ponto aonde vinha ter o caminho trans- versal saido da Almas da Conchada, ainda muito procurado e que, outrora, deveria ter sido de mais directo transito), um pouco adiante do novo morro, a estrada corta a veia na Ponte do Promotor. Parando-se neste local e examinando a conformagao do terreno — atentando no morro que pela nossa direita se veio a ladear para o lado da cidade, no cotovelo que a linha da agua ai forma e no abrandamento da encosta do outro lado, o norte — sente-se que a travessia da corrente teria for- Qosamente de se fazer neste mesmo sitio. A ponte actual, datada de 1881, da epoca da nova estrada, parece, e de dois pequenos olhais, baixos e pouco excedendo na largura tres metros. Estaria, segundo a tradigao local, demolida a anterior e fazia-se a passagem a vau; nao devendo, porem, ser de muito tempo atras, tanto mais que a designa^ao de ponte do Promotor e velha e continua a aparecer em papeis nao antigos. Era aqui uma das pontes do mestre Zacarias: et uenerunt ad Cose- lias et fecerunt ibi alia. Nenhuns tragos antigos, ou mesmo pedras isoladas, existem. Vezes varias, em tantos seculos, as grandes enxurradas a teriam minado, obrigando a reparagoes e substituigoes totals. Subia o caminho a Lordemao. Nesta localidade abandonava a actual estrada para Sao Paulo de Frades, para mais directamente descair para Eiras. Nao se pode percorrer de carro o seu trajecto; avaliamo-lo em duas caminhadas concorrentes, partindo daqueles lugares. 106 Aqui, em Eiras, cortava uma corrente dc maior imporlancia que a anterior. A antiga vila de Eiras deveria, como agregado popula- cional, ter gozado sempre de certa categoria; isso se ve dos documentos do comego da nacionalidade e da historia local subsequente, como tambem dos tragos arquitectonicos dos seus bons tempos. A ponte actual, de dois arcos baixos, cerca de cinco metros cada urn, datara do sec. xvm. Nao sabemos se a poderemos relacionar com as obras do grande fontenario e respectivo aquedulo, que vem a flor da terra. Em 1949, nas obras do pontao acima desta, ao lado do aqueduto, apareceram restos de outro daquele mesmo tipo, que examinamos. Este ja nao pertencia ao caniinho de Viseu. Tragos antigos nao os notamos. Como adiante se dira, a tratar da ponte de Forma, era este um sitio natural que, numa construgao ou reforma geral de pontes, se teria de atender. Dever-se-a, no entanto, acentuar que a finalidade do documento nao e a obra das pontes mas a reivindicagao dos moinhos construidos junto de uma; as outras vieram na sequencia logica. Ultrapassada a ponte, o caminho comegava, como na estrada de hoje, a subir pela breve colina que separa esta corrente de Eiras da que Ihe aflui mais abaixo pela margem direita, e que a estrada ia cortar em Gondileu. Neste segundo sitio, onde ha um pontao moderno, nao se exigiria obra especial, em epocas de cavalos e carros de bois. Na subida de Eiras, ja em terrenos vagos, vem-se cavados ao lado do trajecto actual, fundos carris, cinco pelo menos, dos leves desvios que o afundamento dos rodados na rocha branda obrigou a procurar. Voltava o caminho a subir, dirigindo-se a Brasfemes. No fim da povoagao, deixava a estrada macadamizada que leva a Penacova (ou, antes, a Figueira), para cortar a norte e descer pouco depois a Laga- res. A este lugar pode-se ir de carro, mas partindo de Souselas; nos fomos a pe. Cortava aqui essa ribeira secundaria de Souselas, afluente da de Botao ou dos Fornos. Medievalmente, como enunciamos atras, era a de Ahiaster ou Viaster (por ex: in ripa fluvius iiiasler cum ecclesie sancti martini, doc. ano 1063; villa in ripa de fliaiio xiastes cum ecclesia sancti martini, ano 883). A conformagao geral do terreno da zona da parte final da ribeira, tomando da sua foz em Souselas e ascendendo para as alturas, a Figueira 107 de Lorvao, pode apreender-se claramente do ja referido ponto da estrada nacional (E. N. 1), do novo desvio ao Sargento-Mor, ao quilometro 209 (numeraQao que vira a ser alterada). Ve-se o conjunto da colina, dividido em dois sectores pelo fundo corte operado pela corrente: o do norte, marcado na carta com a cota de Alhastro-139, o do sul, Brasfemes-144; zona do calcario do liassico, com exploragao antiga de pedreiras. Se foi o rio de Botao ou Fornos que formou a vertente oeste dessa colina do Ilhastro, dominagao actual, foi o afluente, como se acaba de dizer, que a dividiu transversalmente nos dois sectores. Sera sugestivo reconhecer o local, partindo de Souselas, passar entre OS dois blocos do monte, ao Remungao, e continuar a Lagares. Daqui poder-se-a percorrer o caminho que vem de Brasfemes e continuar em direcgao oposta, para Botao. A ponte ou pontao do tipo geral mencionado, de um so olhal, que, para o adaptar ao transito moderno, foi necessario alargar por meio de placa de betao, nao podera recuar alem do sec. XVIII. Nao podemos duvidar que estivesse neste sitio a ponte do mestre Zacarias (et ficaiiit sua tenda in Ahdster): e o da travessia tradicional e o unico aceitavel na regiao acidentada. Nada de antigo, porem, encontramos. Ate ao Botao ou, melhor, ate ao Outeiro ha uma simples tra- vessia de colina por sitios solitarios. Outeiro domina o vale de Botao do alto duma encosta em escarpa e permite o estudo do tragado do caminho antigo ate a subida propria- mente da serra. Ai pudemos conversar com pessoas de idade que confirmaram e deram esclarecimentos sobre a passagem, comple- tando-os de informagoes dos percursos normais e das variantes que as estafetas do correio faziam para abreviar as viagens. Do Outeiro descia violentamente o caminho antigo por forte declive, cuja dificuldade de transito melhor se sentira subindo-o, como fizemos, e que chega a fazer duvidar que bois e cavalgaduras o tivessem vencido. Justificando essa dificuldade, marcos colocados proximos da parte alta impedem a sua utilizagao e so permitem que os carros de bois sirvam as propriedades da parte superior. O acesso a povoagao faz-se por nova estrada. O caminho antigo atravessa duas vezes a nova corrente, a da ribeira do Botao: a primeira, ao fundo dessa alta ribanceira, a outra ao termo do povoado. Tinha pois, de haver duas pontes ou em mais exacta classificagao, pontoes. 108 A inferior, a de Outeiro, esta representada por dois pequenos pegoes que suportam simplesmente tres lages de calcario, compridas mas eslreitas, que so permitem o transito a pe. Outrora as lages tinham de ser dobradas e, ainda assim, nao dariam comoda passagem aos carros. Posto que o seu estado actual represente pobres acomoda^oes depois de desaparecido o grande transito e das enchentes a lerem gra- vemente danificado, apesar disso nos leva a pensar que outrora aqui tivesse existido urra dessas pontes formadas de compridas lages de boa pedra ou fortes troncos de carvalho e de castanheiro, recobcrtas de lages. Deste ultimo tipo as temos encontrado em passagens fluviais de correntes bastante mais impetuosas, dotadas de pegoes fortes e bas- tante espa^ados. Deste primeiro pontao segue hoje uma queiha, que e o estreita- mento do velho caminho, e desemboca no largo de S. Sebastiao, em frente da capela, largo que pouco adiante e demarcado por cruzeiro de tipo de templete de colunas. No sec. xvii e ano de 1603, sendo levada, por incumbencia do cabido de Viseu e oferta do mosteiro de St.^ Cruz de Coimbra, a reliquia de S. Teotonio, refere o cronista que a 1 1 de Fevereiro partiram de Coimbra «E com esta ordem caminharao naquella tarde ate o lugar de Botao. Tinha ja auizo o Vigairo do lugar que sahio fora a receber as Santas Reliquias, reuestido com sua capa branca de demasco, & tela, debaixo de hum Pallio que leuauao quatro Clerigos com suas sobrepelizes, & outros com tochas com Cruz diante, & muito pouo. Ao entrar pois do lugar junto a hum Crucifixo, que flea fora delle, vendo os Conegos vir a deuota Procissao, se apearao das mulas, & tirando das andas o cofre das Santas Reliquias, o puzerao nas maos do Vigairo, que estaua debaixo do Pallio, & assi forao em Procissao pera a Igreja do dito lugar... » Botao era ponto marcante no caminho. Pertencia ao mosteiro de Lorvao. No principio do sec. xvi, «a magnifiqua Senhora a Senhora Dona Catherina de E9a». ilustre abadessa, um dos Mecenas das artes na epoca manuelina, que no mosteiro mandara fazer o paQO abaciai de que existem restos e encomendara pratas, tecidos, bordados e escul- turas de que permanecem exemplares, aqui, nesta sua vila, alem da capela-mor da igreja, fez construir o pago que, em maior ruina de dia para dia, revela ainda grandeza nada comum. Destinava-o a receber, com o fausto que competia a abadessa de mosteiro de tal renome, OS grandes senhores que passavam. Anteriormente, no ano de 1428, nas vesperas do casamento d'el-rei D. Duarte, estando este ja em Coimbra, com o infante D. Henrique, e sabendo que o infante D. Pedro havia chegado a Avelas de Caminho, 109 foram ambos ali, onde dormiram. No dia seguinte, D. Duarte com D. Pedro dirigiu-se a Botao a esperar D. Afonso (e foy ao outro dia comer com ele a botao, ao qual lugar chegou o Conde meu irmao) ; D. Hen- rique, que isto refere em carta para o pai D. Joao I, regressara directa- mente a Coimbra. Ultrapassada a povoagao, voltava o caminho a cortar a margem esquerda da ribeira. Este novo sitio tern aspecto diverso do anterior; ao passo que aquele e de simples passagem de aguas, este e de confluen- cia e turbilhonamento das mesmas nos periodos chuvosos. A ribeira quebra para nordeste e vem-lhe de sudeste pequeno regato. A pas- sagem necessitava de cuidados maiores. Nao e antiga a ponte; dos fins do seculo passado, se ja nao aca- bada no presente, tern aspecto de ter sido construida na execugao do projecto da estrada que vai a Monte Redondo, Alagoa e Figueira, ligando-se com a que segue de Penacova a Luso. De Figueira corre tambem ate Sernelha e desce a Lorvao, seguindo sensivelmente o tra- jecto que levaria ao mosteiro, a bordejar e cortar linhas de cimos, a evi- tar vales e longos tragados, a descer duras encostas destas «serras de Lor/vao», do Crisfal. A ponte e de dois olhais, de cerca de quatro metros de largura, em arco rebaixado. Este sitio, pelo aspecto geo-morfologico, teria de ser o tradicional da ponte. O caminho antigo, passada a ponte, quebrava logo, a nordeste, para seguir a vertente da margem esquerda. Ficamos na persuagao de ter sido aqui a ponte ao lado do Bugaco (et uenenmt ad latera Buzat et fecerunt ibi altera), e nao a Ponte da Mata, como de inicio haviamos presumido. Estudamos visualmente o terreno do referido ponto dominante de Outeiro e completamos o exame, descendo de carro da Alagoa a Botao. O velho caminho nao ia romanticamente lado a lado da veia da ribeira; o escarpado obrigava-a a tomar altura, procurar Casqueira e desse local vollar a descer para a Ponte da Mata, onde vencia uma das breves linhas de agua que ai se juntam e formam a corrente principal. O que se encontra como ponte e moderno; uma placa de cimento pouco extensa. Ate a sua execugao, segundo memoria de homem, nada existia; passava-se no acidentado leito da ribeira. O xisto local forma um estreitamento, provocado por duro veio de quartezitos, que sempre 110 deveria ter servido para o fim dc pontao. Talvez este nunca tivesse passado de fortes troncos, postos lado a lado, cobertos de duras lages, como tantos que conhecemos na nossa serra natal. Nem aqui nem em Botao restos alguns vimos que pudessem recuar a tempos medievos. Vincando o aspecto deste sitio, num dos percursos principals do Reino, pois que era estrada de invasoes, uma das que se guardaram na terceira invasao napoleonica, ai se encontra uma ca^a tradicional, ja do sec. xviii adiantado, posto que seus lintels, tanto nas portas como nas janelas, sejam direitos. Neste lugar conversamos com a gente local e recolhemos recor- dagoes da antiga passagem. Como tudo na vida se encadeia, falaram- -nos, tal como o haviam feito em Lagares, a 13 de Janeiro de 1952 (epoca em que ja nos tinhamos ocupado deste assunto), em um dos nossos professores, o conego Dr. Manuel Antonio Ramalho, que vinha de sua casa de Coimbra, a St.^ Teresa (aquela em que falecera o pintor setecentista Pascoal Parente), em mula de tipo muito ecle- siastico, e seguia o velho caminho, tal como o haviam feito inumeras geragoes, desviando-se no alto para Contengas. Fique registado seu nome como o do ultimo dignitario eclesiastico a encerrar a lista dos altos viandantes. Da Ponte da Mata ate ao Galhano (mencionado por Baptista de Castro) sao tres quilometros, e dali ao alto da serra um outro, por duas vertentes; tragado este que a estrada decalca, com diferengas so de metro num ou noutro ponto. A subi-la de carro, entre pinhais hoje, insensivelmente se pensa no que de esgotante seria vence-los nas passadas eras, entre espessos matorrais, sol escaldante a bater nas costas, a gente humilde carregada de fardos. Do Galhano (como nos informaram e mesmo se prontificaram a guiar-nos) seguia directamente ao alto, mas havia quern se desviasse aos Palheiros, como sitio povoado, e cortasse diagonalmente, a encon- trar-se no viso com a outra. No alto da serra do Bugaco avistavam os caminhantes novos horizontes: o Caramulo e Viseu a esquerda, a direita as serras da Estrela, do Agor, de Gois, Lousa. Nova alma nascia. Viam em baixo a albergaria de Santo Antonio do Cantaro, de Carvalho oficialmente, onde poderiam repousar, os pobres receberem agasalho, tratamento os doentes. Fora o Bartolomcu Domingues, filho de Domingos Feirol e D. Belida. que a havia fundado nos comegos do sec. xin, entregando a escolha do administrador a Camara de Coim- bra. Mais tarde, ja no sec. xviii, o marques de Pombal reivindicou 111 a administragao dessa albergaria de Carvalho e mandou fazer o tombo que se guarda em quatro volumes, com dispendio tal que nao o cobri- riam as receitas de varies anos, so para possuir prova e justificagao solida e antiga da sua nobreza. Aqui, em Santo Antonio, ficaremos. Nenhuns tragos dessas pontes do sec. x, do mestre Zacarias de Cordova, encontramos. Nao e de admirar; posto que bem construidas, como sera de presumir, eram baixas, de apertados olhais, fortes porem as repetidas enxurradas dos invernos, socavando-as lentamente, o descuido de seculos obscures a ajudar. Tendo passado um mile- nio, a que so faltarao breves anos, que poderiamos esperar? Resta o problema da ponte e moinhos de Forma. Nao se conhece sua localizagao. Aparece o nome em raros documentos mas sem que deles se possa ir a sua identificagao. A que ja foi sugestionada nao e Jogica, a nao ser que houvesse mais que um sitio de igual nome, visto que julgamos ter encontrado um deles, em documento tardio, que igualmente nao e de admitir para ponte, local que visitamos. Seria si'tio em corrente formada de abundantes aguas. No ano de 1 109, o presbitero Arias fez larga doagao ao mosteiro, inclindo tres molinos in ilia ponte de Forma. Havia pois moinhos em serie, como se encontram em tantos pontos do Pais. Pelas razoes apresentadas de comego, insergao destas pontes do documento em caminhos de longo percurso, dever-se-ia encontrar Forma num trajecto importante. Nao nos parece que fosse no de Viseu, como, por exemplo, em Eiras, onde ha abundancia de agua e e de convencer a existencia de ponte antiga. Dever-se-a notar que a enumeragao das pontes no documento nao segue a ordem topografica: depois da segunda volta atras. Por isso nada impediria que se desse o mesmo com Eiras. Em Eiras nos demoramos indecisos, na ponte, em frente do grande fontenario joa- nino, no trajecto do canal para o mesmo; no gabinete folheamos o Index da Fazenda do Mosteiro de Celas, que se re fere a grande niimero de sitios daqui. Nao sera suposigao a desprezar; todavia acabamos por nos inclinar por outra. Aquela a que motivos geograficos e de transito nos levaram, e a qual nao queremos dar outro valor que o de mera hipotese: a localizagao perto da Ademia de Baixo, na estrada do norte, para o Porto. Complicar-se-a desmedidamente o problema pelo assoreamento geral do Mondego, intensificado desde a baixa Idade Media, o qual 112 se estendeu para a regiao terminal da ribeira de Fornos, elevando, pois, aquele terreno onde presumimos, por simples intuivao repetiremos, a ponte de Forma. A computagao dessas aluvides pode-se obter quer transitando pelo ramal da Estagao Velha a Cidreira, que passa ao lado do Rio Velho e deixa a norte o extenso campo do Bolao (que tern as cotas maximas de 10, 12 e 13 metros), quer tomando, no entron- camento da Ademia. a estrada da Figueira da Foz. Ve-se para norte a grande curva reentrante formada pela base das colinas envolventes, desde o Loreto, Pedrulha, Adcmias, por Antuzede, Cidreira, a Geria, e ainda a penetragao para os Fornos. O velho caminho do norte, o do Porto, ia do Loreto a Pedrulha, a Ademia, cortava a ribeira e, pelo lado da Espertina, subia a Cioga do Monte, passava a Trouxemil, ao actual Sargento-Mor, a Santa Luzia, lugar deserto nao ha muitos anos, e seguia. Esse caminho. entre a Ademia e a Espertina atravessava a referida ribeira do Botao ou dos Fornos que ai ja leva o afiuente de Souselas, e atravessava-a em dois pontos seguidos, visto o curso das aguas for- mar bragos, por circular na zona de aluvioes. Isso se ve da carta 1/50 000, onde se marca o sitio dos pontoes. Sao pequenos e de tragado semelhante aos que indicamos no caminho de Viseu. Nao poderao ser anteriores ao sec. xvni. Tambem nada ai encontramos, nem presumiamos que acontecesse, porquanto as aluvioes teriam fundamente recoberto seus restos. As conclusoes nao sao agradaveis, posto que fossem sensivelmente as que esperavamos : nada resta, parece, do que mestre Zacarias exe- cutou como obra de pontes. Mestre Zacarias nao fora chamado de Cordova para as pontes; a lembranga destas veio a gente do concelho de Coimbra em virtude dele estar a trabalhar no mosteiro laurbanense e, certamente, ter aca- bado as obras dali. O homem de acgao que parece ter sido o abade Primo quis, pos- sivelmente, renovar o mosteiro por miios competentes. Chamou homem dum lugar em que se praticava bem a arte de construir, e nao da regiao leonesa (epoca de Ramiro III); nao todavia para obra vasta. O numero de monges que se pode deduzir pelos documentos era res- 113 trito, como tambem diminuta a populagao crista; a vida monastica fazia-se em salas comuns, as construgoes eram de pequeno ambito, terreas e modestas. Isso se infere do exame atento e compreensivo do que resta ao norte desse antigo reino. A natural leitura dos trabalhos dos estudiosos hispanicos sobre o pre-romanico peninsular fez-nos, desde longos anos atras, pensar em Lorvao e mestre Zacarias, bem como ainda em Vacariga (onde nada encontramos) e em certos lugares do Centro referidos em diplomas daquela epoca, a primeira reconquista. O conhecimento do arco ultrapassado na parte mais antiga do conjunto monastico de Lorvao obrigou-nos, nas visitas de Setembro de 1948, feitas para o acabamento do volume do inventario artistico do distrito, a examinar mais cuidadosamente a zona em que se encon- tra. Estava nessa altura o antigo conjunto monastico em obras, as da dificultosa consolidagao da igreja e as de acomodagao do restante a fins hospitalares. Parecia, a uma primeira vista, que essa porta em arco tivesse sido aproveitada de qualquer outro ponto e ali utilizada. A chave da solugao deu-a a planta do conjunto, fornecida pelos Monumentos Nacionais, e o nosso conhecimento da arte de construir torres de for- talezas no Centro. Examinando a planta com atengao (Veja-se no Inv. do Dist. de C.^, pag. 195, ou, mais completamente, a parte dese- nhada do n.^ 99 do Bol. dos Mon. Nac), notam-se no corpo secundario, implantado a nordeste do principal e na sua parte proxima da igreja, espessos muros dum recinto quadrado, cuja espessura diminui no segundo piso, mas mostrando-se ainda acentuada. Alem disso ve-se que serviu de nucleo de novas construgoes: de nascente encosta-se-lhe pequeno corpo manuelino, certamente obra da magnifica abadessa D. Catarina de Ega. Neste segundo piso rasga-se a rude porta do arco ultrapassado. Guardamos fotografias anteriores e do tempo a seguir a sua consolidagao e restauro, bem como um desenho nosso com a ano- tagao de cada pedra, isto e, se velha ou nova e arranjos que teve. Deixamos escrito no volume do Inventario, com aquela prudencia que costumamos usar mesmo quando se tenha radicado em nosso espfrito uma conclusao: — Por si so nao se pode datar com rigor; poderia ser da primeira reconquista, podera e devera ser da segunda e mesmo avangar ate ao governo de D. Afonso Henriques, sendo a sigla como as da epoca condal, mas nao podendo ele ja ser da epoca afonsina, apesar do Apocalip.se trazer desenliados muitos arcos ultrapassados. Essas paredes constituiriam uma torre de defesa, tendo a porta, como nelas se usava, muito acima do solo. Nao chegamos a examinar 114 as mesmas parcdes na ocasiao em que as argamassas de revestimento foram renovadas e, por isso, nao pudemos descer a conclusoes de pormenor. Torres de refugio e defesa, quer de grupos de cultivadores rurais quer de casas de senhor de dominios, deveriam ter sido em certo niimero na zona de Coimbra, pois que foi terra de fronteira por largas epocas, como atestam os nomes de Torre de Vilela, Torres, Castelo Viegas (existindo o ponto destacado em que o forte se levantava), nao Ihe devendo ficar longe a torre do Caniardo, como ainda confirma a pequena e irregular Torre de Bera. Aqucia parte monastica, pela rudez de construgao, tambem se nao pode atribuir, por muito boa vontade que se tenha de o fazer, a mestre Zacarias. A coluna de marmore e o fragmento de estuque de Montemor- -o-Velho colocamo-los nos na segunda reocupagao mugulmana, depois de Alman^or. Nenhuma relapao pode ter, analogicamente, com aquele mestre. * * O arco ultrapassado permaneceu por largo tempo em Coimbra, nas construgoes de caracter militar. Mesmo nos livros iluminados laurbanenses, Livro das Aves (ano 1183) e Apocalipse (do escriba Egas, ano de 1189) se encontram desenhados conjuntamente com os semi-circulares, como tambem no Velho Testament o que foi de St.^ Cruz. Na cerca da cidade de Coimbra, reconhecemos na antiga porta principal, a de Almedina, tanto a disposigao a maneira mugulmana de um arco no exterior e outro dentro, como o tragado em ferradura desses arcos, mutilados pelo corte das ombreiras (///v. da Cid., pag. 6); conservando-se desenho da porta do sul, e da Traigao, de igual tragado. Atribuimos aquela (como reforma) a epoca condal e continuamos nessa persuasao. O mesmo se deu com outra entrada de regiao mais a norte, que referiremos num dos volumes do Inventario respective. Do tempo afonsino e com seguranga a porta anexa ao antigo pago episcopal e em frente da secularizada igreja de S. Joao de Alme- dina. Escrevemos a seu respeito {Inv. da Cid., pag. 160): — Tem duas frentes, cada uma com seu arco ultra-semicircular, em tragado geral mugulmano, mas cujo aparelho denota claramente o periodo romanico. Quando, nas obras do edificio anexo, foi isolada, na epoca em que se descobriram novos restos da antiga igreja de S. Joao de Alme- dina e se valorizaram, nao nos foi dificil fazer ver aos estudiosos da 115 cidade, e nomeadamente a um ilustre historiador de Arte, infelizmente ja falecido, que a igreja pertencia a fase citadina do romanico condal, o do primeiro tergo do sec. xii, e a porta ao posterior, o da epoca afon- sina; o aparelho de um e outro lado era e continua a ser bem esclarecedor. As obras do comego do sec. xvi, da fase manuelina, epoca de grande reforma do pago (de que se encontraram largos tragos que tiveram de ficar ocultos) pelo bispo conde D. Jorge de Almeida, coroa- ram essa porta de ameias meramente decorativas e bem tipicas desse tempo. Pertenceu a uma cerca privativa da igreja e do pago, em que os proprios muros destes serviam de cortina, analogamente ao que suce- dera com o mosteiro de St.^ Cruz. (Em «Ocidente», vol. lxxii. Lisboa, 1967.) Nota — Estudiosos de merito tem tentado identificar os nomes dos sitios dados neste documento com certos dc pontos disperses, sem concatena^ao geografica. Erro de qucm so possuia conhecimentos filologicos. Numa epoca de povoamento muito raro e de baixa economia, pontes, fora de grandes aglomerados, so se levan- tavam nos pontos de atravessamento de vias gerais, como seriam aqui as de Viseu, Porto e para o Sul, e ainda no maximo para o mar, Buarcos. O mesmo, equiva- lentcmcnte, se vc na scgunda parte da Idade-Media. 116 VI A LANTERNA-CORUCHEU DA SE VELHA DE COIMBRA Num breve artigo de jornal, publicado em 9 de Julho de 1932, tentamos aclarar qual tivesse sido a epoca da construgao daquela parte da velha se conimbricense, qual a cobertura primitiva e sua forma. Este artigo nao quer dizer que, no ano que ja decorreu, tenham aparecido documentos novos e concludentes; limitamo-nos nele a expor, com mais alguma amplidao. as afirmagoes e hipoteses contidas naquele, para que sirva modestamente a um melhor conhecimento da igreja. Na intercepgao da nave central com o transepto, apoiando-se nos arcos que limitam os tres hasteais e a capela-mor, ergue-se, em forma quadrada, a lanterna do cruzeiro. Logo acima daqueles arcos corre uma arcada cega, tipicamente romanica e manifestando, por todas as suas formas, a intima ligagao plastica com o resto do edificio. Outrora constituia uma galeria, como as que circundam as partes altas dos bragos da nave de cruzeiro, e com as quais estava em liga^ao por inter- medio das escadas que delas partem, cavadas na espessura dos muros, aos lados do arco da capela-mor, e vao desembocar na galeria externa da fachada oriental, onde uma porta, que ainda bem se nota, estabelecia a comunica^ao. Como a abobada do transepto esta a menor altura que a da nave do hasteal do poente, o arco, que no cruzeiro limita esta nave, ficou a menor altura que os restantes torais, dando lugar a que na galeria se cortasse uma janela a dominar aquela nave. Logo mais acima aparece uma imposta corrida, acantonada de quatro misulas, das quais irrompem os arcos cruzados da abobada. Em cada face, entre a imposta e a abobadilha, ha uma janela geminada, ou duas emparelhadas, se antes assim se quiser dizer, posto que menos rigorosamente, como se demonstrara. 117 A construgao toma no exterior a forma de paralepipedo, cortada das mesmas janelas interiores que um comum arco de descarga une, arco de fim construtivo e nao ornamental. A galeria entaipada, do interior, so no lado nascente se acusa fora, por uma outra dominando a abside; no do poente, correndo ela a altura do meio-canhao, tornava-se impossivel rasga-la. O seu fim era ornamentar aquele espago interno que os telhados obrigavam a construir antes que se pudessem abrir, acima deles, as janelas; como tambem era dar equilibrio plastico a construgao, naquele espago em que se vinham encontrar abobadas com fechos a alturas desiguais. As faces externas sao lisas, a excepgao da que esta voltada para o levante, na qual se destacam dois corpos de tres faces que albergam estreitas escadas. Ao alto corre uma cimalha de molduras simples. Nos seus angulos e ao centro de cada linha, destaca-se uma gargula quatrocentista. Segue-se a cupula do princfpio do seculo xviii, rematada dum falso lanternim. Cavada nos muros, entre os arcos internos e os externos das jane- las, passa uma nova galeria de circulagao, aonde se abrem as mencio- nadas escadas, que levavam ao eirado superior. Aqueles arcos cruzados da abobada, incontestavelmente ogivais, tem sido um grande enigma para quantos se ocuparam da velha se de Coimbra. Vem romper a harmonia do templo e, desacompanhados de arcos agugados nas janelas, tornam-se incompreensiveis. Tomemos a escada do ramo do aguiao do transepto, subamos aos telhados, e vejamos cuidadosamente toda a construgao. Punhamos de lado a arcada da galeria obstruida, iniludivelmente romanica, construtiva e plasticamente integrada no edificio inferior. Ao passo que nas naves os arcos sao lisos, aqui, na lanterna, nao ha um unico que nao seja moldurado, e de molduras ordenadas sob uma outra formula que a do portal do ocidente e da janela que o sobre- puja; OS abacos sao diversos, e ate os poucos capiteis, que ainda restam, sao duma outra familia artistica, fora dos classicos moldes romanicos. Mas nao e unicamente o aspecto decorativo que e diverso, nota-se tambem uma solugao de continuidade construtiva; a parte superior nao e o seguimento naturalmente pedido pela de baixo, a das arcadas; ela sobrep6s-se-lhe admiravelmente mas nao se fundiu com ela; ha ali uma mudanga de projecto e, digamos ate, uma ignorancia, ou des- 118 A.t r'^H-^ Interior da lanterna Ha porem um sinal concludente e claro de que as piramides (coru- cheus) assentavam no mesmo piso que a actual calote esferica ocupa. D. Jorge de Almeida, nos fins do seculo xv ou primeiros anos do xvi, vendo a se tao sobria de ornatos na parte do nascente, alem de reno- var as gargulas em figuras quimericas, coroou as absides duma leve grilhagem, com pinaculos na parte alta; sobre a galeria exterior do cruzeiro desdobrou uma outra, bem linda e que era linica da sua epoca em Coimbra, removida nesta restauragao; e a velha lanterna nao deixou sem um arzinho da gra?a flamejante. O que nela se conserva e pouco; so oito gargulas se debrugam do eirado. A cimalha, que as liga e ter- mina as linhas perpendiculares, tambem e da mesma epoca, como con- sideragoes varias, e entre elas a natureza da pedra empregada, nos convencem apesar do desenho das suas molduras ser indeciso para a marcagao clara duma fase arti'stica. Por cima dela devia correr uma grilhagem com os respectivos pinaculos a subdividi-la. Pois bem, veja-se a penetragao das pedras que formam a cornija e explique-se como elas poderiam ter sido introduzidas num muro denso sem que, com isso, se nao produzissem graves abalos na obra superior. Dese- nhe-se o octogono do corucheu no eirado, e notar-se-a como a obra de D. Jorge se realizou facilmente, posto que os pequenos pinaculos angulares tivessem de ser refeitos inteiramente, o que era obra diminuta. A esta obra do bispo D. Jorge referir-nos-emos mais adiante, posto que brevemente, porque tem grande interesse. Ha um outro grave problema. De que era feita a flecha? De pedra ou de madeira, e de madeira coberta de telhas, ardosia ou chumbo? Nao ha uma unica indicagao concludente. E para nos supo- si^ao mais ou menos alicerceada que teria sido de madeira. A fls. 14, verso (numeragao que nao foi impressa no livro) da Visitagam geral do estado espiritucd desta See de Colbra, tiradas das visitaQoes dos prelados, custumes e obrigagoes e da casa polio Bispo do loam Soarez, assi os estatutos antiguos e bulla dos dias no anno, impressa nesta cidade, no ano de 1556, por Joao Alvares, vem entre as obrigagoes do tesoureiro da Se a seguinte: «Teraa sempre fechada a porta do caracal que vay para ho coricheo e a outra que estaa no fim do caracol, e assi fecharaa todas as janellas grandes e pequenas do dito coricheo para que nam chova por el I as e apodreca a madeyra, e cada vez que algua das portas do caracol se achar aberta pagaraa dez reaes, e fur- tandose ho chumbo do dito coricheo ho thesoureiro ho pagaraa». Aquele caracol e a escada do transepto. Nao creio que pelo termo madeira se designem os sobrados dos tres pisos, pois que nesse 126 I #^i3F" Coimbra no sec. xvii, segundo Baldi caso nao teriam empregado aquele termo generico, e possi'vel que por ele se quisesse indicar o madeiramento geral. Pela mesma relagao de obrigagoes se fica a saber qual o fim que tinhani os orificios que ha na abobada: (fls. 14, v.") (... e dia de Pente- coste a missa em querciulo cnfrar aa offerta lancaraa decimci polios buracos do corieheo muytas rosas (fl. 15) esfolhadas, e outras ervas cheyrosas, e em quanta durar a offerta deytaraa as ditas rosas sem faze- rem nenhiim interuallo». Nas contas da conezia da obra aparece em Janeiro de 1635 uma verba dispendida com a compra de setenta e cinco arrateis de chumbo em pasta para as janelas do corucheu, e uma outra de 250 pregos para pregar as pastas. Tratava-se simplesmente de pequenas reparagoes. Isto indica-nos que se o todo nao era de madeira, dela eram indubi- tavelmente as lucarnas, que eram salientes na parte superior com um pequeno telhado, originado na perpendicularidade da sua frente e a incli- nagao da flecha. Poderemos dizer por este registo e pela cominagao duma pena no caso de se furtar o chumbo do corucheu, imposta na Visitagam Geral, que toda a piramide era coberta de laminas de chumbo? Nao creio, Nao creio, posto que fosse provavel. 127 Em Setembro e Outubro de 1635, isto e, daquele mesmo ano, comegou-se a renovar a cobertura da flecha, para o que se compraram 855 azulejos. Ha nas contas tres verbas dignas de reparo, uma de trinta e cinco pregos grandes com orelhas, a seis reis cada, outra de trezentos e nove pregos de real, e ainda mais outra de dez pregos de orelhas, a seis reis. Aquela quantidade de pregos nao era positiva- mente so para os andaimes, cuja arma?ao vem mencionada, mas tam- bem para pregar os azulejos e prega-los em madeira. Nos azulejos que, ate este ultimo periodo de restauragao, cobriam as absides aparecem alguns com orificio, feito ainda na pasta mole, para se poderem pregar. A obra interrompeu-se inopinadamente com a noticia da nomea^ao de novo bispo «na nova do sor bispo», o D. Jorge de Melo. Teve de preparar-se a se para a sua recepgao e as atengoes voltaram-se para as limpezas e arranjos na igreja. So em Dezembro de 1643 se acabou aquele revestimento de azulejo. O livro das contas da conezia da obra, que abrange aquele ano, traz com certa minudencia a despesa feita, mas de la nada se pode concluir infelizmente para o nosso caso. Se ha verbas que parecem indicar tratar-se duma construgao de madeira, como a aquisigao de ferros para ligar as traves, sete duzias de tabuado de castanho, ha tambem tres carradas de pedra de Portunhos que dois aparelhadores consertaram em cinco dias, e que depois assentaram empregando gatos de ferro e chumbo. Certamente a quantidade de pedra nao e grande e devia tratar-se de coisas secundarias dentro ou fora da flecha. O que parece certo e que nesta ocasiao os azulejos foram assentes com cal. Se nos lembrarmos da quantidade de tijolos e ladrilhos com que se sobrecarregou o tecto em madeira do seculo xv, ao formar o pavimento do antigo coro alto desta se, nao veremos desde ja naquele processo uma prova duma piramide em pedra. Sempre se indica como causa para a substituigao da antiga flecha pela moderna cupula o estado de ruina a que ela tinha chegado, ruina que mais facilmente se explica se admitirmos que era de madeira. Las- teyrie, falando das flechas de madeira francesas, diz que nao e facil pronunciar-se sobre a idade de cada uma delas, pois que exigiam fre- quentes e fundas reparagoes. Esta, da Se Velha, apesar de ter sido frequentemente consertada, devia conservar as primitivas grandes traves mestras, e quando se inipos a sua substituigao, no principio do seculo XVIII, preferiu-se dar-lhe uma outra forma. A divisao de tres andares devia ter sido sugestionada pelas grandes travessas a ligar as oito grandes linhas das oito arestas da piramide. 128 As lucarnas seriam de abertura muito posterior. Os corucheus penin- sulares do seculo xiii nao teni aberturas ou, quando muito. so simples agulheiros. nos de pedra. A reforma de D. Jorge de Almeida, enunciada simplesmente pelas oito gargulas e pela cimaliia de que elas fazem parte, alterou um pouco o coruciieu. Foram tapadas superiormente as duas escadas, como se ve pela penetragao das pedras, que ha pouco, na abertura da escada que esta para o lado norte, tiveram de ser cortadas para se conse- guir a passagem. As quatro piramides angulares foram refeitas, como ja dissemos. Inutilizadas aquelas escadas, ficou a servir uma exterior, do lado do poente. No artigo de que este e uma remodelagao deixamos escrito: «A escada que hoje serve a cupula e da obra primitiva e devia dar para o interior do corucheu central, nao directamente mas por uma forma aproximada da actual. A escada encostada. e que leva aquela, e obra posterior)). Nestas obras de restauro a escada exterior foi desmontada, a supe- rior tapada. Quando escrevemos aquele artigo fizemos um exame rapido a esta parte da lanterna ficando com aquela opiniao. Mais tarde fomos para um outro mais demorado e ja encontramos a abertura fechada. Hoje, sendo impossivel documentarmo-nos cuidadosamente, nao nos abalangamos a nenhuma atirmagao categorica. Se a existencia primitiva daquela abertura possui, em virtude de boas razoes, uma certa probabilidade, a opiniao contraria tambem se pode apoiar noutras nao menos solidas. No tempo de D. Jorge de Almeida houve obras no interior da lan- terna, como o demonstram o fecho da abobada de madeira, graciosa, e que bem e que se nao tire, a ocultar o verdadeiro de pedra, e o brasao de armas dos reis de Portugal que de la pendia, suspenso de grandes cadeias de ferro, e que hoje se guarda no museu arqueologico da cidade. Nao podemos saber que amplitude elas tivessem tomado. O exame das partes restauradas mostra que as colunas interiores, em que se apoia o duplo arco das janelas, com as correspondentes laterals, tinham sido tiradas. Para que se pudessem fazer as obras que exigiram a sua deslocagao, tiveram de ser mutilados os capiteis, na parte superior, dos colunelos que aguentam os arcos formeiros, apesar de se encontrarem bem recolhidos nos angulos da construgao. Que se fez ali? Em que epoca? 129 Tem-se considerado como uma barbaridade sem nome a substi- tuigao da antiga cobertura da lanterna pela cupula actual. Devemos notar que se nao fez mais do que repetir no seculo xviii o que tinha sido feito na epoca gotica, construir na moda do dia aquilo que a necessidade obrlgava a fazer, que a actual cobertura se harmoniza bem com as linhas inferiores, que e estranho que se lamente o desapare- cimento daquilo que se nao sabia o que tinha sido e que, depois deste pequeno estudo, ainda mal se fica a saber. A obra de D. Antonio de Vasconcelos e leve; feita de tijolo tern pouca espessura, e ate, tendo de se construir, para melhor amparar o falso lanternim, uma coluna sobre o centro da abobada, deu-se-lhe a forma de anel, ficando a pesar pouco. A seguir a este artigo no semanario, o Prof. Guido Battelli publi- cava um desenho de Contente a reproduzir o de Baldi, na Viagem de Cosme de Medicis por Espanha e Portugal (1668-1669), e acres- centava : «Na nossa gravura ve-se tambem a Se Velha, com a sua frente coroada de ameias, e uma torre com um altissimo corucheu, em lugar do zimborio actual. A verdadeira fonna deste corucheu foi ha pouco revelada pelo bom amigo Antonio Nogueira Gongalves, que o recons- tituiu in mente baseando-se apenas no raciocinio e calculo, e tendo em vista alguns escassos dados historicos; agora a gravura, que acompanha este artigo, veio dar-Ihe plenissima confirmagao. E a unica represen- tagao grafica, onde aparece a torre-lanterna da Se Velha, anterior a reforma do seculo xviii. Felicitamos o nosso amigo por esta ines- perada confirmagao da sua feliz descoberta». (Em Biblos, vol. x. Coimbra, 1934.) 130 VII A IGREJA DE FERREIRA DE AVES E OS SEUS ELEMENTOS ROMANICOS Ferreira de Aves, freguesia do concclho de Satao, bispado e dis- trito de Viseu, assenta na vertente ocidental da serra da Lapa, nuni dos vales que formam as linhas de agua, origem do rio Vouga. O nome de Ferreira de Aves designa um pequeno territorio, o da freguesia. A igreja paroquial, antiga colegiada, cujo titular e St.o Andre, esta na povoa^ao do Castelo. Foi causa de virmos a tomar conhecimento directo com a igreja a organizagao do volume da zona sul do inventario artistico do distrito de Aveiro, por ter ali falecido o bispo de Braganga D. Manuel de Moura Manuel, na viagem de regresso a sua casa, e ter ficado depositado nesta mesma igreja ate a transladagao de sens restos para o tumulo monu- mental que mandara levantar na capela de Vista Alegre. Concomi- tantemente gostavamos de ver um dos pontos em que pernoitou, no seu acidentado regresso ao Pais, um dos que foram compelidos, mais que enviados, por Junot, a cumprimentar Napoleao (e que, fundamen- talmente, nao passavam de refens), D. Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, bispo de Coimbra, conde de Arganil, senhor de Coja, reformador reitor da Universidade, como se designava nos sens documentos oficiais, que aqui chegara no dia 3 de Novembro de 1810. vindo de Moimenta da Beira e partira no dia seguinte para Viseu. Referiu-se-nos a esta igreja, ha uma vintena de anos, o ilustrado autor de ''Terras do Alto Paiva\ conego Manuel Fonseca da Gama. Limitamo-nos a tomar nota. O unico estudo sobre a parte romanica de cuja existencia sabe- mos e o de Lucena e Vale — "A Porta Romanica de Ferreira de Axes\ (em Beira Alta — Viseu — \. X, f. 1-2): p. 103-117; 1951), de que ali nos falaram e que so depois de redigido este estudo pudemos ler. 131 A igreja e hoje um edificio de tres naves, capela-mor, com anexos a parte esquerda desta, de porta axial e duas travessas. O simples exame directo indica varias fases de construgao e reforma. A frontaria, conjuntamente com as colunas internas, tem aquele aspecto que marca o final do sec. xvi e a transigao para o seguinte. A capela-mor, ja em certas partes, o sec. xviii. As paredes laterais da nave, rematadas de cimalhas modilho- nadas, conservando a sul a porta romanica, apresentam-se como sendo as mais antigas partes conservadas, posto que, ao primeiro exame, revelem tra^os de remeximentos em diversos periodos, como sao as frestas rectangulares, de esbarro, fechadas posteriormente, a porta lateral esquerda, da renovagao geral da igreja, e ainda elementos mais tardios, como janelas setecentistas. Exame mais profundo das mesmas paredes trouxe interrogagoes de outra categoria. Nao deveriam ter sido consolidadas simplesmente na epoca da grande transformagao e dotadas de certas aberturas novas, a que se viessem juntar alteragoes posteriores: elas teriam sido deslo- cadas lateralmente para se obter o ambito que hoje apresenta. Este espago — proporcionalmente a outras igrejas medievas, correspondendo a paroquias de populagao mais elevada que a de Ferreira, e que no cadastro de 1527 nos aparece ainda so com duzentos e onze fogos — era fora do comum. A solugao devemo-la ao exame do "Livro das Visitagdes\ que o paroco P.^ Manuel Pinto Henrique de Matos tao prestantemente nos lembrou e amavelmente facultou. Posto que o fizessemos rapidamente, o nosso habito de com- pulsar codices do mesmo genero, permitiu-nos ajuizar com seguranga do andamento dos trabalhos e obter — o que principalmente dese- javamos — a relapao construtiva entre a actual e a antiga igreja. Era paroco da freguesia em 1573 o abade Francisco Fernandes. O visitador episcopal preceituou ao abade e beneficiados (pois que a igreja de St.'^ Andre era sede duma antiga colegiada, como ja enun- ciamos) que refizessem a capela-mor, devendo ser de cantaria por fora e alvenaria por dentro. A construgao desta parte da igreja pertencia, por direito consuetudinario, a quern recebia os rendimentos paroquiais (dizimaria e outros), quer os percebesse por exercicio efectivo quer como padroeiro. O povo devia construir e conservar a parte do corpo, se 132 Ferreira de Aves. Porta lateral. Sec. xii para cada caso nao houvesse qualquer disposigao, combinaQao ou contrato. Foi fornecida a colegiada uma planta geral, que ficou integrada nesse livro das visitaQoes. Essa planta, desenhada ao nivel comum, nao se pode, nem de longe, considerar equivalente aos actuals tragados para se edificar sobre os mesmos. Nao e mais que uma sugestao visual, nao se indicando niesmo o sitio das colunas ou se de a sugestao das tres naves. As medidas, que se tern de considerar dimensoes medias, para mais ou menos, estao indicadas ao lado: o comprimento do corpo seria de cem palmos e a largura de quarenta e tres; respectivamente as da capela-mor, trinta e oito por trinta. Outras medidas se indicam, como as do arco-cruzeiro, porta principal e travessas, frestas. Segundo a mesma, teria a igreja: porta axial, duas travessas postas a meio e fron- teiras, duas janelas a cada parte; arco cruzeiro, ladeado de dois menores, incluidos nas paredes, destinados a retabulos, e ainda dois pequenos nos flancos e a altura dos ombros, para a mesma finalidade; capela-mor rectangular, com duas frestas a esquerda, duas sacristias pela direita, justam.ente ao lado oposto em que acabaram por ficar. No ano de 1576 o visitador mandava acabar a capela-mor. Havia uma demanda com os paroquianos, para se saber a quem competia custear a obra do corpo, que nao estaria iniciada. A igreja encon- trava-se em perigo de cair. Continuaram os visitadores a ocupar-se do acabamento. Pelo ano de 1580 ve-se que o povo nao cabia na igreja antiga. Quatro anos depois so faltava a capela-mor o madeira- mento, encontrando-se quase pronta no imediato. Se em 1591 o corpo estava por terminar, em 97 so necessitava de se Ihe rematar o telhado. No ano de 1607 preceituava-se o seu lagedo. Nesta altura ja se deve- ria celebrar o culto no conjunto do templo, sabendo-se que a terra era o piso frequente, que ainda uma ou outra vez se nos depara em capelas rurais, como era o comum das casas da gente modesta do tempo. A nova igreja da antiga vila de Ferreira de Aves data pois do ultimo quartel do sec. xvi. Esclarecida documentalmente a construgao, podemos examina-la em si e concluir do aproveitamento realizado dos restos romanicos, que sao as partes que verdadeiramente nos interessam e as quais demos principal cuidado na rapida visita. Afastaram lateralmente as paredes dos flancos e deram-lhes maior extensao, e tanto maior foi que ficou de tres naves, aproveitando a pedra da antiga que puderam, picando-a em grande parte (o que explica 134 Nave e cabeceira. Sec. xvi a falta de siglas), e necessitando de cortar multa outra nova. Para cornijas destas duas paredes reempregaram as antigas, repetindo a parte da cimalha e as misulas necessarias, as quais sao muito simples, sem ornatos. Deram-lhes portas travessas, a cerca de metade do compri- mento, e tres pequenas frestas, nao se encontrando a central bem na perpendicular da pDrta respectiva mas irregularmente colocada. Na parede do norte, a porta, rectangular e rude, de arestas bolea- das, e do tempo; so a cachorrada e de aproveitamento. Aplicaram, porem, na parede sul a antiga porta romanica, mas sem o necessario cuidado. Foi nova a frontaria; baixa, de porta rectangular com cimalha e tendo as arestas das ombreiras e da verga boleadas e com leve mol- dura envolvente, pequeno nicho superior, acima do qual se corta hoje janela irregular. O arco-cruzeiro ficou acompanhado de dois menores, como se indicava na planta-esquema, vendo-se na parede, externamente e pela direita, a penetragao do respectivo arco desse lado. Foi o corpo dividido em tres naves, por colunas que suportam directamente o travejamento, sem interposigao de arcos, o que iremos pormenorizar. A capela-mor, deveria ter sido quase quadrada mas teve depois certa extensao. * Houve posteriormente modificagoes no corpo. O fim principal foi o de proporcionar mais luz a zona acima das portas travessas; fecharam as frestas do sector da entrada e as da regiao das mesmas portas e abriram outras; isto porem em diferentes fases. Na parede sul, a da direita, rasgaram uma nova, proximo do altar colateral, sensivelmente no sitio da antiga. Refizeram ao mesmo tempo toda a parede proxima, que deveria estar inclinada, como se deduz da zona conservada; inclinagao esta provocada pelos impulsos internos do vigamento, como diremos. Mais tarde voltaram a abrir uma outra janela e mais ampla, ao lado direito da porta. Deu-se quase o mesmo com a parede oposta. Existe esta segunda janela, tendo-se cavado um arco introdutorio de ampla capela, no sitio da primeira. A capela-mor foi acrescentada ja no sec. xviii. Dotaram-na de tecto aos caixotoes (set's series de sete), com pinturas agiograficas nos claros. Deram-lhe novo retabulo, executado em 1754 e dourado e pintado em 1762. Nos anexos tem havido obras ate ao presente. 136 I Colunas do lado norte O lavabo mostra o milesimo de 1652. Os outros retabulos sao do tipo dos fins do sec. xvii. Um edificio e como um ser vivo; nao permanece sem mudangas, adapta-se aos tempos e favorece de maior riqueza e do bom criterio, como sofre das mas epocas, da ignorancia e da incapacidade. Merece cuidadosa atengao a parte do corpo, tanto pelos suportes como pelo tecto. Fez-se a divisao do largo espago interno, em tres naves, por inter- m_edio de colunas em numero de tres a cada lado, sem que os dois topos fossem dotados das costumadas meias colunas, integradas nos muros. Essas seis colunas sao do tipo ou ordem chamada toscana, com as bases e capiteis respectivos, bastante altas, monocilindricas e galbadas, for- madas por tambores sobrepostos. Estao levemente inclinadas na parte superior, em virtude dos impulsos obliquos do tecto, como se dira. Nao suportam arcos mas traves longitudinals que assentam directa- mente em seus capiteis. Esta formula de colunas isoladas encontra-se ja na arquitectura romanica. Nao muito longe, do outro lado das alturas da serra de Leomil, nas vertentes do Douro, a igreja da vila de Armamar, dos comegos do sec. xiii, oferece um exemplo frisante, hoje melhor, depois das obras executadas pelos servigos oficiais. Nao ultrapassam as mesmas colunas o nivel das paredes do lado, o que agora obrigou a recorrer a certo artificio na armagao do telhado, e que deu bem. Em Coimbra, na transigao dos sees, xii a xiii, epoca aqui de mais continua residencia dos reis, e principal centro do nosso romanico, levantou-se a igreja de S. Tiago. Apesar da grande igreja totalmente abobadada de St.** Cruz, da equivalente, a Se Velha, das de duas arcadas, (S. Pedro, S. Salvador e S. Cristovao) adoptaram em S. Tiago, para a distinguir das outras paroquiais e Ihe proporcionar aspecto diversi- ficado, o processo das colunas independentes, posto que a marcar o cruzeiro empregassem um pilar com quatro colunas integradas. Em zona proxima de Ferreira, na parte alta da montanha, tambem se usou do mesmo processo. Vimos em 1940 que o empregaram, no sec. XVI, na igreja de Caria e disseram-nos que na contigua de Vila da Rua, a que caira o vasto tecto em epoca moderna, tinham recorrido a colunas, na imitagao daquela, para langarem nova cobertura com menor dificuldade. Integra-se, pois, esta formula em velha linhagem. 138 O tecto da nave e um dos poucos exemplares que continuam as tradigoes medievais. A natural danificagao das madeiras, princi- palmente nas extremidades das vigas e dos barrotes que assentam nas paredes, acrescida da ma qualidade da telha e descuidos em lim- pezas, tem provocado substituigoes e perda destes tipos. A propria modificagao dos estilos, com a introdugao da formula em caixotoes, o melhoramento da arte de construir, com a independencia da armagao dos tectos e a dos telhados, desgostou destas formulas simples os habi- tantes das paroquias. Depois de certa epoca ninguem mais quis bar- rotes a vista. O estado das madeiras, mesmo em exemplares mais recentes, como temos visto, obriga de ordinario a substituigao da quase totalidade dos elementos. Este tecto e de dupla vertente, a abranger as tres naves, com os barrotes a vista, no tipo a que os espanhois chamam de pares y nudillo. A parte media, sobre a nave do eixo, e cortada por pano horizontal, dando-lhe forma de trapezio. Da parede da frente ao topo do cruzeiro segue-se uma linha paralela de barrotes como costelas repetidas, sem haver divisao em sectores por meio de vigotes mais robustos, a forta- lecer e a desmonotizar o conjunto. Os panos laterais apoiam-se nas linhas mestras, de traves nao muito robustas. Estas assentam nas colunas por meio de almofadas intermedias. Como sistema de estabilizagao, langaram tirantes so na nave media, na linha transversal as colunas e aos centros dos espa<;os res- pectivos, sete ao todo, porque nao os ha encostados as paredes extre- mas. Estes tirantes, de si frageis, e talvez mal encastrados nas vigas, pouca eficacia tiveram. O impulso obliquo do madeiramento fez-se sentir sobre as traves mestras que o transmitiram as colunas, as quais flectiram, como igualmente se fez sentir nas paredes, obrigando a refa- zer a da direita, entre a porta travessa e o cunhal do cruzeiro. A particularidade a acentuar nos tirantes e o seu ornato. Com- p6em-se de duas vigas, nao muito fortes, ligadas a meio e quase nas extremidades por entrecruzado de caracter mudejar, de tragado sim- ples, em estrela. Este tecto e de apreciar por si mesmo e ainda pela razao de se conhecer a epoca da sua execugao, — o ultimo decenio do sec. XVI. Na visitagao de 1597 mandava-se acabar o telhado da igreja; em 1607 so se falava no lagedo. Tirantes do mesmo tipo e quase identico desenho se encontraram nos trabalhos do inventario artistico do distrito de Coimbra. Apre- 139 senta-os a igreja de Seixo da Beira, dos (ins do mesmo sec. xvi,eslando o forro modificado e posto a liso. TraQOs deles se notaram noutra, datada dos meados desse seculo, que nao sabemos se foram conserva- dos, porque todo o vigamento necessitou, nas grandes obras gerais, de completa substitui^ao. Somos chegados aos elementos romanicos que restam, motivo da nossa ida a vila de Castelo de Ferreira de Aves. Resuirem-se a tres grupos: a cornija misulada que foi reposta, a porta travessa colocada a sul, e ainda fragmentos que deveriam ter pertencido a porta principal. A cornija comp6e-se de simples fiada de cantaria chanfrada e das complementares misulas de tipo corrente e sem ornatos. Na amplia- Qao do sec. xvi deveriam ter sido feitas de novo muitas pe^as; a igreja velha era de menor extensao e muito menor era o ni'imero das mesm.as. Nas demoligoes de paredes velhas da antiga residencia foram encontradas tres bases de colunas de portal e dois capiteis. Um des- tes estava muito mutilado, o outro representa duas aves, opostas, ja sem OS pesco^os. Parece logico terem sido originarios do portico principal. A porta lateral, mesmo a exame descuidado, mostra ter sofrido remeximentos. Ponderadas varias circunstancias, e-se levado a concluir que ela fora sempre porta lateral e que continua a incluir os velhos elementos essenciais. Conservaram-na, nao propriamente por motivo de economia, pois que teriam feito o mesmo a principal, mas por umia razao que so compreende quem tenha lidado com o povo e penetrado na sua alma, conservaram-na como — uma memoria do tempo antigo. Formam-na dois arcos, rebordados de uma arquivolta, com duas colunas por lado. Domina o vao da entrada breve timpano que duas misulas desadornadas suportam. Os pes direitos de enquadramento do vao avangam sobre este, quase em extensao aproximada da base de uma coluna, o que nao e comum; correlativamente, ha um arco de descarga, nao saliente, que Ihes corresponde e envolve o timpano. Este, pela existencia desse arco, em lugar de ocupar todo o espago usual, ficou limitado, em seu diametro, ao vao da porta. Os dois arcos, de secgao em esquadria, nao possuem ornatos. Circunda-os uma breve arquivolta pouco saliente. Foi mal colocada; 140 do lado direito decaiu, ultrapassando a linha da imposta e cortou o sitio que ainda devia ser ocupado por esta. As colunas. cilindricas e lisas, assentam em bases de tragado cor- rente. Os capiteis sao ornados. As impostas igualmente. O ornato, limita-se, pois, ao timpano, aos capiteis e arquivolta. Nesta ha simples esferas, que de inicio ja eram irregularmente espagadas. faltando agora baslantes, tendo sido igualado o seu sitio. Esse ornato, posto que hem romanico, e de execugao de artifice de pequeno nivel. Cada um dos quatro capiteis possui decoragao diferente. O caiice, isto C; a forma subjacente ao ornato, e daqueie acaso que a decoragao permitiu, sem rigor geometrico; o proprio abaco se funde com ele e so o revelam duas curvas reentrantes em cada face. Sao decorados da seguinte forma: folhas em tres ordens, folhas e cauliculos, dois ramos entrelapados, dois quadrupedes opostos. O interno da esquerda quis representar folhas de extremidades salientes e curvas dispostas em tres ordens: sairam irregulares na forma e na disposigao, parecendo um lufo espontaneo. O correspondente a direita e das mesmas folhas e de cauliculos a enrolarem helicoidalmente. As folhas conservaram o mesmo cunho do anterior: aqueles foram interpretados com o caracter que revela o contiguo, o externo desse lado direito. Este, se aparecesse isolado, daria que pensar e redundaria em incer- teza qualquer classificagao. Sao dois ramos com as hastes cruzadas, de folhagem espalmada numa e noutra face. Parece uma decora^ao natu- ralista popular de outra epoca. Nao se quis mais que representar hastes vegetais com folhas, dispostas em entrela<;ado geometrico. mas a capa- cidade do canteiro nao Ihe permitiu ir alem daquela interpreta^ao popular. Os dois animais do esquerdo externo, que parecem dispostos em luta naturalista, nao foi com esse aspecto que se procurou representa- -los; sairam assim por nao saber esculpi-Ios em volume, simetricamente c enfrentados. Ha no chanfro de tres das impostas folhas raquiticas, em posigao vertical: interpretam os motivos foliares ou geometricos cordiformes das melhores obras. No interno da esquerda. dois ramos. os quais tem a mesma explicagao do capitel das hastes florais. O capitel isolado, provavelmente da porta principal, segue melhor as formas comuns, de duas aves opostas. O timpano apresenta a mais sugestiva interpreta^ao, no gosto popular, do dragao: filiforme, os membros estendidos num so piano, 141 a cabega voltada a tentar morder a cauda. Nem o espago nem a pro- pria capacidade permitiam ao artifice representar S. Miguel; limi- tou-se ao seu simbolo. ^ Este conjunto de especies romanicas mostra que o edificio antigo de Ferreira de Aves saiu das maos de canteiros rurais, com certa capa- cidade mas pouco acima dum nivei popular. Os edificios isolados que, ha tempos, agrupamos em dois tftulos, — o da Regiao alta do Mondego e Vouga e o da Beira Oriental entre Douro e Tejo — o que principalmente fizemos como sistematizagao geografica, nao sairam de agrupamentos fortes, com personalidade. Foram o resultado da actividade de canteiros disperses em pequenos grupos, formados estes de um mestre e de poucos auxiliares, em que ele era frequentemente o principal decorador e eles quase so desbastado- res de pedra, tal como os temos conhecido na primeira metade deste seculo, na zona granitica do alto distrito, em que vivemos, os quais, tra- balhando a maneira geral, nao criaram uma variante que os definisse. Ferreira de Aves aparece isolada, mesmo para confrontos naquele nivel artificianal. Na propria freguesia conserva-se a igreja do mos- teiro feminino de Santa Eufemea de Ferreira que, reformada no fim do sec. XVII, guardou a parte correspondente ao coro monastico (posto que com modificagoes), ja do sec. xiii e de canteiros dum outro nivel, vindos de fora para a edifica^ao beneditina. A igreja da sede do con- celho, Satao, ainda mais tardia e, como acabamos por verificar em visita recente. A de Sernancelhe pertence a duas fases; a primeira (paredes do corpo e da capela-mor) datada de 1202; a segunda, a frontaria, muito posterior. Posto que a primeira seja de epoca aproximada, poucos anos posterior, revela orientagao diferente. Outras igrejas encon- tram-se mais afastadas e sem afinidades. A igreja de Ferreira de Aves devera datar da segunda metade do seculo doze, para os fins. A historia dos povoados e das regioes que os integram nao se faz so pelos documentos escritos; a arquitectura e todos os tragos mate- riais dao-nos a exacta representagao do ambiente de outrora, e por eles melhor compreendemos os recuados regimens economicos. Feliz foi a ideia da gente de Ferreira, no fim do sec. xvi, de conservar uma testemunha, uma memoria do seu passado. (Em «Ocidente», vol. lxx. Lisboa, 1966.) 142 VIII A IGREJA MEDIEVAL DO MOSTEIRO DE VILELA (PORTO) O manuscrito, que tern por titulo Mosteiro de S}^ Estemo de Villelu. Informa^oo, e noticias verdadeiros da fimdagao do Mostr.^' de 5.^" Estevad de Villela, e mais cousas toeantes ao d.'^ Mostr." dignas de memoria, foi encontrado entre livros dum estabelecimento comercial, cujo dono o tinha recebido com uma heranga. E formado de setenta e cinco folhas, em cadernos desiguais, sendo as primeiras vinte e cinco aparadas, ao contrario das restantes. Estas medem 21,5 x 31 cms. Nao se encontram revestidas de capas pro- tectoras mas so cosidas a velha maneira dos processes judiciais. Infelizmente o angulo inferior direito esta bastante danificado pelos ratos que, nao se contentando com a larga margem, inutilizaram uma parte do texto, mas nao tanto que se nao possa recompor na quase totalidade. O seu interesse, para os meus estudos da historia da arte portu- guesa, nao e grande, tanto mais que a igreja medieval foi substituida no sec. XVIII, mas de grande e para a historia local, pela documentagao que aduz e que modifica muito o que anda escrito deste mosteiro. Nao vem mencionado o seu autor; e a epoca em que foi escrito deveria ter sido o fim do sec. xviii ou principios ja do xix. Nao pro- cedi a indagagoes pelo resumido interesse que tem para mim; outros havera que dele se venham a ocupar e que as fagam com gosto e pro- veito. » A disposigao e o modo por que se articulavam as construgoes monasticas nos nossos mosteiros rurais, pobres e pequenos, na idade media, nao se mostra com clareza no exame dos restos que chegaram ate nos, parecendo haver bastantes variantes daquela que se empregava nos grandes edificios; modifica^oes requeridas mais pelos modestos recursos economicos que pela disposi^ao do terreno ou indicagoes de 143 ordem superior. Necessario e pois registar as informa?6es documentais, quer elas se refiram aos primitivos edificios, quer a outros que Ihe sucederam, que em parte, pelo menos, guardariam as disposigoes pri- meiras. Esse fim. tern a transcrigao que vamos fazer do paragrafo 1 5 desta cronica. em que se mostra o estado anterior a reforma do sec. xviii e as mudangas que nela se fizeram. O manuscrito nao esta numerado, os algarismos que vao ao iado do texto sao da numeragao das partes em que o autor dividiu cada um dos seus paragrafos. «§ 15, «.o 13. Vindo pois ao estado material da fabrica, e edificios do Mostr.^ de Villela, de nada temos noticias a respeito do que foi nos tempos antigos. Sabemos sim, que na era de 1441, sendo Prior do Mostr.^ D. Martinho Pires, se fez no d.^ Mostr." huma grande cape! la a hour a de St.^ Maria, ou Nossa Sr.^ das Neves por mandado do Bispo do Porto D. Gil; e que sobre esta cape/la quer i a o d.^ Prior fazer dous alt ares a honra da Virgem Maria, e de St.^ Marinha, e St.^ Catharina Virgens e Mar tyres; pelo que o mesmo Bispo concedeo 80 dias de verdadr.^ per- dao a todas as pessoas, q. concorressem com esmolas p.^ as d.^^ obras. Grande devia ser, en tad o edificio do Mostr/\ pois sefazia digno de huma tad grandiosa capella, para cuja fabrica concorria o empenho do Bispo, e do Prior. Porem de tal capella jd nao ha memoria, nem se sabe o sitio onde foi feita, e so existe a provisao do Bispo, em que da noticia della, e concede as gragas. «14 Tambem sabemos, que no anno de 1595, quando se tomou posse do c/." Mostr.° por virtude da Bulla de Clemente 8, e se unio a Congr.^^, tinhao os Conegos, que entad viviao no Mostr.^, suas casas na claustra delle. «15 No anno 1740, que os Religiosos da Reforma vierao p.^ o Mostr.^ da Serra, erao os edificios do de Villela, duas Sallas grandes com dispensa, cosinha, e tulha, ou celleiro ; tres, ou quatro cellas com seo corredor informe, e hum pateo no meio de todas estas casas, e tudo tad sem forma, que mais parecia casa de campo, que Mostr.". «16 Do claustro jd nao exist ia mais que hum lango, e era o que ficava pcgado, e se cingia com a parede da Igr.^, q. ficava p.^ a parte interior do Mostr.^, estava este Icmgo jd descuberto por cima, e so tinha os arcos da parte opposta a parede da d.^ Igr.^ para a ban da do vao, ou claro do claustro, que erao de pedraria, mas pequenos, e baixos, que tudo inculcava, nao ser o claustro mt.'* grande. Os mais langos do claustro, havia pou- cos annos se tinhao langado abaixo, e jd nao tinha forma de claustro. 144 «17 A situa^ao da Igr.'-^ estava irregular, nao conforme ao nwdo, q. hoje ii.sad. os Religiosos nas situagoens das Igr.^^ dos seos Mostr.^^, mas quasi na mesma forma que costumao ser as Igr.^^ dos Mostr.^^^ das Freiras. For que supposto tinha porta principal, e travessa; com tudo, a travessa he que estava para a parte do Adro, ou terreiro publico do Mostr.^, e a principal hia dar em hum pequeno atrio, a que chamao galile, sobre o qual estava a torre dos cinos, ficando defronte da mesma porta principal a parede da galile, que tambem era, e ser via de parede das casas do Mostr°, sem serventia alguma in directum; e so sahindo da dita porta principal, para o lado dirty tinha sua serventia pelo grande arco, que na mesma galile estava; e por elle se entrava tambem para a Igr.'^ pela porta principal, e se sahia para o Adro, ou terreiro do Mostr.^, p.^ a pt.^ do qual tambem estava a porta travessa, como fica dicto. «18 A Igreja corria do poente ao nascent e, ficando para est a parte a capella mor, que era pequena de abobada de pedra com seos rompantes, que hiao rematar em floroens; e por for a tinha alguns contrafortes de pedraria em boa proporgdo, que tudo inculcava mt.^ antiguidade. «19 A Igr.^ nao era mt.^ grande: tinha o tecto de madeira, e o choro tambem de madeira no alto defi-onte da capella mor, por cima da porta principal. For dentro nao mostrava ser mt.° antiga por causa de varios concertos, que se Ihe tinhao feito, e se achar reformada, rebocada de cal, e dealbada; mas por for a, como se viao as pedras das paredes que erao de cantaria, dava-se a conhecer nella mt.'"^ antiguidade ; e talvez que tam- bem algum dia seria de abobada de pedraria. «20 Fora da porta principal para o poente tinha hum atrio, ou galile com seo grande arco para o terreiro, ou adro da Igr.^, pelo qual arco se entrava para a d.^ galile, e desta se hia p.^ a Ig.^ pela porta principal, que como jd se disse, ficava na mesma galile; esta era fechada no alto de abobada de pedraria com seos rompantes ; e por cima desta abobada estava a torre dos cinos. Nesta galile para a parte esquerda sahindo da porta principal da Igreja, se encontrava logo com huma portada grande feita em arco; (q. entao estava tapada de pedra, e cal; e poucos annos antes se abria, e era serventia da gente p.^ o claustro do Mostr.^, por estar a dicta portada no lango do mesmo claustro, que ficava juncto a parede da Igr.^). Esta portada, ou porta se chamava a porta das Neves; do que se colhe, que per to del la est aria aquella grande capella, que no Mostr.^ se fez por ordem do Bispo do For to D. Gil, de que jd se fez mengao neste § n. 13, ou talvez, que a mesma galile seria a d.^ grande capella, que com effeito era mt.° capdz disso, por ser grande, e de boa fabrica ; e por cima delta na casa, onde estavao os cinos, e Ihe serviad de torre seria onde o Frior faria os dous altares, de que tambem sefaz mengao no d." n. 13. 145 lO Porem tudo sad conjecturas, e nada se sabe com certesa, par de nada haver memoria, e tudo estar nit.'^ longe dos nossos tempos. «21 Do anno de 1749 cahio o tecto da Igr.^ com occasiao de hum grande temporal, a que ajudou tambem a sua mt.^ antiguidade ; e como as paredes ficarao mt.° arruinadas, e incapazes de nellas de poder fazer obra; se tomou a resolugao de fazer Igr.^ nova, o que com todo o effeito se executou, dando se Ihe principio a 16 de Janr.^ do anno de 1752 e se acabou no de 1753. Benzeu-se a 15 de Dezembro do d.° anno de 1753 e logo no dia segt.^ do mesmo mez se collocou nella o Sm.° Sacramt.^, e se trou.xerao p.^ e/la as mais imagens da Igr.^, que tudo ate cdi tinha estado na capella de St.° Ant.^, que naquelle tempo servia de Matriz, enquanto se nao fazia a Igr.^ nova. Fesce est a solemnidade com pro- cissao, Missa cantada, e Sermao, e com a pompa, a que a terra dava lugar. concorrendo mt.^ gente nao so da freg.^, mas ainda de fora della. «22 Quando se acabou de demolir a Igr.^ veiha, se fizerao exactas delig.^^ por pedras, paredes, e mais lugares della, para ver se encontrava cdguma cousa digna de memoria; e nao foi possivel apparecer mais que vestigios de antiguidade, sem haver em particular cousa, de que se podesse fazer lembranga. «23 A Igr.^ nova supposto se fez na mesma parte junto ao Adro, ou terreiro do Mostr.^, com tudo foi em nova, e di versa area, e com di versa situagao: por que correndo a velha do poente ao nascent e, e com situagad ao modo das Igr.^^ dos Mostr.^^ das Freiras, comojd se disse neste § n. 17, e 18, a Igr.^ nova cor re de norte para o Sul, ficando a porta principal p.^ norte, e terreiro do Mostr.^, e a travessa p.^ o nascente, e adro novo, que se fez. Antes de se chegar a porta principal tem hum patim de pedra, p.^ o qual se sobe por 5. escadas da mesma, que por todas as partes o cin- gem. No frontispicio da Igr.^ tem duas torres huma de cada lado; e na q. fie a ao esquerdo entrando pela porta da Igr.^, estao os cinos, por afreg.^ se extender toda para est a parte, e ficarem mais proximos a freg.^, e se poder em ouvir de toda ell a. «A Igr.^ he grande, toda de pedra, e cal; e alguma parte della, de cantaria, e he forrada pelo tecto de madeira de castanho; e o mesmo he a capella mor. O choro fica no alto dentro da Igreja sobre a porta principal, e he de madeira de castanho, estribando-se de huma parte na parede da Igr.^ e da outra em hum formoso arco de pedraria. «24 A Sacrist ia estd ao lado da Epistola da Capella mor; e todas as referidas obras forao feitas de novo, e a fundamentis. «25 Para a parte direita entrando pela porta principal, ficao as casas do Mosteiro Juncto a Jgrj.^. E para a parte esquerda, onde estd a porta travessa, fica o Adro da Igr.^, que se fez de novo, o qual occupa toda U6 a Capella mor, c mt.^ parte da Jgr.^ velha, e aincla mais area, que de novo se Ihe ajuntou. «26 A Igreja velha nao tinha mais que o altar mdr, onde estava o Sacramt." e supposto na capella mor abai.xo do altar mor tinha mais dous altares postos e regiorte hum defronte do outro, nao he por que anti- gam t.^ OS tivesse, mas por se terem ali posto havia poucos annos. <(27 Na Igreja nova, alem do altar mor, onde est a o Sacramt. *\ se fizerao mais dous altares colaterais fora do arco da Capella mor, onde chamao o Cruzeiro, cada hum de seo lado; e he a Igr.^ de Villela, das Parochiaes, a maior, e mais bem acabada, que tem o Bispado do Porto, fora dos muros da cidade, excepto alguma de algum Mosteiro.» Para aqueles que tenham interesse em conhecer o contei'ido do manuscrito vamos dar um seu ligeirissimo rcsuino. Advertencia 1. Faltavam muitos documentos no cartorio do mosteiro, como se via por um inventario antiqufssimo. A causa devia ter sido um grande incendio do mosteiro. Advertencia 2. Tem por assunto a era hispanica. Advertencia 3. Critica o cronista D. Nicolao de S. Maria. §. 1- Da situa^ao do Mostr.^ de St." Estevao de Villela, e cousas tocantes a freg.^ do Mostr.". ^. 2. Da fundagao do Mostr.^ de Villela, e de seos Fundadores. O mosteiro foi fundado antes de 1010 por Fromarigo Espazandiz e sua mulher Vivila. Transcreve um documento de doagao desta e de suas filhas ao mesmo mosteiro. E datada de 1 1 Non. — Dez. Era TXLviii (4 Dez. A. 1010). O documento cronologicamente imcdiato a este e uma nova doa(;ao, de Vilulfo, de xin-Kal. — Nov. Era 1068 (20-Out.-A. 1030). que transcreve parcialmente. §. 3. De como o Mostr." de Villela desde seo principio, e funda^ao, foi Mostr.". Comega por dar a razao do paragrafo: «0 motivo, que se offereceo para tractar esta materia em § particular, he o dar-se ao Mostr." de Villela em algumas doagoens antigas. em humas simplesmente o nome 147 de Basilica: em outras, o nome de Igr.^: em outras, o de Aula; e em duas o de, Cemeterio.» Vai demonstrando que, desde a fundagao, teve a organizagao de mosteiro e aquelas expressoes por mosteiro se devem entender; alega para isso as duas doagoes referidas e transcreve a de Gueda Guilufiz de Aguilar (cuja data os ratos roeram) e a de Johannes Dias, de iv-Kal.- -Mart.-E. M. CC. Y (26-Fev.-A. 1167). §• 4. De como o Mostr.° de Villela desde o seo principio foi de Conegos Regulares. Em volta da expressao Salter ium Comnigum da doagao dos fun- dadores tece varies comentarios para demonstragao da sua tese. Con- tudo a escritura mais antiga, depois daquela, que encontrou, que se referia a conegos, e a de Egas Pelaiz e Onega Pelaiz, transcrita inteira- mente, data da Era de 1110 (A. 1072). §. 5. De como o Mostr.^ de Villela logo no seo principio, e depois mt.^^ annos foi duplex, ou dobrado; isto he de Religiosos, e jimtamt.^ de Reli- giosas. Apoia-se na doa?ao dos fundadores, na de Viliulfo, e transcreve parcialmente outras: uma da Era 1111 (A. 1073), a de D. Pelaiz Unisca (E.-1114, A. 1076), a de Gelvira Brandiluz (E. 1144, A. 1106) e mais havia em confirmagao. No ano de 1215 ainda continuavam, no mosteiro, sorores. §. 6. Do Couto do Mostr° de Villela, de que o mesmo Mostr.*^ he Dona- tario da Coroa. O couto foi-lhe demarcado pela rainha D. Teresa no ano de 1128, mas o A. nao transcreve a carta. D. Afonso IV mandou tirar uma inquirigao do couto no ano de 1339. §. 7. Dos Privilegios do Mosteiro de Villela. §. 8. Das Igrejas de lurepatronatus do Mostr.^ de Villela. Refere-se a igreja do mosteiro, que era paroquial, a de S. Pedro de Arreigada (que por 1587 ou 1588 se constituiu em freguesia); as 148 igrejas de apresentagao in solidum do mosteiro e de seu padroado — St.'i Maria de Duas Igrejas, S. Martiniio do Campo, St." Andre de Cristelos; as igrejas de apresentagao do mosteiro alternadamente com outros padroeiros — S. Joao de Nespereira, S. Paio de Casais, S. Pedro de Goudelais; outras igrejas que foram do padroado do mosteiro e a que ja nao pertenciam — S. Salvador do Outeiro ou Coina ou Cunha (cuja localizagao ja nao era conhecida), St.*^ Eulalia de Sobrosa, S. Mamede, S. Tiago, S. Salvador (estas tres ultimas nao sabia o A. aonde fossem), Pagos de Resende. §. 9. Das Reliqiiias, que havia, e de presente ha no Moslr.'^ de Villela. §. 10. Da repartigad das rendas do Mostr.^ de Villela entre o Prior mor, e Conegos do Mosteiro. A divisao fez-se na Era de 1439 (A. 1401). §. 11. De como o Mostr.^^ de Villela veio a poder de eommendatarios ; e outras eousas tocantes aos Pr lores, e eonegos do d.^ Mosteiro. Trata do prior-mor, do prior-crasteiro, preposto e dos leigos. Transcreve duas formulas de profissao. O ultimo prior-mor foi D. Diogo Dias Rangel que assina como tal ate 1524; em 1525 comegava a ser comendatario Braz Brandao, ficando Diogo Dias como seu pro- curador que, por este titulo, assinou documentos ate 1534. §. 12. De como o Mostr.° de Villela foi unido a Congregagao. Depois de diversas tentativas foi o mosteiro unido a congregagao agostinha por bula de 1594 executada em 9 de Fevereiro do ano seguinte. §. 13. De como o Mostr.'^ de Villela foi unido in perpetuum ao Mostr.^ da Serra da cid.^ do Porto. Em virtude do breve de Clemente VIII, de 1601, fez-se esta uniao, em capitulo geral, a 17 de Maio de 1612. §. 14. Cathalogo dos Pr lores, e Commendatarios, que teve a Mostr." de Villela ate se unir ao Mostr.'^^ da Serra. 149 O A. considera falsa a doagao de Gila Paez ao prior Afonso Paez, do ano de 1118, que D. Nicolao de S. Maria publica; contra o mesmo D. Nicolao afirma que outro prior que este cita, D. Garcia Pires, nunca aparece em documento alguni com tal sobrenome de Pires, e que Pero Vermuy nao era capitao mas sim sacerdote, o que documenta. Segue-se a lista dos priores cujos nomes foi possivel obter atraves de varios documentos e que possivelmente nao representarao a tota- 'idade, como o A. confessa: D. Pedro Mendes (na E. de 1 168), D. Ramiro, D. Garcia, D. Mendo Ermigis, D. Pedro Mendes (na E. 1240), D. Nuno, D. Pedro Martins, D. P. Pires, D. Agostinho, D. Domingos Viegas, D. LourenQO Gongalves, D. Domingos Martins, D. Joao Domingues, D. Domingos Pires, D. Martinho Pires, D. Gongalo Gon^alves, D. Diogo Martins, D. Diogo Dias Rangel; comendatarios perpetucs, Braz Bran- dao. Antonio Brandao; comendatarios temporarios, P.^ D. Diogo, P.6 D. Lourengo; priores trienais, P.^ D. Gaspar dos Reis, P.'' D. Joao das Neves, P.^ D. Gaspar dos Reis pela 2.^ vez, P.^ D. Manuel da Luz, P.^ D. Joao de St." Agostinho, P."^ D. Pantaleao da Cruz. §• 15. Do est ado do Mostr.^ de Villela depots de imido ao da Serra ate o presente. «Depois de unido o Mostr." de Villela ao da Serra, q. foi no anno de 1612 como se diz no § 13. n. 3., ficarao no Mostr." de Villela extinctos OS titulos de Prior, e o de Convento; e dahi por diante se intitulou o Padre Prior do Mostr.^ da Serra, tambem, Prior do Mostr." de Villela, de que ainda hoje usa. Nao houve mais no Mostr.° de Villela Reli- giosos, ou Convento, e so pelos tempos adiante assistiao nelle dous, hum com o nome de Presidente, e o outro com o titulo de Compa- nheiro. Nenhum delles tinha jurisdigao algua no Mostr.o». O ultimo presidente foi o P.'' D. Henrique de St." Antonio que faleceu a 4 de Julho de 1740. «Depois da morte do referido Presidente o P. D. Henrique de St." Antonio, nao houve mais Presidentes no Mostr." de Villela, e tern ate o presente sido administradas as rendas delle por algum Irmao Converse. » Acaba este paragrafo 13 com a descrigao do mosteiro que trans- crevemos no principio deste artigo. §. 16. Do Sello, que tinha o Mostr.'* de Villela. 150 §. 17. e ultimo. Demonstra que o mosteiro niio foi mosteiro real, visto nao ter sido fundado por rei a I gum. Satisfa(;ao «Depois de feita esta informagao das noticias, e inais cousas tocan- tes ao Mostr." de Villela; dignas de memoria, me chegou as maos huma copia, do que sobre este Mostr." se acha no livro das fundagoens do Cartorio do Mostr.^ de SX.^ Cruz, que principia — Mostr.^ de St.<^ Estevao de Villela, seo principio, uniao, Reformagao, e Priores triennaes — com algumas cotas, que a margem de certos paragrafos se acha6.» Faz o comentario e refutagao de certas passagens do manuscrito cruzio e termina: «Tudo o mais que no d." Livro se diz que por acaso for opposto ao que na presente informagao refiro, ou he menos verdadr.", ou he cousa diversa, do que nella trato; porquanto todo he tirado, na6 de memorias vagas, mas de papeis authenticos.» (Em «Lumen», ano iir. Lisboa, 1939.) 151 IX A TORRE ANTIGA DOS SINOS DA IGREJA COLEGIADA DE S. PEDRO As torres de Coimbra vao-se; e com elas uma parte de beleza do conjunto citadino, e de beleza espiritual. Em certas cidades ha um altear delas lao lindo que parece que o casario ergue finos remigios para um voo largo. E de longe, de certas colinas, elas, as almas tocadas da beleza do passado, recordam as lareiras da tradigao, marcam os largos passes do tempo. As antigas igrejas medievais desta cidade estao mortas (destruidas ou sem culto) umas, nao tem as velhas sineiras as restantes. A se romanica so guarda da sua, a base fortissima, tendo sido a parte alta destruida no sec. xviii; o Salvador conserva-a ainda, mas metida entre construgoes e degradada a pombal; de S. Cristovao e S. Tiago, nada sabemos; S. Joao de Almedina e S. Bartolomeu, refor- madas, ficaram com construgoes baixas na frontaria; S. Pedro seguiria o modelo daquelas, mas as obras nao atingiram as ventanas; em Santa Cruz a ultima torre dos sinos cam; em Santa Justa, a antiga, nada conhecemos, posto que da igreja ainda existam alguns trechos; na nova, as sineiras nao passam de aberturas na fachada. As igrejas dos conventos medievais desapareceram de todo, como S. Francisco, S. Domingos, Santa Ana. Santa Clara e uma excepgao. e unica. Os colegios, que com a mudanga da Universidade aqui se cons- truiram, ou fizeram para as suas igrejas campanarios ou deixaram baixas as torres, um ornato da frontaria, simplesmente. E assim a voz dos sinos de Coimbra, em que ainda ha um timbre das antigas eras, esta como desaparecida fosse, unicamente os da se, pela posigao excepcional que ela ocupa, estendem de norte a sul, de este a oeste, as suas sonoridades festivas, indo-se quebrar so nos vales distantes as suas amplas ondas. 153 Quando encontramos na igreja de S. Pedro as capelas laterals a mor e as paredes laterals desta da epoca romanica, e ficando persua- didos que a actual deve seguir muito de perto a planta do sec. xii, lembramo-nos de investigar se nao haveria restos da velha torre medieva, tanto mais que nao tendo chegado nenhuma das suas duas torres da frontaria a altura das ventanas dos sinos, era provavel que ela se tivesse conservado ate muito tarde. Procuramos na parte que fica entre a igreja e a rua do Forno, num pequeno terreiro, onde agora estao instalados uns canis, e nada se nos deparou. Perguntamos a pessoas de idade que ainda conhe- ceram a igreja ao culto, e nada nos souberam dizer. Ultimamente, mexendo em papeis da colegiada, encontramos um livro de apontamentos que esta marcado, de antiga data, com o nuinero 53, destinado a registo de pagamento de foros de casas que eram do direito daquela igreja. Foi organizado por 1721. O primeiro assento fornece-nos claramente a localizapao da torre. Fls. 5. «Porta travessa da jg.^a — M.^i Correia possue humas Cazas fatiosins q partem do nacente. Com a torre dos sinos da ditta Jg.ra de S. Pedro e sam tres Cazas de sobrado em sima e tres logeas, em baixo, e pertensia a estas cazas e pateo o quintal que o ditto M.^^ Cor- reia uendeo a o L.^'Q fran.'^o Xavier Simois Coelho...». Ora ha justamente no ponto indicado do quarteirao de casas que fica entre S. Pedro e a rua Larga uma regular reentrancia, hoje preenchida por uma construgao baixa. Nao fomos verificar se ainda havera qualquer resto da torre, mas e possivel que ainda se la encontre. Este livrito traz muita referenda a casas da Alta, a maior parte naquela antiga freguesia, onde ainda muitas construgoes tem as jane- las com aventais quadrangulares, posto que muito caiados a despista- rem os simples amadores. Essas notas nao sao de grande valor e nao merecem a pena de estar aqui a fazer uma sua resenha. Se um dia houver alguem que se queira dedicar a tal trabalho, e para toda a cidade, outros elementos de maior importancia Ihe for- necerao os restantes documentos nao so desta igreja como os das outras, incluindo conventos e colegios. Mais como curiosidade que outra coisa, vamos copiar a parte que diz respeito ao quarteirao em que esteve a torre, pois facil ainda 154 Igreja de S. Pedro. Sec. xviii e identificar as casas. Seguiremos a ordem que vem no livro, seni juntarmos comentarios, posto que uma ou outra os merecesse. Fls. 9 «Helena (?) filha do antecedente M.^i Correia pessue humas Cazas pegadas com as atraz de fronte da porta trauessa da jg.^ que sam as da quina, e sam de dois sobrados, e em cada sobrado huma Caza, e em baixo uma logea...» Fls. 11. «0 D/"^ francisco Xavier Simois Coelho, de humas Cazas q comprou a o sobreditto M.^i Correia, que pegam com as da quina, q sam da filha de M.^^ Correia. ..» Fls. 13. «0 Mesmo D.or fran.^o Xavier Simois Coelho de humas Cazas que foram de seos antepassados, e as conjuntas com as asima de M.'^i Correia; e sao as da quina q cahem p.^ rua larga de fronte do Collegio Rial de S. Paullo, em q uive, e tem o estudo...» Fls. 15. «Rua Larga da mao direita hindo p.^ o Castello. — fran- cisco de Morais Boticario na v.^ de Montemor o velho, e Cazado com Esperansa Coelha pesue humas caza na rua Larga pegadas com as atras de fran.*^" Simois Coelho, q sam duas moradas...» Fls. 17. «M.*'i de Abreo Bacellar das Cazas em que uiue, q foram de Joao Pacheco fabiao prazo fatiozim desta Ig.""*^ de S. P." as quais algum dia eram tres moradas, e hoje estam todas istas em huma excetto as de M.''^ Rodrigues serralheira...» Fls. 19. «M.a Rz. V.a de M.^^ fran.^o Serralheiro, de humas Cazas que pegam com as de M.^i de Abreo, e tem sobre a porta hu letreiro, sam prazo fatiozim desanexado das de M.^^ de Abreo... ». Fls. 21. «A mesma M.^ Rz possue outras Cazas pegadas destas atraz pella pt.*^ de cima indo p.^ o Castello... ». Fls. 23. «0 Rd." M.pi Saraiva da Sylueira Inquizidor q foi da India e suas Irmans Mariana da Sunpsao; Ageda das Caza da quina da rua Larga voltando p.^ o tereiro da ig.''^ de fronte da Botica de Joao Baptista...». (Em «Correio de Coimbra». Ano xiv, 1935.) 156 X A TORRE DE BERA Nao e a povoagao que tern o nome de Torre de Bera que me refiro mas a torre do pequeno territorio de Bera que deu o nome a povoagao. E inutil procurar em resenhas de fortificagoes o seu nome. Modesta, posto que as portas de Coimbra, e ignorada; tudo quanto se Ihe refere nao vai alem dumas quantas frases destacadas e escassissimas. Os que a tenham visto nos tempos modernos deveriani ter ficado desorientados pela rudeza do seu aspecto, de construgao popular, sem decoragao que os ajudasse a colocar numa epoca artistica, sem referencias documentais que Ihes dessem indicagoes para a valorizar historicamente. Estudos particulares favoreceram-me; os documentos cronologicos sao ela mesrra, a sua posigao diz a sua historia. Um dos caminhos directos de Coimbra para o suK cam'nho militar e de invasao portanto, e o que vai desta cidade a Penela, por cotas medias de 250 metros, tendo sempre a nascente os vales secundarios que descaem no vale fundo e encaixado do rio Duega. Duas posigoes castrejas, que marcaram o seu valor no princi'pio do sec. 12.°. encon- tram-se nessa orientagao, um. Penela, no proprio tragado, outro, Miranda, mais ao lado, defendendo o agro local e as passagens para nascente ao longo da cordilheira. Torre de Bera, tal como teria sido o fortim de Castelo Viegas, nao era fortaleza de categoria militar geral, mas mera torre de refiigio dos senhores e habitantes locals, construida por iniciativa particular e para abrigo dum agregado cconomico, na continua eminencia de algaradas inimigas. Bera, se hoje e o nome de uma aldeia, deve representar principal- mente o vale e lombas vizinhas, um pequeno territorio, segundo julgo por analogias com lugares corograficos paralelos. Nao me parece que OS lugares de Monte de Bera, Outeiro de Bera, Torre de Bera tirem o seu designativo do nome da povoagao mais importante, Bera. Creio 157 A torre de Bera que o fagam da pequena regiao que ocupam. Mesmo, se em diversos pontes dela se encontram restos romanos, denunciados principalmente por telhas de rebordo, era na Torre (ponto nao principal no primeiro caso) que se encontrava ate ha poucos anos uma cabega de ara romana do melhor periodo da arte provincial; isto e, a regiao deve ter sido uma villa romana, e talvez medieval, cuja unidade perdurou na designagao. A posigao da torre medieval e verdadeiramente de fortaleza. Des- taca-se um esporao sobre o vale, constituido por arenitos que uma pequena capa de tufos calcarios protegeu da forte erosao que ali se nota. A torre ocupa pequena superficie, sendo de piano rectangular e com a porta voltada para o lado de mais dificil acesso. A sua cons- trugao e rude; as mais modestas habitagoes locais mostram mais cui- dadas as suas; obra de iniciativa particular e local foi executada por pedreiros regionais. Tem uma primeira zona, na altura aproximada de homem, de pedra mais grossa, que e formada de blocos do tufo arrancado cm volta; dai para cima a parede e de pequenas pedras de arenito, muitas delas dispostas de cutelo. Um dos angulos ja caiu, as paredes apresentam grandes fendas, a ruina total esta eminente. A porta encontra-se meia desmantelada, 158 *!■ Outro aspecto da torre de Bera mostrando ainda ter sido rectangular e singela; na segunda zona, a que se segue a da porta (que assenta logo no terreno) ha rudes seteiras; o remate constitui um problema, porque me nao parece que a parede aguentasse adarve. Merecia ser consolidada mas dificil sera obter-lhe os culdados que necessita; o sector que Ihos devia prestar e de tecnicos, e muito competentes nele, mas sem aqueles elementos de cultura que natu- ralmente Ihes nao sao exigidos e que sao aqueles que revelam e dao o valor a modesta torre; sem ornatos, sem aparelho de categoria, a seus olhos nao passara de quatro paredes mal feitas. Todavia ela e o per- gaminho roto, delido e sujo, mas unico que revela um tempo, que revela preocupagoes do mais alto nivel ; linica representagao viva de tempos mortos. A epoca da sua construgao a todos podera parecer incerta; clara para mim, depois de identificagoes sucessivas, umas anteriores a um artigo que escrevi neste mesmo lugar sobre o romdnico condal, outras importantes tambem, ja no ano que corre. Fica para tras dos habeis construtores de Coimbra da epoca afonsina, digamos, na transigao dos seculos 11.° e 12.o ate ao fim do primeiro tergo deste. Como disse atras, o caso de Castelo Viegas e igual. A torre do povoador Ibn Egas assentava num ponto parecido mas nao tao des- tacado do monte. A povoagao de Monforte, na mesma freguesia de Almalagues (que e a das Beras), no morro a seguir, para sul, ao castro e ermida da Senhora da Alegria, parece, pelo nome e aspecto topogra- fico, ter sido originado numa torre, mas nada resta nem a tradigao nada diz. Torre de Bera e o exempio dessas torres isoladas, para defesa de campos que, com frequencia, aparecem nos documentos da epoca da reconquista. Sirva-lhe este artigo, antes que caia, de elogio funebre, se de sal- vagao nao Ihe puder ser. (Em «Diario de Coimbra», 13-ix-1949.) 160 XI MOSTEIRO DE SANTA CRUZ BREVE NOTiCIA HISTORICA A 28 de Junho de 1131, domingo, vespera da festa dos Santos Apostolos Pedro e Paulo, foi langada a primeira pedra do mosteiro, no sitio dos Banhos Reals, fora dos muros da cidade. Foram doze eclesiasticos os seus fundadores, sob a inspiragao do arcediago D. Tclo que teve por primeiro auxiliar o mestre-escola da Se, D. Joao Peculiar, mais tarde bispo do Porto e arcebispo de Braga. No ano imediato, 1132, em quarta-feira da cinza, 24 de Fevereiro, come?ou a vida de comunidade dos agostinhos, nao ja so os 12 pri- meiros, mas 72, sob a autoridade do prior eleito, D. Teotonio. A igreja levou alguns anos a construir. A morte de D. Telo (9-Set.-1136) devia ja estar concluida a cabeceira, posto que o altar da capela colateral (do Espirito Santo) so fosse sagrado, por D. Joao Anaia, em ano perto de 1148 e o altar-mor em volta de 11 50 pelo arce- bispo D. Joao Peculiar. A esta ultima data ja a igreja deveria estar acabada, bem como as restantes partes do conjunto arquilectonico conventual. A dedicagao da igreja so mais tarde se fez (a 7-Jan.-1228) pelo legado papal Joao, bispo de Sabina. Foi arquitecto da obra o arvernes Roberto, auxiliado por mestres canteiros peninsulares que consigo trouxera. Em Santa Cruz ergueu a primeira obra do segundo periodo do romanico coimbrao do sec. xii, criando formulas, como a do portal, que ele e os seus auxiliares haviam de repetir noutras constru^oes da cidade. Santa Cruz foi o verdadeiro laboratorio desse segundo periodo romanico; aqui Roberto aprendeu a utilizar os canteiros que tinham tido um aprendizado diferente do seu, e eles se habituaram a sua maneira de ver e dele tomaram as noQoes de arquitectura organica que haviam de aplicar nas igrejas menores da cidade e da regiao. 161 II A igreja ficou duma so nave (da largura da actual) com tres capelas por lado (que as actuals representam em piano) cobertas por altas abobadas de bergo, de eixo perpendicular ao da nave central, e comu- nicando entre si por arcos que davam a estas capelas o aspecto de naves colaterais. Terminava por uma capela-mor e duas colaterais abertas para a nave. A anteceder a igreja, havia um amplo portico interno (narthex), aberto para a nave, apoiado em colunas, formando tres naves longitudinals, de quatro tramos cada, como se ve dos arcos descobertos nas paredes laterals; sobre o mesmo havia um segundo piso. Este portico tomava o espago que vai da actual frontaria as prlmelras capelas. A fachada era do tipo da Se Velha. No sitio e com as mesmas dlmensoes do Claustro do Sllenclo, era o primitivo, cobertas as suas galerias de madeira, em volta do qual se distribuiam as casas conventuals; ficando o Capitulo no lugar do exlstente, certamente o refeitorlo no sitio do primelro do sec. xvi. no lango nascente, e no angulo deste mesmo lado, junto a capela de Jesus, na altura do baixo relevo do Ecce-Homo, a portaria. Para esta entrava-se por uma rua que passava ao lado sul da igreja, hoje intelramente obliterada. la do espago ocupado hoje pela igreja de S. Joao de St.*^ Cruz (cafe) e da sacristla; a altura desta cortava-se uma transversal, fechada pela porta da Trindade e um pouco adiante pela porta que ficou conhecida nas cronlcas por Porta da Espada Cinta. No espago ocupado pelo edificio da Camara Municipal encon- trava-se o mosteiro das Donas, as quais Ihe servia de capela uma de pequeno tamanho que acumulava essas fungoes com a de sede paro- quial do isento cruzio e que abrangia o espago da manuellna e que se ve, da praga, entre a igreja e a Camara, hoje capela funebre. Como OS edlficios estavam fora das muralhas, os sens muros de circuito formavam uma cortlna continua, tendo para o lado de Mon- tarrolo um grupo acastelado, que derruiu em 1935; parecendo ter chegado o mosteiro a resistir ao assalto de tropas do emir lacube Alman- gor em 1 190. Posto que o mosteiro se tlvesse organlzado sob a regra de Santo Agostinho, deve-se entender que ela era interpretada pelos cos- tumes da vida canonical comum da Se de Coimbra, donde vieram e onde estiveram alguns dos fundadores, pela experiencia e alnda pela obser- vagao de D. Telo na sua viagem a Terra Santa e passagem por Cons- tantinopia e, acima de tudo, pela regra do mosteiro de S. Rufo, junto a Avinhao. Dali vieram livros da regra e da liturgia da casa monastica, beni como algumas obras dos Padres da Igreja. A segulr a morte de 162 D. Telo (1136), os conegos regrantes, reunidos em capitulo, resolveram adoptar absolutamente a regra daquele mosteiro e ali mandaram um delegado a comunicar essa resolugao, a agradecer atengocs anteriores e a estabelecer relagoes mais firmes. Foi, esta, uma filiagao espiritual sem qualquer dependencia economica ou jurisdicional. A regra de S. Rufo continuou a orientar a vida criizia na idade media, c foi comu- nicada aos mosteiros filiais de Santa Cruz. Organizada a vida comum, viram os fundadores a necessidade que havia de obterem a isengao da jurisdigao episcopal, ficando imedia- tamente sujeitos a Se Apostolica. D. Telo, com o futuro arcebispo bracarense, D. Joao Peculiar, foi obter, de Inocencio II, o privilegio desejado e concedido por bula de 26 de Maio de 1135. A sua interpretagao pratica foi origem de grandes questoes entre Santa Cruz e a Se conimbricense, porque estavam em jogo direitos que para o mosteiro eram vitais e que para a Se eram de grande impor- tancia e tinham sido propriedade sua. O grande periodo de lutas terminou no meado do sec. xiii. Em 1137 foi criada e delimitada a paroquia cruzia, o niicleo do isento, sem sujeigao episcopal ou arqui-episcopal; se o arcebispo de Braga aqui algava a cruz, fazia-o como primaz das Espanhas. O sumo-pontifice Anastacio IV, concedeu aos priores de Santa Cruz, em 1153 (ante-penultimo de governo de S. Teotonio), que pudes- sem usar das insignias episcopais (mitra, baculo e anel) podendo cele- brar de pontificial. Com a extingao do priorado-mor, no sec. xvi, estiveram alguns anos sem uso estes privilegios; foi o prior geral D. Jorge Bar- bosa (1566-69), depois de longas consultas, o primeiro a usa-lo; mas o primeiro que novamente conferiu ordens menores, como faziam OS priores-mores, veio a ser D. Sebastiao da Graga (1624-27), por breve de Urbano VIII. No comego da nossa nacionalidade, foi Santa Cruz uma iareira de cultura intelectual. Nao foi todavia uni centro de expansao, como impensadamente e com ma informa?ao, frequentemente se escreve; a escola monastica e o envio, aos centros estrangeiros, de alunos tinha um mero fim de cultura interna. A esta eleva?ao cultural de Santa Cruz nao devia ter sido indi- ferente a acgao dum dos fundadores mais activos do mosteiro, a do antigo mestre escola da Se conimbricense, D. Joao Peculiar, que em 163 Franca estivera a ilustrar-se, que fundara o mosteiro de S. Cristovao de Lafoes e que para aquele cargo catedralicio fora chamado pelo prior e mais tarde bispo, D. Joao Anaia. Nas primeiras relagoes com o mosteiro proven^al de Saint-Ruf procurou-se nao so obter as regras e os costumes como tambem copias da literatura patristica (St.o Agostinho, Beda, Santo Ambrosio). Em 1199 D. Sancho I concedeu quatrocentos morabitinos para a sustentagao dos conegos que estudavam em Franga. A figura primacial, pelo renome europeu e pela sua acgao dentro da ordem franciscana nas suas origens, e a de Santo Antonio, cuja vasta cultura teologica foi adquirida em Santa Cruz, donde se ordenou de presbitero. A acpao construtiva de Santa Cruz nos restantes seculos da idade media foi insignificante. No sec. XV, duas capelas laterals da igreja, do lado direito foram transformadas, conservando-se ainda hoje a abobada. Foi obra do prior-mor, D. Gomes (que antes fora prior do mosteiro beneditino de Santa Maria de Florenga), para dar melhor asilo as reliquias dos San- tos Martires de Marrocos. Seculo de ouro do mosteiro, o xvi, apesar de ter sido nele que se viu cerceado nas suas rendas, e, grandemente, pela extingao do priorado mor, pela criagao do bispado de Leiria (1545) que Ihe levou as possessoes que a mesa prioral ali tinha, pela criagao do bispado de Portalegre (1549) que Ihe ficou com as igrejas de Arronches, pela incorporagao na Uni- versidade (1545) das restantes rendas do priorado-mor. A renovagao cruzia deste sec. xvi, quer dos edificios quer da vida monastica, tem de ser dividida em duas epocas, ficando a demarca-las a reforma de Fr. Bras de Braga, comegada em 1527. Foi causa da reforma manuelina dos edificios a vontade eficaz do Afortunado que impediu que as rendas do priorado-mor caissem em comenda dada ad nutum do Sumo Pontifice, a que se juntaria o desejo antecedente do mesmo rei de dar mais honroso tumulo ao fundador do reino. Langada abaixo a abobada da igreja, demonstrada a necessidade de aplicar as rendas cobigadas na sua reedificac^ao, foi nomeado prior- -mor o bispo da Guarda e real capelao-mor, D. Pedro Gaviao, em 1507. Comegaram as obras depois desta data, devendo ter sido seu primeiro arquitecto Boutaca. 164 A igreja do mosteiro de Santa Cruz Nao era intengao do monarca fazer uma reforma total dos edi- ficios mas so a renovagao de certas partes. No priorado de Pedro Gaviao (1507-16) reformou-se a igreja com a sua capela-mor, sacristia, capitulo e capela das Donas que em 1513 se tentava ampliar, o que nao teve efeito. No governo de D. Manuel (1516-21), pelo filho D. Afonso, reconstruiu-se o claustro e comple- taram-se os coroamentos da igreja. D. Joao III, pelo mesmo D. Afonso ate 1527, mandou levantar o portal. A renovagao da igreja nao foi funda. Destruida a abobada da nave romanica, desmanchada a parte interna do narthex, ficaram os dois espa^os unidos, formando, desde a fachada antiga ate a abertura da capela-mor uma nave extensa, de comprimento duplo da antiga; lan^ou-se sobre este espago a abobada manuelina; a fachada foi recons- truida, sendo condicionadas as suas linhas gerais pela romanica ; a capela- -mor e as suas colaterais deram lugar a actual mor; as capelas laterais, que em principio se tinham condenado, tiveram as abobadas destruidas para a abertura de amplas janelas (com excepgao da primeira do lado da direita que, destruida e maquilhada, guarda a ossatura primitiva, acontecendo quase o mesmo a que Ihe fica em frente). O claustro e a casa do capitulo e o refeitorio (desaparecido nas segundas obras) foram reedificados nos espagos antigos. As primeiras obras revelam pressa e falta dum preliminar estudo seriamente pensado; ve-se que, inicialmente, nao se sabia bem o que se queria: para cada parte e, no momento em que se Ihe tocava, se tomaram resolugoes. Vindo D. Joao III, por motivo da peste, acolher-se a Coimbra, em Julho de 1527, resolveu que se procedesse a reforma da vida monas- tica cruzia; entregando essa obra a Fr. Bras de Braga, futuro primeiro bispo de Leiria, que Ihe deu inicio em 13 de Outubro daquele ano. Se nao fora a repulsa de certos regrantes em serem reformados por um religioso de outra ordem e a sua saida do convento, que preparou o terreno para uma acgao mais livre e funda do reformador e, se nao fora ainda e principalmente a alta inteligencia deste, a sua larga visao das coisas, espiritual e temporal mente, a reforma tomaria o caracter de outras do tempo, pouco iria alem da que fora feita em 1517, quando ja haveria desordem na vida religiosa, provocada pelas obras que alte- raram a vida de comunidade e grandemente haviam de influir no estado espiritual que provocou a intervengao do Piedoso. Pareceu, a Fr. Bras que o quadro material era acanhado para os religiosos e, resolvendo alarga-lo, abriu novo periodo construtivo em Santa Cruz. 166 O mosteiro das Donas, que albcrgava um numero reduzido, foi extinto e elas tiveram de ir esperar noutra casa que a morte as levasse. O espaQO que o seu edificio ocupava (o da actual Camara Municipal) ficou livre. O pensamenlo primeiro de Fr. Bras (em queni D. Joao 111 dcpusera a confianga, aprovando-lhe todas as resolugoes) ve-se pelo contrato com Diogo de Castilho acerca da pedraria e alvenaria (Margo-1528) e pelo de Pedro Anes que tratava da carpintaria (Setembro-1530). Faltam-nos outros que seriam de grande interesse, como o do claustro e casas da portaria nova. O la?o norte dos edificios do claustro do Silencio era reconstruido. prolongando-se para nascente, ficando assim um novo claustro, o da Manga. Na parte baixa, junto ao claustro do Silencio fazia-se o novo refeitorio (hoje Associagao dos Artistas); na parte alta, abrangendo OS dois claustros, ficava o dormitorio grande para os conegos: no lado nascente do claustro da Manga, a enfermaria (que no sec. xvii foi substituida por outra maior, na Horta); no lango intermedio que divi- dia OS dois claustros, aonde tinha sido o refeitorio velho e a portaria, seria o dormitorio dos novigos; a cozinha e casas anexas construiam-se ligadas ao refeitorio, para o lado do poente; no sitio do mosteiro das Donas, voltado para a praga, abria-se a portaria que dava para um pequeno claustro intermedio que ligava com o do Silencio, e nas suas quadras ficavam as repartigoes civis do mosteiro, para estabelecer distingao e nao quebrar o recolhimento da vida religiosa. isolada pela entrada do claustro do Silencio. Na igreja construia-se o coro alto, a entrada, sensivelmente, no mesmo andar dos dormitorios; para ali era levado o cadeiral que estava na capela-mor. A igreja de S. Joao das Donas era suprimida; para a sede da paroquia levantava-se do lado sul da igreja um novo edificio (o actual cafe). Fechou-se o segundo periodo construtivo do sec. xvi; extinguiu-se o priorado-mor; ficaram os priores trienais do mosteiro e gerais da congregagao agostinha com receitas diminuidas; mas nunca mais deixou de se ouvir, no mosteiro, canteiros preparando pedras e o matra- queio nas obras de carpintaria; obras grandes, obras pequenas; sem- pre se construiu, sempre se remodelou. Nao podemos seguir as alteragoes sucessivas dos edificios; diga- mos em resumo: levantaram-se novos andares, ampliaram-se oficinas, continuou um mundo de obras. 167 O vendaval Frei Bras-D. Joao 111 nao se limitou a reforma da regra e dos edificios, foi mais alem. Fr. Bras nao podia esquecer que fora aluno das escolas de Paris e que se graduara em Teologia na universidade de Lovaina; em volta de 1530 reorganizava os estudos em Santa Cruz e seguidamente formava dois grupos de salas (o de S. Agostinho e o de S. Joao Baptista), aos lados da igreja. Para residencia dos estudantes levantou, no sitio da actual Caixa Geral de Depositos, estendendo-se para Montarroio e Sofia, dois cole- gios, o de S. Miguel e o de Todos os Santos, onde, na transferencia da Universidade para Coimbra (1537) se acomodou provisoriamente o ensino universitario de algumas faculdades, enquanto as outras, as mais principais, se albergavam nas casas do primeiro reitor, D. Garcia de Almeida, a Estrela. Cancelarios da Universidade ficaram os priores gerais de Santa Cruz ate a supressao das ordens religiosas no seculo passado. Ao mesmo tempo que se reorganizavam os estudos estabelecia-se uma tipografia no mosteiro, tendo por impressor Germao Galharde (1530-31) e, depois de 1532, os proprios conegos. No sec. XVI estabeleceu-se a «Congrega9ao de Santa Cruz de Coim- bra», englobando os mosteiros de conegos regrantes agostinhos. Foi iniciada em 1539 pela uniao voluntaria dos conventos de Santa Cruz, S. Vicente de Lisboa e Grijo ; teve a sua instituigao por Paulo IV em 1 556 ; e foi-se sucessivamente ampliando com novos mosteiros, de modo a abranger ja, no meado do seculo imediato, vinte casas. No sec. xviii, por breve de Inocencio XIII (1723), Fr. Caspar da Encarnagao teve o encargo de reformar o mosteiro, conservando-se nessa fungao ate a sua morte (1752). Esta reforma, como a do sec. xvi, provocou descontentamentos mas foi salutar para o mosteiro. Algu- mas obras notaveis restam deste tempo, como a do Santuario e o jardim conhecido hoje por Quinta de Santa Cruz. Pelo decreto de efeito geral de 1834 ficou extinto o mosteiro que teve sete seculos completos de existencia. (Introdufao a guia «Mosteiro de Santa Cruz». Coimbra, 1977.) 168 XII A IGREJA ROMANICA DE SANTA CRUZ Ficou a igreja manuelina de Santa Cruz, no sec. xvi, assim cons- titufda: uma so nave que e terminada por uma capela-mor, quase tao larga como ela, e a separa-las um arco-cruzeiro mais estreito que esta. Abrem-se na nave, de cada lado, duas capelas de pequena altura, uni- das entre si por uma outra sem comunicagao com o corpo da igreja; capelas em discordancia construtiva com o arranjo da nervagao da abobada. No lado do Evangelho, em continuagao das capelas, ha dois grandes lojoes, que vem tocar na fachada; o primeiro e abobadado de cruzaria manuelina, mas que de baixo se nao ve por se ter estabele- cido, quase a altura desta, um sobrado a formar a casa dos foles; o segundo nao e. O espago correspondente do lado oposto e preen- chido pela igreja de S. Joao das Donas. A igreja romanica era porem de outro tragado. Uma nave da largura da actual e tendo de comprimento metade do que hoje tern, abobadada e possivelmente de meio-canhao. Numa e noutra face lateral havia tres altas capelas, de abobadas semi-circulares cujos eixos eram perpendiculares ao da nave, contrafortando poderosamente a larga construgao central. Comunicavam entre si por arcos redondos, de grande abertura, fazendo com que a igreja parecesse ter tres naves, como o cronista cruzio a considera. No topo oriental, o das absides, havia tres capelas: a mor, alta, e de largura aproximadamente do actual arco cruzeiro, e duas bastante mais baixas e estreitas em demasia, todas tres com o arco para a nave. Em frente a igreja, no espago que hoje fica abaixo do ultimo par de capelas, as do SS."^^ q jg Santo Antonio, havia uma galile, que talvez avangasse ate a frontaria manuelina, e de cuja forma nada podemos dizer. Nao tinha nave de cruzeiro. 169 De larga epoca eram conhecidos dos arqueologos conimbricenses dois arcos romanicos com o resto dos capiteis que os sustentam: um sobre a capela do SS."^o numa tribuna, ornada de azulejos do principio do seculo passado, que se descobre da nave, atraves da janela manue- lina; o outro detras da armagao do orgao, na aprumada da parede. Deles dizia Mestre Antonio Augusto Gongalves: «A existencia dos dois arcos, que poderia ser um fio orientador, pelo contrario, levanta novos embaragos. Se nao podem ser integrantes do transeptum, por largura minima, nem do triforio por largura maxima, nao ha cogita- Qoes, nem conjecturas, que possam interpretar a escala descomunal das naves». No fim do ano de 1931 ou principios do 32 resolvemos ir reco- nhecer o arco do lado da epistola. Era ainda entao paroco de Santa Cruz o Conego Julio Antonio dos Santos que nao so pessoalmente o foi mostrar mas tambem nos informou que, nas traseiras da tribuna, havia um outro. Era necessario descer para a abobada da capela do SS."^o^ obrigando-nos a um esforgo que a saude precaria da ocasiao nao nos permitia. Limitamo-nos a ve-lo de longe e, como a sua aresta fosse chanfrada, nao nos atrevemos a classifica-lo. Nao nos esqueceu, posto que fossemos adiando o seu estudo. No dia 2 deste mes de Novembro, sugestionados por um outro estudo que puzemos ja de lado, voltamos enfim ao arco. Descemos a abobada e, como a tribuna nao assenta directamente sobre ela, pode- mos ir examinar o espago intermedio, reconhecendo na parede da nave, nos dois extremes da capela, um troQO das colunas romanicas comple- tamente liberto do preenchimento, adossadas as pilastras que vinham da tribuna; as primeiras aduelas dum arco transversal, romanico tam- bem, que dividia esta capela da imediatamente superior; e no lado oposto um outro arco mais largo, de aresta profundamente chanfrada, mas corte este feito numa epoca posterior, como o mais leigo nesta materia o pode reconhecer. Tudo estava muito regularmente siglado, para melhor marcagao da epoca, se ja nao fora bastante o tipico apa- relho das pedras. Reconhecemos mais na parede nascente da cons- trugao posterior a tribuna, restos duma imposta bem caracteristica, que deve ser indubitavelmente a continuagao da que pertence aos capiteis do arco romanico, e que ficaria superior ao arco divisorio das capelas contiguas. Sobre esta imposta comega uma abobada, cujo eixo e perpendicular a nave, muito caiada, que se nao e romanica a reproduziu inteiramente. 170 No fundo da capela ha uma janela manuelina obtuiada, que deve ter a nascenga levemente abaixo da abobada actual do SS.'"". De posse destes elementos, ali mesmo. pudemos reconstruir urn tramo da velha igreja. Nao possuia nem tres naves nem triforio, mas era duma linica nave, cuja abobada era contrafortada pelas abobadas em sentido per- pendicular das capelas laterals, que se erguiam ate a nascenga da cen- tral; tipo de larga representagao e evolugao desde o sec. xii ao xvi, que ja tinhamos estudado, a proposito duma sua ultima consequencia, tipo robusto que permitia que se estabelecesse com ele um largo espago abobadado, tendo por defeito unico o de se nao poder iluminar directa- mente a nave, a nao ser pelas aberturas da fachada. Quiz-se aqui combinar este tipo com o das tres naves e abriram-se arcos, cujos fechos deviam tocar na imposta que era o seguimento dos abacos dos capiteis da entrada, quase da largura das capelas, comuni- cando-as. Nao sabemos se estes arcos tinham infericrmente um outro de menor espessura, segundo a formula romanica das igrejas abobadadas, como se dava na abertura destas capelas e se da, para nao ir a cutras citagoes, na Se Velha; como nao sabemos tambem se estes arcos (dando-se esse caso) tinham capiteis, porque justamente a fiada de can- taria do que esta ao lado nascente, aonde um deles deveria estar, tinha sido destruida na colocagao da abobada da capela do SS.'"", capela esta que ocupa, em altura, um pouco mais da metade do espago da antiga romanica. O arco oposto a este, o da parte do poenle, e de raio um pouco maior. No principio causou-nos isso serios embaragos por nao saber- mos se o haviamos de considerar tambem divisorio de outra capela, se simplesmente arco ornamental da parede extrema da igreja. A visita que no dia oito fizemos ao arco dos orgaos, do outro lado da igreja. na qual encontramos restos dum arco correspondente e, no seu preen- chimento, restos tambem da parte exterior duma janela romanica, convenceu-nos da segunda hipotese e deu-nos coni precisao o limite ocidental do templo. Nesta segunda visita podemos determinar que o pilar entre as capelas era um pilar de tipo cruciforme. tendo adossado na frente a coluna do arco toral da grande abobada e a cada lado a do arco da entrada das capelas, prolongando-se a parte detras, em parede, noventa e oito centimetros ate ao arco de comunicagao das capelas. Quere-nos parecer que a distancia da parede do fundo ate este arco era maior. Esta disposigao do pilar, na parte voltada para o corpo da igreja, ve-se 171 junto dos orgaos, pelo prolongamento do abaco dos capiteis, formando imposta, a qual aguenta urn outro arco exterior a contornar o romanico, construido na aprumada da parede, certamente quando se colocaram OS orgaos. Da coluna da nave nada descobrimos. Na comunicagao, aberta violentamente nas abobadas, desta casa do orgao para a dos foles, na qual ha a referida abobada manuelina, encontramos na parede, na face voltada para esta casa, uma parte lateral da acabada de mencionar janela romanica com as primeiras aduelas do arco exterior. Era simples, no genero das que ilumi- nam as naves baixas da Se Velha. Pelas referencias documentais a paredes e arcos velhos se sabia que a antiga igreja nao tinha sido destruida ate as fundagoes. Um dos documentos desse genero mais curiosos e o contrato de Boytac de certas obras no mosteiro e na igreja de S. Joao das Donas, de 24 de Janeiro de 1513 nao so por causa dessas referencias mas tambem por tratar de trabalhos a realizar justamente no lado em que ficou uma capela primitiva. Nas reparagoes de 1893 foram encontrados alguns arcos sob o reboco da parede norte. Mestre Antonio Augusto Gongalves quiz ir estuda-lo mas quem dirigia a obra impediu-o. A alusao a eles, que vem no seu livro, deve ser interpretada com cautela. Nao os tendo ele visto nem os ligando com o existente na casa dos orgaos, devemos ficar so com a nogao da existencia naquela parede de certos arcos determinados que nao devem pertencer a estrutura manuelina. A nave antiga era curta, e recorreu-se para a sua ampliagao a um processo de que conhecemos exemplos numerosos, antigos e recentes, o de prolongar a nave pelo avango da fachada, ficando neste caso de comprimento duplo do antigo. A galile foi suprimida e os tumulos que abrigava teriam destino vario. Poucos anos antes, o bispo D. Jorge d'Almeida, para a cons- trugao dum adro alto que ligasse as portas da sua se, e para o alargamento da rua, destruira os numerosos tumulos que, pelo Livro das Kalendas, sabemos terem existido quer do lado norte quer ao poente da catedral, encostados a parede desta e as das casas fronteiras, passando a rua pelo meio das areas e campas sepulcrais. De todos so resguardou as ossadas de D. Sisnando. O mesmo tinham feito, no sec. xiii, os construtores que, ao lado sul da mesma se, ergueram o claustro, comemorando-se o lugar dalgumas antigas inhumagoes em lapides novas. 172 As aberturas das capelas laterals foram fechadas e, guardando-se na capela que hole e do SS.'"", e que entao era de S. Tiago, os moi- mentos de Fernando Cogominho e D. Joana Dias, que no fim do sec. xm tinham ornado e cscolhido para si esta capela, foram transporladas as suas cinzas para a entrada da igreja, para que nao ficassem ao aban- dono. Niio sabemos ate onde se estendia a galilc, mas sendo o terreiro em frente da igreja reduzido, e tendo de ser derrubadas, pelos anos de 1400, algumas casas no principio da rua da Moeda para o tornar mais amplo e regular, e se podercm realizar festas em que entravam cavaleiros, fazendo-se la depois duas fontes que tiveram vida acidentada, podemos presumir que ela deveria ter a fachada sensivelmente na iinha da actual da igreja. Da existencia desta galile, de que nao encontramos um unico documento ou qualquer resto, nao temos duvida. A igreja. como ficou dito, esta bem delimitada pelo ocidente: o claustro e outro ponto de referencia porque a sua parede sul e a poente, pelo menos, se nao sao do sec. xii, foram alicergadas no alinhamento antigo. Entre um e outro ponto nao podemos colocar, por melhor vontade que haja, as construgoes monacais que os cronistas dizem que Ihe ficavam encosta- das; tinham de avangar para poente, e o angulo produzido, dando-se a nao existencia de galile, nao era dos habitos construtivos da epoca. No sec. XII ainda se nao tinham generalizado os enterramentos dentro das igrejas, a excepgao de pessoa notavel da ordem clerical ou da lai- cal; sepultavam-se nos adros quer cobertos quer nao. O claustro aqui era reservado a vida monacal, e se ao alto clero, aos reis e grandes senhores se consentia que la tivessem acesso, recusava-se as mulheres, nao concedendo ate licenga para isso a rainha D. Mafalda o prior S. Teotonio. Como se poderiam la colocar moimentos que a sau- dade dos vivos queria visitar repetidamente? Seria, nos primeiros tempos, de grande raridade que um leigo ali fosse inhumado. Nao sendo lugares de sepultura nem o templo nem o claustro, devendo haver uma grande afluencia de doagoes com a obrigagao de enterramento a sombra do mosteiro, nao so por imitagao dos reis mas tambem por simples devogao a unica casa monastica existente na cidade (habito de todos os tempos!) certamente se pensaria ao reconstruir a igreja no sec. xii, de destinar lugar conveniente para tal fim, principalmente para as pessoas de categoria, e que trazia alem disso a vantagem de ampliar em certo modo o ambito da igreja. As capelas da nave, fechada a sua abertura quando se langou a abobada manuelina, com as abobadas rasgadas para a introdugao 173 das janelas quinhentistas que ficaram com a base inferior a estas, vol- taram a ser abertas, a excepgao das centrais por ai cairem os feixes de nervuras, dando-se-lhes um frontispicio do renascimento, que hoje so mostra o arco, que outrora era ladeado de bustos a emergirem de oculos, como se viu na restaura^ao do seculo passado, e colocando-lhes abobadas novas a altura inferior as antigas; conservando-se assim o velho piano da nave. Segundo Santa Maria, as tres capelas do lado do Evangelho, a comegar das absides, eram : a de S. Pedro, a qual D. Sancho I deixou pelo seu testamento cem marcos de prata para um frontal de prata, a qual possivelmente deveria ter comunicagao, como agora, com o claustro; a capela de S. Vicente; e a de Sant'Antao, capela que a infanta D. Constanta (1204-1269), filha de D. Sancho I e da Ribeirinha, tomou para sua sepultura e, segundo da a entender D. Nicolau, que foi mudada do titular antigo para o de Santo Anto- nio pela mesma princesa. Ao lado da Epistola havia: a capela de S. Miguel, aonde estava o tiimulo do bispo D. Pedro Sueiro (-f 1233), segundo D. Nicolau, e segundo Pedr'Alvares na capela de S. Geraldo, na Se, e em frente o bispo seguidamente do Porto, Lisboa e Cuenca, D. Estevao Joao (+ 1336) que fora prior do mosteiro; a capela de Santo Andre, que veio a ser dos Martires, e a qual nos referiremos mais abaixo; e a capela de S. Tiago-Maior, a de D. Fernando Cogominho, hoje do SS."^° Sacra- mento. De todas as capelas so ficou esta ultima por se Ihe ter dado destino que desconhecemos. Ja nos referimos a grande janela manuelina obturada que tem no topo; alem disso a parte superior foi transformada em eirado com sua cornija, gargulas e grilhagem manuelinas. Isto nao tem ligagao com a obra do renascimento, com a sua reintegragao em capela da igreja; a propria janela da nave vem abaixo da abobada primitiva. A capela escura. a antiga de S. Andre, e anterior, parece, a reforma manuelina. Na visita do dia dois so reparamos que a sua abobada ficava a maior altura que as das outras, posto que inferior a romanica. No dia oito, auxiliados por uma pequena lampada de bolso, notamos que as misulas, visiveis dos arcos cruzados tinham um grande sabor do sec. XV, nao nos sendo possivel determinar isso rigorosamente pela iuz ser insuficientissima e elas ficarem elevadas. Da chave, que deve ser bem ornamcntada, mas que vista aquela Iuz nao passava duma mancha, parte uma nervura que devia ir tocar no fecho da capela contigua, a que fica encostada a sacristia, e dando a entender que tives- 174 sem anibas constituido uma so, tanto mais que as represas desse lado ficam quase ocultas na fina parede divisoria. ProcLirando cm Santa Maria, encontramos que o prior D. Gomes ali «ordenara fazer hua solemne Capella'> segundo os lermos duma Carta de D. Afonso V. de 28 dc Margo de 1458, a qual acabou em Janeiro de 1458, Irasladando da area de pedra, da capela-mor, para uma de prata, os ossos dos Santos Martires de Marrocos, a 10 de Dezembro do mesmo ano, conservando o titular antigo a capela, e obtendo no ano seguinte, de Pio II, um breve para se celebrar em Santa Cruz da mesma trasladagao. Nao podemos ir novamente ver, e melhor. a abobada porque as nossas ocupagoes o nao permitiram. Se facil era conceber que houvesse duas capelas colaterais e con- tiguas, segundo a expressao do cronista cruzio, a capela mor, quando se pensava que a velha igreja fosse da formula vulgar de tres naves, dificil era coloca-las agora no topo da nave unica. Tentamos diversas solugoes e todas eram inaceitaveis ou porque se chocavam com o metodo construtivo da cpoca, ou com a descrigao feita por D. Nicolau de Santa Maria, ou ainda com elementos que devemos considerar antigos ou alicergados sobre os antigos. Muitas vezes a palavra capela aparece em velhos documentos a designar um simples altar encostado a parede duma nave, e ate isso mesmo se da nesta Cronica, onde o A., reproduzindo D. Verissimo, assim denomina os altares que ficavam ao lado do arco cruzeiro, na igreja nova, altares cujo lugar e ocupado agora pelos de Joao Machado. Inclinavamo-nos muito para essa interpretagao posto que chocassemos com algumas dificuldades de diverso genero. Na Vida de D. Telo diz-se: «E foy emterrado o seu corpo ao lado dereyto da igreia, acerqua do altar consagrado a honrra de Santo esperito. E quando o poserom no moimento todos chorauam». Posto que a narragao primitiva em latim nao fale de area tumu- lar — e mesmo S. Teotonio (-{- 1162) tivesse sido inhumado, por sua determinagao, no pavimento do capitulo, donde foi trasladado para o tumulo, que hoje serve de mesa do seu altar, no ano da sua canoni- zagao (1163) — nao seria impensadamente que o tradutor do sec. xv empregaria o termo moimento, ele devia existir, e se o altar tivesse essa colocagao tornava incomoda a passagem para a capela de S. Pedro; porem, mesmo que tivesse sido colocado no chao sob uma campa, se no sec. xvi foi necessario mudar os seus ossos para o claustro, aonde tiveram uma colocagao modesta, e porque o lugar da sepultura ficava escondido pelas novas obras e nao era situado na nave, que ficou tal qual. 175 Procurando exemplos peninsulares duma so nave com tres absides, ocorreu-nos a igrejinha de S. Pedro de Leiria, de clara filia^ao no roma- nico de Coimbra. Nao era necessario ir buscar exemplos mais afastados, tinhamos aqui um reflexo de Santa Cruz. A capela-mor seria mais alta que as colaterais, e estas com uma abertura muito estreita para que aquela pudesse dar o maior espago possivel ao coro canonical. A parede exterior destas sairia possivel- mente um pouco, como em Leiria, do alinhamento da que vinha da nave, como assim o parece indicar o alinhamento tambem da parede do claustro, devendo fazer notar que entre esta parede e a da capela-mor vai certo espago, posto que preenchido, que se pode avaliar pela cape- lita que fica entre o capitulo e a igreja, que outrora dava entrada para a escada que ligava a parte baixa com a galeria superior deste claustro, escada cujos restos ainda se veem duma pequenina quadra dependente desta capela. A abside era dedicada a santa Cruz, aparecendo sobre o altar o Crucifixo ladeado da Virgem e de S. Joao. A absidiola do Evangelho tinha por titular o Espirito Santo, e Santo Agostinho a da Epistola. E possivel que novos documentos ou pesquisas locais venham alterar um pouco a nossa reconstituigao. Nao pensamos que o fagam grandemente. O que ai fica e contudo alguma coisa de novo e de inesperado. (No semanario «Correio de Coimbra», ano xiii, n.° 647, 17-xi-1934.) 176 XIII A FRONTARIA ROMANICA DA IGREJA DE SANTA CRUZ DE COIMBRA A 17 de Novembro de 1934, publicavamos, no Correio de Coim- bra, um longo artigo intitulado A igreja romdnica de Santa Cruz, de reconstituigao morfologica. Restos que tinham ficado na reconstrugao manuelina, o conhecimento da arquitectura romanica europeia, tudo isso, beni meditado, permitiu-nos conclusoes que novos achados tern confirmado e completado. Nesse artigo, bastante extenso, deixamos escrito, a proposito do narthex: «em frente a igreja, no espago que hoje fica abaixo do ultimo par de capelas, as do SS.™° e de Santo Antonio, havia uma galile, que talvez avangasse ate a frontaria manuelina, e de cuja forma nada pode- mos dizer»; algumas colunas adiante, voltavamos a fazer-lhe nova referencia: «nao sabemos ate aonde se estendia a galile, mas... podemos presumir que ela deveria ter a fachada sensivelmente na linha da actual da igreja. Da existencia desta galile, de que nao encontramos um unico documento ou qualquer resto, nao temos duvida». Davamos em seguida as razoes em que nos apoiavamos. Nas Novas Hipotese acerca da Arquitectura Romdnica de Coim- bra (1938), referindo-nos ao mesmo narthex, afirmavamos — «para a determinagao da qual temos hoje elementos que nao possuiamos em 1934» e, em diversos lugares do mesmo volume, deixavamos ver que havia bases suficientes para a reconstituigao organica daquela parte da igreja. Depois dessa data, novos indicios apareceram e mais se firmaram e ampliaram as conclusoes primeiras. Nao vimos tratar hoje do narthex na sua totalidade (ficara isso para a reedigao do artigo de 1934, em que sera dada a reconstituigao da igreja que o arvernes mestre Roberto levantou em Coimbra, no segundo quarto do sec. xii, e que foi o comego magnifico da renovagao 177 12 da arte romanica nao so na cidade como tambem na regiao que, por diversas formas, dela dependia) ocupar-nos-emos tao somente da fachada. * * * O resto unico que possuimos da fachada romanica e a face do contraforte que ficou a mostra no botareu manuelino, no lado voltado para o Geral de St.^ Caterina, e que apareceu em 1936 nas demoligoes das casas que obstruiram o espago actual entre a igreja cruzia, a Camara Municipal e a quadra do geral que foi primitivamente capela de S. Joao das Donas. As pedras, caracteristicas pelo seu aparelho e pela sua siglagem, conservam-se no seu lugar e, se na parte mais baixa, apre- sentam um corte como se tivesse sido feito um chanfro na esquina, na parte mais alta o seu desenho esta intacto, tendo so a insersao dos cordoes do novo botareu. Esse resto do contraforte serve-nos em duas coisas : primeiramente, dando o limite ocidental do narthex com a situagao da fachada; em segundo lugar,. tornando-se em fio condutor que, aliado ao conheci- mento das diversas fases do romanico coimbrao, nos levara a conclu- soes rigorosas. * * E, todavia, atraves da fachada manuelina que abriremos caminho e que iremos tocar a romanica. Falando da fachada manuelina, devemos fazer notar que e a parte de pedra escura que nos referimos e nao ao portal de pedra branca que Ihe foi justaposto nos primeiros anos do reinado de D. Joao III. E ainda, para falarmos dela, teremos de esbo^ar, em largos tragos, a primeira das duas re formas dos edificios conventuais no sec. 16.°, naquela parte que se refere a igreja. Essas reformas, que levaram a primeira metade do seculo, dividem-se em duas grandes epocas que ha necessidade de partir ainda em periodos. Vai a primeira ate a reforma da vida conventual por Fr. Braz de Braga (1527) e a segunda deste ano ate quase ao meado do seculo. Distribuem-se, pelo tempo do priorado-mor do bispo da Guarda, D. Pedro Gaviao (1507-1516), pela administragao de D. Manuel (de 1516 a 1521) em nome do infante prior-mor D. Afonso, e pela de D. Joao III que a teve — por D. Afonso (ate 1527), por D. Henri- que (1527-1536), por D. Duarte (1539-1540) e pelo filho D. Duarte (1541- -1543) — ate a extingao do priorado-mor em 1545. O primeiro documento da reforma dos edificios e o contrato de D. Pedro Gaviao com Boytac em 1513. 178 Desse documento escrevemos em 28 de Novembro de 1936 e repe- timos agora: «A sua interpretagao e dificilima, e tanto assim que ainda ate hoje ninguem o utilizou, salvas ligeiras e medrosas referencias, posto que, duma simples leitura que dele se faga, ressalta logo a sua impor- tancia, pelas obras que mostra estarem acabadas nessa altura e pclas que se iam fazer. A principal dificuldade nasce de que muitos dos trabalhos que por ele se encarregava Boytac nunca se comegaram e de terem sido abandonados os projectos ali mencionados, em parte absolutamente, noutra substituidos por novos; e, como algumas obras se encontram feitas na forma que se indica no contrato, e-se levado, numa primeira impressao, a julga-las todas realizadas. Depois dum estudo cuidadoso, tanto quanto o exame do ediffcio e a analise dos outros documentos o permitem, conclufmos que ou o contrato nao foi dado a execugao, sendo substituido por outro ou, come^ado de levar a efeito, composigao entre o arquitecto e o D. Prior-mor, bispo da Guarda, o anulou.» Por esse documento se ve que a essa data estavam acabadas, a fron- taria da igreja (a excepgao dos coroamentos), a abobada da nave, a capela paroquial do isento, chamada capela de S. Joao das Donas, a capela-mor, a casa do capitulo e a sacristia; e patenteia-se-nos que as obras da igreja nao comegaram dos alicerces, mas vieram de cima para baixo, isto e, que a reforma se fez apressadamente. Fosse ja ou nao inten^ao de D. Manuel a de reconstruir a igreja, quando, de passagem para Compostela, em 1502, visitando Santa Cruz, se propuzera mandar fazer de novo a sepultura de D. Afonso Henri- ques, como desta dizem Damiao de Gois e D. Jeronimo Os6rio(l), a verdade e que so com a nomeagao, em 1507, para prior do bispo da Guarda e real capelao-mor, D. Pedro Gaviao, que acompanhara o Venturoso a Castela e Aragao e a Santiago, deveriam ter comegado as obras, e comegado pela causa apontada por D. Nicolau, o desejo do papa Julio 2." de converter o priorado-mor em comenda, com titular de nomeagao ad mitiim da Se Apostolica (2). (1) Conimbricam cum pervenisset, et sepulcrum Alfonsi, Regis sanctissimi, et invictissimi, cuius virtute Mauri fuerunt e Lusitaniae finibus e.xpulsi , parum magnifice exstructum cemeret, id demoliri, et aliud satis amplum et magnificum aedificaie jussit. (2) Se atendessemos aos dizeres da carta de D. Joao HI para Gregorio Lou- ren90, de 8 de Janeiro de 1523, as obras ate teriam come?ado (a nao ser que incluis- semos as demoli^oes) antes de D. Pedro Gaviao ter entrado em prior mor; ve-se porem que se trata dum calculo feito por alto: Vymos a carta que iios esc(r)epvestes p(e)lla quail nos fizestes saber como de todo tinhe(i)s acabado o dornijtorio e Reffey- 179 Nao foi a capela dos reis catolicos nem qualquer outro edificio da epoca que orientou o arquitecto (Boytac, como demonstram os dados que, da sua vida, temos, bem como as expressoes do contrato a que nos estamos a referir — Ihe madarci daar... as duas Redoes asy como as o dito mestre aula nos tempos pasados) foi sim o velho edificio romanico. Se, para a nova capela-mor, a antiga com as duas colaterais sofreu demoligao integral, para o corpo da igreja ja nao aconteceu o mesmo. Foi deitada abaixo a abobada da nave e destruido o narthex mas foram conservadas as paredes daquela e as laterais deste que estavam na sua continuapao, conseguindo-se assim uma nave extensa, com o dobro do comprimento da antiga; ergueu-se, no sitio da velha fachada do narthex. a nova fachada e, sobre o espa^o obtido, langou-se a abobada manuelina, conservando os muros velhos e refor?ando-os pelo modo seguinte: na primeira prumada dos arranques das nervuras da nave por robustos contrafortes, nas seguintes por um modo indirecto, isto e, conservando as duas primeiras capelas romanicas (1) e obtu- rando os arcos das entradas, do !ado nave, das capelas imediatas, as medianas. Obra apressada, sem grandes estudos previos, para ocorrer a neces- sidade de apHcar o dinheiro cobi^ado e para dar, aos frades, a sua igreja para o culto, nao se pensou no destino que se haveria de dar as velhas capelas romanicas ou aquelas que as romanicas tinham sucedido (as duas extremas do flanco da epistola), era obra que depois se veria, e o tempo fez ver, ja no periodo de fr. Bras, que se teriam de conservar, torio dese most(ei)ro de sata cruz e que o p(ri)or crast(ei)ro fizera logo Recol/ier OS conegos no donnitorio e ovia quimze dias q(iie) donujam nelle e que coinjao no Reffeytorio que avia be(m) dezaseis dnos que nelle na dormjao ne(ni) comjd pello desmacho que no moest(ei)ro fizera as obras. (1) A da epistola ainda tern o arcaboigo qiiase intacto; externamente con- serva restos de coroamentos manuelinos e internamente abriga na parte baixa a capela que, ate ha pouco, foi do SS.'"" c na alta duas pequenas divisoes. A capela do evangelho tern inferiormente a de St." Antonio e superiormente o orgao mas so possue uma pequena parte da abobada, da qual se encontrou mais dum tergo da sua totaiidade nas actuals obras de restaura9ao, nao se podendo conservar senao a parte que forma arco detras da caixa do orgao. Em virtude de se terem conscrvado cstas duas capelas, St.-' Cruz apresentava, visto do Largo de Sansao, a seguir a primeira epoca de obras, um esquema arqui- tectural semelhanle ao antigo: o corpo avangado do portal e aos lados. em piano recuado, as massas arquitcctonicas das capelas con.servadas, intercalando-se, no angulo norlc, a capela rcnovada e alteada de S. Joao das Donas. Este dispositivo foi cncoberto pelas obras da epoca joanina e pelas seguintes. 180 diminuindo-lhe em altura os portais e as abobadas, posto que ficassem em pessima relagao com a organica da abobada da igreja. Por este contrato com Boytac procurava-se ocorrer a essa dili- culdade, lapando-se-lhes as entradas, derruindo-se-Ihes as abobadas para que se pudesscm abrir as grandes janelas, e come?ava-se a dar destino aos espagos que ocupavam, principiando-se pela de Santo Anto- nio que iria servir dc capela-mor de S. Joao das Donas que, lendo sido reconstruida scgundo os antigos limites, os romanicos, se verificara ser pequena para o duplo fim da igreja paroquial do isento e de capela do mosteiro feminino, o que se nao veio a executar. Pressa e subordinafuo a certas orienta^oes que o ecUficio romanico impimha, foram as duas caracteristicas da renova^ao const rut iva da epoca de D. Pedro Gaviao, o bispo que, ao mesmo tempo, na Guarda, conti- nuava e quase concluia a se dessa sua cidade episcopal. A fachada teve de ser-uma das primeiras obras; rapidaircnte pro- jectada e erguida, como o exigia o langamento da abobada, as suas partes nao essenciais, que necessitavam de maior exam.e, sob o aspecto decorativo, o portal e o coroamento, foram deixadas para segunda ocasiao. O contrato de 1513 ocorria ainda so as necessidades mais urgentes, como o telhamento das partes feitas (igreja, capela-mor, capitulo e S. Joao) e posto que estivessem iavradas algumas gargulas e outras comegadas de lavrar, Boytac nao as assentaria mas so langaria o telhado com o seu beirado; abriam-se as janelas, completava-se a sacristia, alterava-se, ampliando-a, a capela de S. Joao que ficara insuficiente nas primeiras obras. O portal continuava a esperar e esperou anos. Em 1522 Gregorio Lourengo, no relatorio a D. Joao III, lembrava que era necessario faze-lo, e comentava filosoficamente: E tudo, Senhor, parece necessario se fazer, porcjue sam cabos da obra e em quanta se nam fazem sempre a obra esta por acabar, e o que sta feito nom parece nada. A fachada sofreu, assim, da pressa com que a ergueram, e padeceu mesmo na sua construQao: as pedras da romanica foram aproveitadas nos paramentos; aquelas que ainda tinham o aparelho em bom estado foram utilizadas em grande numero, como os mais leigos podem veri- ficar pelas siglas das numerosas, outras foram aparelhadas de novo, o que se patenteia por aquelas que tinham sinais romanicos de canteiros que agora aparecem como um simples trago sem profundidade. Da romanica destruiram o paramento exterior, mas, como mostra o resto do contraforte que guarda quase a sua altura primeira, o interior em grande parte deveria ter sido conservado, pelo menos para o lado 181 das esqulnas. A conserva^ao destas foi ainda estorvo ao mestre para que projectasse uma fachada em plena liberdade de inspiragao. Ergueu-a severa (tao severa, tao meramente arquitectura que, nesta cidade, varies erudites, sem grandes conhecimentos artisticos, a tern julgado romanica, fortalecidos, alem disso, pelas siglas e pelo contraste de cor com o portal castilhano) e procurou efeitos de claro escuro no engrossaniento dos contrafortes angulares, quase torres (e torres ja, no seculo 16.°, eram chamadas) e na breve saliencia do espa^o intermedio, onde abriu a porta e a janela superior. A fachada ficou, a primeira vista, sem nada de individual, de ori- ginal, para a sua epoca; o fortalecimento dos contrafortes angulares duma fachada enquadrando um portal e caso repetidissimo. O que porem de individual e original ha, e o corpo central numa fachada, de si, nada extensa, um corpo central que nao permitia um portal de grande complicagao de elementos decorativos, onde se nao podia passar duma modesta portada manuelina (1). i,Como concebeu Boytac tal projecto? Se abstrairmos dos grossos contrafortes, se os reduzirmos a pro- porgoes modestas, ficaremos em frente dum esquema arquitectural da fachada do romdnico B conimbricense: uma saliencia central, avan- gando do muro, aberta dum portal e duma janela superior, e, nos angulos, OS botareus. O velho edificio romanico condicionou o piano do manuelino e veio orientar a fachada. Tracemos o contraforte do sec. 12.°, continuando-o conforme se mostra a superficie, recuemos um pouco a parede que fica entre ele e o corpo avangado da janela, e obteremos a velha planta, e a fachada que o arvernes mestre Roberto concebera, seculos atras, aparece rediviva. (1) Era opiniao do Dr. Jose Osorio da Gama e Castro que a fachada da se da Guarda era de Inspiragao da conimbricense cruzia. Podemos afirmar tambem o mesmo e dar-lhe caracter de certeza. Os irmaos Pedro e Filipe Henriques, — que desde 1 504 haviam tornado conta da construgao da se daquela cidade, por renovados contratos de empreitada com D. Pedro Gaviao (bispo egitaniense desde 1496 e prior- -mor de St.^ Cruz desde 1507), que em Coimbra deixaram, como parece dever acre- ditar-se, a pia baptismal hoje da Se Nova, artistas bem inferiores a Boytac — virana em St.'^ Cruz o modelo que Ihes convinha e que, com ligeiras transforma?oes, Ihes dava a soiucjao da implantagao das torres na fachada; fortaleceram o que em Coimbra eram so robustos contrafortes e deram-lhe uma disposigao de planta que nao afogasse o portal, suprimiram o corpo avangado do meio da fachada, que se nao acomodava com a estreiteza do espa^o da fachada da se, e fizeram um portal modesto, que em Coimbra ainda nao existia, como se vera adiante mas que, na ideia primeira, seria modesto tambem. 182 Podemos repetir agora, conio deixamos escrito nas Novas Hipd- teses dcerca da Arquitectura Romdnica de Coimbra, que a disposigao das fachadas poentes das igrejas coimbras, do romdnico B, se realizou a primeira vez em Santa Cruz. Mestre Roberto criou aqui o modelo que havia de repetir mais tarde na Se Velha e ele ou os canteiros que o acompanharam para o nosso pais, simplificaram nas igrejas menores. Entre a fachada de Santa Cruz e a da Se Velha existia so a diferen9a de largura, aquela era mais estreita — abrangia so a nave visto ser fachada do narthex cujas paredes estavam na continuagao das daquela — e certamente nao tinha os arcos e janelas que na Se Velha se cor- tam nas paredes intermedias entre os botareus e o corpo do portal, havia so certamente simples frestas. O tempo nem tudo destroi, ficam sempre restos que, por um tra- balho honesto, consciencioso, vem a revelar as formas primeiras. Quando se julgava perdido para sempre o esquema arquitectural da igreja do sec. 12.", levados pelos testemunhos fragmentarios que restavam, reconstituimo-lo; novos achados tem confirmado as primeiras conclu- soes e, ainda mais que confirmado, tem-nas completado. As obras de restauragao da obra manuelina continuam e e de crer que outros pequenos elementos anteriores venham a luz. Nao e so para Santa Cruz que podemos afirmar o mesmo, e ainda em relagao a area de expansao do romanico conimbricense, nao so expansao directa mas tambem reflexa. Novos elementos estao sur- gindo, que confirmam e ampliam as ideias expandidas no livro Novas Hipdteses e, se os anos de vida forem numerosos, como ha a esperar pela idade em que estamos, poderemos fazer aparecer novo livro, englo- bando e completando os estudos fragmentarios que se irao sucedendo, a que poderemos dar o titulo de — Novas Certezas. Nao consideramos «trigo da nossa eira, linho do nosso estendal» o estudo do manuelino cruzio; alguem ha que Ihe tem dedicado algum tempo e que, certamente, como e de desejar, um dia nos dara um estudo consciencioso, como sao os seus, com revelagoes documentais e de interpretagao artistica. Falando porem do portal, tendo reparado bastante para ele, devendo os Monumentos Nacionais, na sequencia da restauragao a que procedem em Santa Cruz, vir a empreender a sua restauragao, parece-nos que dizer algumas palavras, que nao querem ser e estao muito longe dum estudo fundo, e que nao passarao de ligeiros 183 apontamentos com uma ou outra ideia original e inedita, que aclaram ideias atras expandidas, parece-nos que nao sera intromissao demasia- da mente indiscreta no estudo que a outro pertence por prioridade de trabalho e maior competencia. Na construQao da fachada, Boytac deixou para mais tarde o pro- jecto e a erecgao do portal, para quando as obras de maior urgencia fossem acabadas. Ficou certamente uma porta modesta de servigo, porventura com algum ligeiro ornato. A porta do capitulo, timbrada dos gavioes do bispo egitaniense (1.0 periodo construtivo), bastante ostentosa para o sitio, aliada as expressoes do documento de 1522, convence-nos nao so da veracidade desta hipotese, como tambem de que nao era intengao de D. Manuel (2.0 periodo) nem veio a ser a do Piedoso (no 3.° periodo) substituir, por um portal a maneira do jeronimo de Belem, um ja regular mas que pareceria nao estar a altura dum mosteiro de primeira categoria. Posto que as obras de Santa Cruz tivessem sido iniciadas numa intengao relativamente modesta de reforma de edificios, o gosto de edificar, aliado ao desejo dos mestres de tragas de mostrarem habilidades, como diria fr. Luis de Sousa, foram gradualmente ampliando a ideia ini- cial (1); contudo nao era razoavel que se quisesse substituir um portal regularmente decorado mas nao espaventoso, poucos anos apos a sua construgao. E que esse portal, regularmente decorado, nao existia, prova-o o primeiro documento que se Ihe refere, a carta-relatorio do vedor das obras, Gregorio Lourengo, a D. Joao HI, de 19 de Margo de 1522: E asy, Senhor, tynha sua A. (D. Manuel I) ordenado mandar fazer o portall da porta principal d'este moesteiro, e meter huus arcos de pedra hranca per debaixo doutros velhos de pedra chaboucados nmyto mal feitos que stain no cruzeiro velho desta egreja. E tudo, Senhor, parece necessario se fazer, porque sam cabos da obra e em quanto se nom fazem sempre a obra esta por acabar, e o que sta feito nom parece nada. Por carta de 20 de Maio o rei dava providencias, tendo em conta este relatorio, e recomendava que se acabasse o portall da porta p(ri)mgi- pall do moestfeijro na ordenaga e(m) q(ue) estaua ordenado. (I) Provas da ampliagao do projecto inicial — entre outras que seria longo de mais aqui referir — sao os tumulos reals que deveriam ser mais simples e para isso se tinham feito janelas superiormcntc aos arcos que deveriam ocupar e que vieram a ser tapadas pela obra definitiva, tendo de se abrir outras. 184 O novo rei, ainda scni outros interesses em Santa Cruz (intelccluais ou religiosos) fora dos adminislrativos, queria arrumar o case criizio, em que ja se tinha gasto demasiado dinhciro, completando na ordem que estava anteriormente determinada, scm novas obras e novos alin- damentos. Parece ter sido essa a sua acgao (com ligciras excepgoes como se vai ver) no seu primeiro periodo conslrutivo em Santa Cruz. So, mais tarde, a reforma da vida conventual, o levou a abrir novo periodo, e grandioso, de construgoes. Este portal, que se queria fazer por um modo economico e expedito, ainda nao tinha nada com o portal castilhano, que agora se mostra na sua lepra branca, justaposto a fachada, nem passava dum projecto vago, como aquelas mesmas palavras o indicam. Podemos dizer — em 1522 a fachada de Santa Cruz estava em crise. Tinha acabado ha muito a superintendencia, em Santa Cruz, do arquitecto que a erguera, Boytac; tinha falecido o mestre Marcos Pires que, em 1518, colocara OS corucheus dos contrafortes laterals e a grilanda intermedia com as suas cruzes, isto e, tudo o que fica superiormente a cimalha das gar- gulas (que deve ser talvez obra quase toda de Boytac ou feita na conti- nuagao do seu tragado); estava a surgir a personalidade de Diogo de Castilho(l), o grande arquitecto do quarto periodo construtivo. A resolugao de D. Joao III nao agradou; comegava por nao indicar nada de preciso e nao correspondia as obras ja realizadas; se Marcos Pires (como o mostram os seus portals e os seus tumulos) se acomodaria, e bem, a estreiteza do espago (a avangada central da fachada) ja nao acontecia o mesmo com Castilho que nao so as suas qualidades como tambem as circunstancias de momenlo colocavam em destaque, com Castilho que trabalhara em Belem, que se habituara aos largos portals imaginados. Nao agradou e nada sc pos em obra — esperou-se. Em data nao conhecida. foi entregue a empreitada do portal a Diogo de Castilho e a Nicolau Chanterene; revela-o uma minuta de de alvara que diz: En el Rey mando a vos nicollao leitam... dees a diogo de castilho e a mestre nicolao pedreiros e enipreiteiros do portall do dito moesteiro cem cruzados douro que I he mando dar pera fazerem as ymagees que estam por fazer no dito portall e ysto allem do que ja tem Recebido da sua empreitada... (1) Diogo de Castilho residia em Coimbra desde 1519, como indicam as palavras do seu depoimento (22-Maio-1559) na causa movida pelos criizios contra a Universidade: disc elle test(ennitiha) que he v(er)dade que elle de core(n)ta anos a est a p(ar)te que ha que estaa nest a cidade. Em 1518 ainda trabalhava em Belem. 185 Em que epoca se fez esta obra? Como principio de periodo diremos que ja foi no reinado de D. Joao III; mostram-no a carta-relatorio de 19 de Margo de 1522 e a resposta de 20 de Maio do mesmo ano. A carta de 8 de Janeiro de 1 523 nao se Ihe refere e, nos anos a seguir, ate a reforma de fr. Bras, ha grande silencio documental. Conhecida a personalidade tanto de Nicolau como a de Diogo de Castilho, devem atribuir-se aquele as imagens e a este a orientagao da parte arquitectonica. Reparando para a evolugao artfstica de Diogo, nao so nao podemos colocar o portal depois da reforma de fr. Bras (1 527) mas devemos antecipa-lo e traze-lo para os primeiros anos do reinado do Piedoso, digamos, 1523-25. Devia ter sido a ultima obra do ter- ceiro periodo. Ficou o portal ostentoso como seria o desejo dos artistas e dos conegos regulares, mas para isso sacrificou-se inteiramente a fachada de Boytac; sao duas obras construtivamente diferentes que ficaram unidas. Diogo fez o projecto como se operasse numa parede larga e lisa, transformou a porta noutra geminada e tao larga que ultrapassou OS limites do antigo corpo central, guardou porem a janela. Duas obras ha, sem falar na funda danificagao pela salitragem, que alteraram o portal e que nos trazem dificuldades de reconstituigao: a porta do sec. 18.° e os tres nichos com as imagens, que ficam superior- mente, do sec. 16.°, certamente de Joao de Ruao, como o parentesco estilistico com outras, documentalmente suas, o indica. Como era a porta castilhana e que havia no lugar dos actuals tres nichos superiores? A mais antiga e conhecida descrigao da fachada e a que da D. Nicolao de S. Maria na Chronica, aonde a alterou em parte, escrita em latim (1540) por D. Francisco de Mendanha, traduzida em lin- guagem portuguesa por D. Verfssimo e publicada em 1541, a qual diz: O Portal da Igreja esta entre duas torres mocigas de altura mediana, & de canto talbado, & chamase Portal da Magestade, porque em o fron- tispicio delle esta a Imagem de Deos Padre em figura de releuo de pedra branca, em a forma q comumete se soe pintar, & em redor estao Imagens de algims Patriarchas, & Santos do velho Testamento, & da Virgem gloriosa, que foi principio do nouo ; & todo em perspectiua contrafeito pello natural, esculpido em pedra nniy custosa, & especial. Quiz-se ver desta descrigao, e repctidamente se tem escrito, que a Imagem de Deos Padre estava na pilastra divisoria da porta; ao que 186 se era levado pela sugestao doutros portais e nomeadamente do de Belem com a estatua do Infante. O que diz a tradugao de D. Verissimo e que ela estava em o fron- tispicio do portal. Ao termo frontispicio dao os dicionaristas antigos e modernos o significado de — fachada de edificio, frontaria, obra que remata o portico. Ora, como se estava a descrever a fachada do edificio, a frontaria, o portico, e se tratava duma parte sua, logico era dar aqui, ao vociibulo frontispicio, entre aqueles significados, o mais razoavel, o que aponta Bluteau pelas palavras: Em phrase de Architecto, he o que remata a obra de hu Portico. A imagem nao ficava na parte baixa mas na alta, na fronte. Respostas clara da-no-la um estrangeiro, Frei Jeronimo Roman. Publicou em 1930, no Instituto e em separata, o Doutor Vergilio Correia, Vma Descrigao Quinhentista do Mosteiro de Santa Cruz, tomada dum manuscrito daquele escritor, que deveria ter visitado o convent© nos fins do decenio de 80 do seculo de quinhentos. Estd, escreve fr. Roman, el portal dela Iglesia entre dos Torres fuertes y masissas, de mediana altura, lavradas de piedra muy buena, y esta puerta es dicha dela Magestad, porq en el frontespicio de ella estd Dios Padre con estremada postura y grandega de manera que le encadea mucho el titulo, y estd tan acompanhada esta imagen de muchos Patriar- chas, y algo mas abaxo la Reyna de el Cielo, que no ay mas que desear y ver; porq las figuras tienen tanta perspectiva, y estd todo tan al natural, y con tanta costa que muestra bien el poder del Monasterio: A la entrada tiene una coluna, de manera q siendo solo um arco sobre q se arma la puerta haze dos con aquella division dela coluna, y con ser dos, cada puerta es mui grande, y mui capaz. Neste trecho ha a atender a duas coisas: aparecem sem relagao alguma entre si a Imagem e a coluna que divide a entrada, posto que se apontem, duma e doutra, circunstancias descritivas; a Imagem estava no frontispicio y algo mas abaxo la Reyna de el Cielo. Liminarmente, sem mais exame, temos de por de lado a hipotese da imagem estar na coluna; resta determinar-lhe a situagao verdadeira. Se em 1541 ja havia, no portal, uma escultura da Virgem glo- riosa, e licito, para quem o entenda fazer, duvidar que essa ja fosse a de Ruao, pois que aquela maneira escultorica que mostram as tres dos nichos pode oscilar para um e outro lado daquela data. A escultura da Virgem referida por Roman, no fim do decenio de 80, tem de ser a que agora la se encontra, e esculpida bastantes anos antes daquela data, como o exige o seu estilo. 187 A Imagem de Deus Padre estava colocada em lugar superior ao da Virgem mas 6qual era ele com exactidao? Basta reparar para uma fotografia de Santa Cruz para se ver que nao havia possibilidade de ser outro que nao fosse sobre os tres nichos de Ruao e em frente da janela. Hipotese esta, a primeira vista, inadmis- sivel e contudo e a unica e de facil e logica compreensao; basta pensar que a Imagem podia nao ser do periodo nicolau-castilhano, que, dada a conexao entre ela e a da Virgem que la esta (conexao que se verifica indiscutivelmente na descri^ao de fr. Roman), tinha de ser da mesma epoca dos tres nichos e que, ainda mais e em conclusao, a imagem de Deus Padre, com tiara, de globo na sinistra e abengoando, em meio corpo. e o preenchimento na escultura coimbra dos remates arquitecto- nicos (frontoes circulares e triangulares, aticos e rotulos) de portais e retabulos desde o segundo quarto do seculo 16.'^ ate aos principios do imediato. Dos fins do primeiro quarto temos ja um exemplar, que e optimo, no retabulo de Nicolau, em S. Marcos, onde o Padre Eterno esta aco- tado de dois anjos que Ihe levantam o pluvial. Nao foi todavia esta representa?ao de Nicolau que fez escola, foi a de Ruao, mais simples, sem os anjos. Posto que nos aparega, a figura divina, metida num medalhao aberto, no retabulo de S. Pedro da Se Velha, a forma preferida da pri- meira Renascenga para seu enquadramento foi a do frontao semi- -circular, e os exemplares desta modalidade sao tao numerosos que nem vale a pena fazer citagoes. Depois do meado do seculo, com a procura mais justa das proporgoes dos elementos arquitectonicos, o frontao semi-circular transforma-se no triangular rebaixado e, na coloca- gao da imagem de Deus Padre nos remates, procuram-se varias solugoes. Sobre o nicho da Virgem havia pois um frontao semi-circular, ornado de acroterios, com a imagem que deu, no sec. 16.°, o nome de Magestade ao portal. A largura que teria nao e facil de indicar; ainda nao eram observadas as regras classicas, como o estilo indica; mas nao deveria ultrapassar a linha das pilastras centrais. Do mesmo modo que ignoramos a ocasiao e o motivo da incrus- tagao do anexo dos tres nichos, a razao e o tempo em que o frontao da Imagem desapareceu sao-nos igualmente desconhecidos. Desconhecida nos e ainda a obra castilhana que ficaria no lugar dos nichos; a janela devia ter as mesmas dimensoes ou, quando muito, um declive ligeiramente maior na parte inferior, no esbarro, isto e, o colunelo externo talvez descesse um pouco mais (mas nao parece verem-se mutilagoes que deveriam existir) mas nunca poderia descer 188 ate assentar na faixa que se apoia no extradorso do arco da porta, como o demonstrani duas pequenas misulas que ali se veem e que nao estao na vertical daqueles colunelos. E de esperar que a restaurapao do portal se faga. Ha ainda elementos suficientes, que devem ser repetidos nas partes em que faltam, nao devendo porem ser inventados para ai nem buscados de outras partes da igreja, saidas de outras maos e feitas com outro espirito. As imagens chanterenenses, que ainda existem, as dos dois pares de doutores e as quatro restantes dos dez primitivos profetas. devem ser substituidas por uma copia, nao so porque estao todas elas muti- ladas como tambem, sendo de tao alto merito artistico, seria grandissima lastima que se permitisse que o tempo acabasse de levar as obras mais representativas de mestre Nicolau. E necessario que os nichos, agora vazios, sejam preenchidos; assim se tern feito noutras partes e nao fal- tam escultores Portugueses com capacidade para se acomodarem aquele estilo e criarem obras dignas de si mesmos e de emparelharem com boas reprodugoes de Nicolau. A porta geminada, agora que se viu que nao tinha a imagem cele- bre na coluna divisoria, limita-se a uma invengao simples, ao caso da porta da capela da Universidade aonde se substituiu a coluna dorica que la tinham posto numa reforma, pela manuelina que agora ali se ve. Problema, e grande, e o da ligagao da fachada e do actual pavi- mento da rua. Se andamos, notemos bem, a desentulhar Santa Clara e toda a gente a quer ver livre exteriormente das terras que a afogam, disparate grande, e contra o senso comum, seria enterrar a base da fachada cruzia. Querer solucionar o problema da liga^ao da rua da Sofia com a do Visconde da Luz, e do transito, a custa de Santa Cruz, e improprio de engenheiros e de arquitectos, e e fazer pessimo urbanismo. Este caso e dificil e delicado, e ha-de acontecer que qualquer solugao, mesmo a m.elhor, desagradara ao maior numero. contudo e de esperar que OS conhecimentos dos tecnicos que hao-de intervir deem a melhor. Querer tambem, cada um, como e costume na terra portuguesa, que a sua opiniao individual e sem autoridade prevalega sobre a daqueles que estudaram conscienciosamente as dificuldades e tem competencia. e igualmente disparate. (Saido em opiisculo independente. Coimbra, 1940.) 189 XIV O NARTHEX ROMANICO DA IGREJA DE SANTA CRUZ DE COIMBRA No estudo de reconstituigao da igreja do mosteiro de St.'i Cruz de Coimbra, edificado no segundo quartel do sec. xii, que desde 1934 vimos fazendo, trouxemos a publico, naquele ano, em artigo aparecido no semanario Correio de Coimbra, a organica da nave; em 1940, a da frontaria; e agora apresentamos a do majestoso narthex. RECONSTITUI^AO PELOS RESTOS ARQUITECTONICOS O tra?ado, em piano, das paredes que fechavam o espago do narthex, ponto inicial a esclarecer, e dado com seguranga por aqueles restos. A parte do poente, que no princi'pio nos custava a acreditar que pudesse ir ate a coincidencia com a fachada manuelina, esta indicada, sem sombra de diivida, pelo contraforte romanico integrado no manue- lino da parte do norte e que o mostra numa das faces, naquela que fica voltada para o nascente. As conclusoes, a que nos levou este contraforte, nao as voltaremos agora a dar; ficaram suficientemente explanadas e documentadas em A Frontaria Romduica da Igreja de St^ Cruz de Coimbra (Coimbra, 1940). Para este estudo do narthex, basta dizer que os seus limites ocidentais eram os que hoje sao os da igreja manuelina. As paredes laterals seguiam o mesmo tragado dos muros de flanco da actual igreja, como igualmente o demonstram o mesmo contraforte e a janela romanica aparecida ao lado norte na parte exterior, quando se picou a caliga de revestimento, nas obras de restauro da parte alta da quadra que foi, como demonstramos noutro lugar, a capela manue- lina de S. Joao das Donas e, mais tarde, o geral de St.^ Catarina, na cria^ao dos colegios cruzios, e hoje e, na parte superior, casa dos foles e inferiormente espa^o sem destino ate que as obras de restauragao 191 tirem o pavimento intermedio de madeira e a quadra volte a sua feigao primeira. Essa janela, pelo seu aparelho, siglas e tragado, bem tipica do romd- nico coimbrao, era uma janela exterior como as janelas baixas da Se Velha e como a janela (restos) que Ihe fica ao pe, numa parede posta em esquadria com esta e que era da ultima capela do flanco norte da igreja, a qual nos voltaremos a referir um pouco abaixo. A parede a que pertencia nao podia ter outro fim senao o de parede exterior, visto que a altura a que fica a janela nao permitia que abaixo dele se abrissem arcos divisorios de naves, e ainda porque o contraforte, integrado construtivamente na mesma parede em que esta a janela, conduz a identica conclusao. Localizada a parede norte, para a do sul temos de concluir o mesmo, isto e, que passava pelo espago da actual, porquanto os restos da antiga nave dao a linha do eixo da velha igreja e, referida aqueles e a esta a parede norte. a do sul tem de ser uma situagao geometricamente rigorosa. A divisoria do narthex com a nave romanica e as respectivas rela^Qes com a igreja manuelina sao-nos dadas pelas paredes terminals, ao poente, da serie de capelas romanicas que abriam para a nave. As primeiras capelas que se encontram ao entrar na igreja ocupam o espaQO, em piano, das duas primeiras capelas do sec. xii. Uma e outra, em piso superior, conservam restos de abobadas e paredes romanicas. As suas paredes voltadas a ocidente deixam ver que eram terminais, pois que sendo as fronteiras abertas em arco (veja-se o nosso estudo de reconstituigao) para ligagao miitua das capelas, elas, porem, possuem um arco meramente decorativo e o espago abrangido por ele e cheio por uma parede na qual se abria uma janela para o exterior, como se observa pela parte atras do orgao (sobre a capela de St.^ Anto- nio), na parede que separa a casa dos foles, em que ha os restos da janela a que ja nos referimos, o que se ve ainda do outro lado da igreja pelo arco decorativo e parede. Nem a igreja propriamente dita avangava mais para o Largo de Sansao nem o narthex se podia estender mais em direcgao a capela-mor. Dcmarcado o circuito dos muros procuremos o que os restos arqui- tectonicos podem dizer em relagao a altura e a organica do narthex. Nao era um espa^o baixo em frente a parede em que comegava a nave da igreja; demonstra isso mesmo a altura que ainda hoje con- serva o contraforte incluido no manuelino, e ainda as conclusoes a que ele nos levou, pelo estudo da construgao da fachada manuelina, igual- 492 mente provam que as suas abobadas nao podiam ficar infcriores a da nave da igreja. A colocagao da janela — descoberta na parede lateral, dentro do espago do Geral de St.'^ Catarina, inferior ao nivel da linha media da altura que a parede devia ter, segundo indicam os restos do contraforte — diz que havia de haver nova janela superior e consequentemente um outro piso, isto e, o narthex tinha urn piso superior. A colocagao da janela leva-nos mais longe. Ficando junto ao angulo formado pela parede do narthex e pela lateral da capela roma- nica (de St.o Antao e depois de St." Antonio, como ainda hoje e titulada a sua sucessora espacial manuelina) e estudada esta disposigao em edi- ficios analogos, nomeadamente na Se Velha, e calculado o espago entre ela e o contraforte, vem obrigar-nos a reconhecer que teriam de existir mais duas nesse espago, concluindo-se que o narthex era divicUdo inte- riormente em tres naves transversals {\). O acaso ou a lembranga do arquitecto manuelino ou dum canteiro ou assentador, conservaram novo resto romanico no seu lugar, um capitel. A abobada geral, manuelina, da nova igreja ficou dividida em quatro tramos, dois dos quais correspondem a nave romanica e os outros dois ao antigo narthex, ficando as pilastras (que semelham tronco de coluna composta de toros em movimento helicoidal) do arranque dos leques de nervuras mediais em coincidencia com as antigas colunas de sepa- ragao do narthex e nave, e a parte terminal (a misula) da pilastra manue- lina na altura do capitel romanico. Como dissemos em A Frontaria e, mais em resumo, em Igreja de St.^ Cruz de Coimbra — breve guia historica arqueologiea (Coim- bra, 1940), a renovagao da igreja, no primeiro quartel do sec. xvi, nao foi funda, nao foi levada aos alicerces; destruiu-se a abobada da nave mas conservaram-se as parcdes desta e as laterais do narthex que estavam na continuagao daquela e, sobre essas paredes velhas, foi iangada a abobada; aquilo que nelas fazia saliencia foi cortado, como se vera adiante, mas ncm tudo ficou oculto; coincidindo o arranque medio das nervuras manuelinas com os arcos romanicos divisorios da igreja e do narthex, a nova pilastra interrompida, em que se apoia aquele, veio encontrar na parte inferior, na misula terminal, o capitel da coluna ao norte do arco da parte baixa do coro, e o arquitecto ou o assentador ou o acaso deixaram esse capitel romanico e um palmo de (1) Como se vera do estudo a seguir, eram em niimero de quatro esses tramos. 193 13 coluna a fazerem a terminagao da pilastra interrompida. La esta, a altura do orgao, mostrando dois basiliscos enfrentados. Para clareza, examine-se a parte fronteira que nao tern o impedi- mento do orgao. O capitel fica na altura desta misula terminal da pilastra interrompida. Ve-se igualmente a janela manuelina que e mais um elemento para o confronto. Esse capitel, tao felizmente conservado, conduz-nos a diversas conclusoes. O narthex era aberto para a nave por grandes arcos, isto e, nao era um muro no qual se rasgassem uma ou mais portas; OS arcos eram tres como o exigia a largura do narthex e da nave; deviam ser de igual largura para concordancia com as tres naves travessas indi- cadas pela janela: formavam tres naves longitudinals ; as abobadas infe- riores eram de aresta, as linicas que se coadunavam com tal sistema. RECONSTITUI^UO PELAS INDICA^OES DOCUMENTAIS O contrato de 24 de Janeiro de 1513, entre o bispo prior-mor, D. Pedro Gaviao, e Boytac, foi sempre um enigma de interpretagao e se nos pudemos vir a entende-lo foi por termos reconstituido teorica- mente a igreja romanica; esta abriu-nos o caminho para aquele e ele, por sua vez, aclarou-nos a reconstituigao feita. Documento preciosis- simo, chave mestra para a igreja romanica e para a reforma manuelina, documento que ja nos deu elucidagoes de primeira ordem para a capela de S. Joao das Donas (nao confundir com a capela de S. Joao de St.'^ Cruz, hoje Cafe de St.^ Cruz) e que iremos agora comentar, periodo por periodo, na parte que interessa. Na altura em que se lavrou o documento estava acabada a frontaria da igreja (a excep?ao dos coroamentos) bem como a abobada da nave, a capela paroquial do isento, chamada capela de S. Joao das Donas, a capela-mor, a casa do capitulo e a sacristia; tratava-se de dar arranjo definitivo as partes inferiores da nave, as romanicas que estavam esca- lavradas, porque e conveniente repetir que as obras da igreja manue- lina nao comegaram dos alicerces, mas vieram de cima para baixo, foram obras apressadas, sem piano ordenado. a) — «I(tem) — P(ri)meyram(en)te acabar o dito mestre butaca de ffazer a fresta q(ue) ve(m) sobre a capella dos martires da p(ar)te de ffora.» Este periodo gramatical e o seguinte nao tern um interesse de maior para o caso de momento mas e conveniente toca-los. 194 ^Qual e onde era esta capela dos Martires, isto e, dos Cinco Mar- tires de Marrocos? Iremos apresentar uma solugao, dando-lhe caracter de probabili- dade e nao de certeza porque niio ha elementos para isso. A capela dos Martires anterior as obras manuelinas, como ja dis- semos no estudo de reconstituigao da igreja romanica (em 1934) e repe- timos na breve guia da igreja cruzia (em 1940) era formada por duas capelas laterais do velho edificio, ao lado sul, isto e, pela segunda e ter- ceira a contar do narthex, capela feita no sec. xv pclo prior-mor D. Gomes, da qual existe ainda parte da abobada. Nao se podia tratar desta porque em 1 5 1 3, como se ve do documento em questao, ja estava inutilizada pela janela feita, como se vera mais abaixo, aquela que fica junto a capela-mor. Na obra manuelina, as capelas dos Martires, para onde Joao Alemao fez os retabulos, nao eram capelas propriamente ditas com so altares ao lado do arco cruzeiro, no sitio dos actuais de Nossa Senhora da Concei^ao e das Dores, pelos quais se distribuiam as reliquias, con- tidas numa caixa e nos dois bustos. Nao se podia tratar destas porque as janelas que vinham da parte de fora sobre uma e outra ja estavam acabadas, como igualmente adiante se vai ver. Apresentaremos agora a nossa hipotese. Aquela primeira capela, ao lado direito, entrando na igreja, con- serva todo o arcaboigo romanico e esta dividida em dois pisos; tem exteriormente um eirado com cornija, gargulas e grilhagem manuelinas e, ainda no topo, uma janela igualmente manuelina, que se nao ve da igreja e que fica cortada na sua altura pela actual abobada que faz a capela. Desde o primeiro momento perguntamos que destino se quis dar a tal capela romanica, bem intencionalmente conservada e adaptada nas primeiras obras manuelinas e que tinha a vantagem de contrafortar a abobada da nave, apesar do defeito que produzia a janela que ilumi- nava a igreja, de a cortar em duas partes. Pareceu-nos mais tarde, e continuamos a pensar da mesma forma, que ela foi conservada e modificada com o fim de servir de capela dos Martires, o que nao veio a ter efeito, acontecendo coisa parecida coni a actual de Cristo, no claustro, que foi levantada por Boytac para servir para S. Teotonio (1). (1) Do ultimo estudo sobre Santa Cruz aclara-se todo este flanco da direita da igreja. 195 Nao e inutil voltar a repetir que, lan(;ada a abobada no sec. xvi sobre os muros velhos, nem Boytac nem D. Pedro Gaviao tinham ideias claras do que haviam de fazer inferiormente nem que destino dar aos espa^os das capelas laterals do sec. xii, e ainda que nao ha harmonia entre as obras do primeiro quartel e as do segundo daquele seculo, as manuelinas e as joaninas, as anteriores e as posteriores a reforma de Fr. Bras de Braga, e que em muitos casos remendou-se e remediou-se na pior forma. b) — «E no cruzeyro daquella mesma p(ar)te honde agora estaa a saudaga ffaraa hu(m) arco de pedraria chafrado e come- gara o nager delle honde ora estaa a Represa do amjo e maria, e do dito arco ate gima fara hua parede de dous palmos e meio ou tres de groso daluenaria, e outro tall arco e parede ffaraa da outra p(ar)te cotra sa Joao.» O cruzeiro foi sempre, ate aos liltimos tempos monasticos, o espago da nave, resguardado de grades, em frente das capelas laterals, junto a capela-mor. Eram arcos de duas novas capelas sensivelmente no tamanho dos actuals, no vao dos arcos romanicos, preenchendo-se o espa?o inter- medlo de alvenarla. Nao sabemos se teve execugao. O que ha a notar aqui e a expres- sao «e outro tall arco e parede ffaraa da outra p(ar)te cotra sa Joao», porque, como seguidamente se vai ver, neste contrato indicava-se com clareza o que havia de se fazer na parede sul, ficando asslm dito rela- tlvamente a outra. c) — «I(tem) — desasentara as tres frestas que ora esta feytas no coro da Igreja comtra a Rua de coruche e todo o vao donde elles sayre(m) e asy o vao dos outros arcos velhos que esta ju(n)to das dltas frestas enchera de parede daluenaria des o chao ate os arcos velhos e(m) maneyra que tudo venha a prumo com a parede noua que ve(m) de clma, e destas tres frestas que se desase(n)tarem fara duas frestas debaixo de cada formalete sua.» Estas obras de mudangas de frestas e enchimento de arcos velhos fazia-se no coro que estava colocado nao so para o lado da R. de Coru- che (hoje representada pela R. Visconde da Luz), mas devla ser parte relatlvamente proxlma para se estabelecer relagao com ela. Coro, nao podia ser a capela-mor que, nao so, fora felta inteira- mente de novo e nao havla lugar, pelo tragado dos seus muros laterals, a encontrarem-se arcos velhos, como tambem a sua abobada nao dava 196 lugar a estas mudanc^as numericas dc frestas, e as unicas obras que. neste contrato, ali se mandavam fazer(l) eram de caiagao, ficando sem nada os arcos para as sepulluras dos reis. Coro, nao era ainda uma transcrigao paleografica ou tipografica errada duma abreviatura dc corpo (cor.") de igreja pois que as frestas frestas do espago correspondente ao antigo corpo ja estavam feitas e serviam de modelo neste contrato a estas que se mandavam abrir (2). O I'lnico espago a que se podia ligar tal expressao era a parte alta do narthex cuja existencia ja se verificou pelo exame dos restos arqui- tectonicos. Ao segundo piso, pela sua colocagao, afim dos coros altos ja usados ao tempo, coadunava-lhe bem o titulo de coro. Assim inter- pretado este paragrafo, grande luz vem trazer ao problema do narthex. Correspondendo as tres frestas romanicas inferiores, havia outras tres no andar superior e, porque o espago do narthex tinha sido abran- gido por dois tramos da abobada manuelina, logicamente se man- davam fazer chia.s frestas debai.xo tie cada for male te sua. Destruida a abobada que formava o piso superior do narthex. ficaram lateralmente as colunas integradas na parede e os respectivos arcos formeiros das abobadas de aresta; a parede romanica (3) era de menor espessura que a manuelina que vinha a face externa dos pilares romanicos, e estes arcos formeiros tinham necessariamente de serem cheios, o que se preceituava, deixando-se de especificar a parte que Ihe ficava acima, o que se faria quando se tratasse das dimensocs das fres- tas novas. d) — «As quaes comegarao homde agora estaa a cimaiha velha — s(aber) — ho taluus e sobira ate o formalete como esta as duas frestas que esta ju(n)to com a capella moor.» Alem de se indicar como norma a altura das duas frestas ou janelas ja feitas no antigo corpo da igreja, as voltadas para o sul, davam-se outras indicagoes locais: uma, a parte superior, o arco formeiro ou formalete novo, a outra relativa a parte inferior e que era um elemento antigo, a cimaiha velha: nesta comegava o tahais (4). A cimaiha, aqui, como voltaremos a ver mais abaixo, nao era outra coisa que a linha horizontal e superior do piso da galeria que ficou indicada pelos restos da destruigao deste. Conjugado o esbarro (1) Veja-se mais abaixo a alinea /. (2) Veja-se a alinea / (3) Veja-se a alinea /. (4) Talude, esbarro, parte inclinada inferior da janela. 197 (tahius) das janelas manuelinas com a altura do capitel restante dos arcos de abertura da parte inferior da nave, obtemos e vemos com grande aproximagao a altura do segundo pavimento do narthex. Nestes velhos contratos, muito longe da precisao de termos dos tempos actuals e sem projectos desenhados com rigor, devem-se inter- pretar as suas expressoes com certa largueza. Assim, neste caso, o talude das frestas desceu um pouco abaixo da linha do pavimento alto do narthex. A mesma ausencia de rigor contratual se encontra nos da reforma de Fr. Bras de Braga. e) — «E asy serao oytauadas p(o)r de ffora e p(o)r de dentro somente a verga do meyo honde ha de ir a vidra^a sera de tergo ponto por caso das vidragas que jaa esta feytas.» Esta alinea refere-se exclusivamente as frestas novas e da-nos a razao porque elas se apresentam de desenho diverso das mais pro- ximas da capela-mor. f) — «E por quato as ditas frestas que esta ase(n)tadas esta em parede majs delgada que a de gima elle mestre butaca laurara toda a pedraria que ffor majs necesaria de man(ei)ra que as ditas frestas e(n)chao e parede de cima e seram damchura e lume das duas que ora esta feytas ju(n)to com a capella moor.» A parede das frestas romanicas era mais estreita que aquela parte da nova que Ihe tinham sobreposto a sustentar a abobada manuelina; tinha de se alargar. Com isto mais uma vez se prova a falta de metodo das primeiras obras, as de D. Pedro Gaviao, e a pressa com que se deu comedo a reconstrugao. g) — «E deste mesmo modo e maneira ffara as frestas do dito moest(eiro) que estao da outra p(ar)te comtra sa Joao.» Esta alinea confirma o que deixamos dito no comentario ao da b: as indicagoes contratuais eram dadas relativamente a parede sul, ficando virtualmente dadas a do norte (comtra sa Joao). Por mosteiro e desi- gnada neste contrato, e por varias vezes, a igreja monastica, alem do mosteiro, o que Ihe nao e privativo pois que igualmente se encontra uma ou outra vez na terminologia cruzia do sec. xvi. h) — «I(tem) — cortara o dito mestre butaca a cymalha domde as ditas frestas ha de nager e asy os capites da bobada velha e(m) man(eira) q(ue) tudo seia yguall da parede. E asy cortara os quatro botareoszinhos que esta da p(ar)te de ffora ate o chao.» 198 Contraforte romanico incluido no manuelino Destruido o enchimento arquitectonico do espago do narthex e conservadas as suas paredes laterals, ficaram marcadas nesta as abo- badas do piso alto e com maiores e menores saliencias, como e natural. Superiormente desenhavam a linha horizontal do pavimento (a que o contrato chama cymalha) mas inferiormente cortavam-se, em arcos, na parede, isto e, os seus restos semelhavam triangulos invertidos e com OS lados iguais curvilineos, ficando o seu vertice apoiado nos capiteis das colunas integradas, chamando o contrato, a estes vertices inver- tidos, OS capiteis da bobeba velha. Os quatro botareus externos, cuja destruigao se ordenava, ficavam dois a cada lado, correspondentes aos pilares isolados do interior: OS quais acabam de demonstrar a realidade das naves travessas. i) — «I(tem). O dito mestre butaca guarnecera todo o corpo da fgreja do dito moesteiro e fara duas ju(n)tas da p(a)rte de demtro ate o chao do teor q(ue) ve(m) de cima somente nos arcos honde ha de ser sepultados os Reys no faraa cousa algua.» Tratava-se de caiagao interna e de acabamentos gerais. Nada mais diz o contrato naquilo que respeita ao caso tratado. CONCLUSOES DO EXAME AOS RESTOS E AO DOCUMENTO Pelo exame dos restos arquitectonicos e pelo contrato com Boytac podemos assentar nas conclusoes que vao a seguir e que, se nao nos dao o narthex em todas as miniicias, no-lo revelam nas grandes linhas. Abrangia a largura da nave romanica, ficando as suas paredes na continuagao das daquela, servindo-lhe de corpo avangado, deixando porem de fora as capelas laterals; a frontaria ficava no lugar da actual; ocupava por isso um espago igual ao da nave, quer em comprimento quer em largura. Tinha nos flancos dois contrafortes a cada lado e, nas esquinas da frente, um mais robusto em cada uma, rasgando-se, entre aqueles, seis frestas em cada parede, tres das quais a iluminarem o piso terreo e outras tres o superior. A frontaria organizava-se a maneira da Se Velha, como ja demonstramos noutro estudo. O interior, na parte baixa, distribuia-se em tres naves longitudinals de tres travessas (1), produzindo nove abobadas de aresta, genero de abobadamento que a conjugagao do capitel com a linha do pavimento (I) Quatro como se dira, produzindo doze abobadas de aresta. 200 alto e a colocaQao da janela descoberla nos levain a acciiar. Abna-se esse espago para a nave por tres arcos. Nao sabemos se as abobadas de aresta eram sustcntadas por colunas (como era vulgar nas criptas romanicas) se por meio de pilares com colunas integradas, como parece mais logico acredilar e a organica geral convencer ( 1). O piso alto era distribuido pcla mesma forma, ignorando-se inteira- mente qual fosse o genero de abobadamento, que nao devia ficar mais elevado que o da nave. ORJGENS ARTISTICAS Aparece-nos como uma anomalia este grande narthex, de iguais dimensoes as da nave, de estrutura complexa, parte baixa e parte alta, sem evidente necessidade litiirgica ou monastica. Se, a sua abertura para a nave por tres arcos, nos indica o desejo de ampliar o espago daquela, posto que os pilares reduzissem em muito o espago livre, o pavimento superior, numa epoca em que os monges ainda nao tinham transportado os cadeirais para coros altos, ao nivel do primeiro andar do dormitorio, nao deixa ver a sua fungao. Em 1938, em Novas Hipoteses dcerca da Arquitectura Romdnica de Coimbra, quando esta reconstituigao ainda nao tinha a clareza do momento, ja classificavamos o narthex de torre dcfensiva. Ficava o mosteiro (em 1131, quando se langou a primeira pedra) em terreno baixo, no arrabalde, fora dos muros da cidade, em sitio de hortas (que podemos reconstituir por varios documentos anteriores e posteriores a construgao do edificio) sem situagao dominante e defen- savel, mas exposto a ataques de inimigos, tomando o primeiro lugar, entre os quais os mouros. Cuidados de resguardo do mosteiro aparecem-nos mencionados na Vita Tel/onis Archiediaconi referindo-se as obras deste, na sua volta de Pisa — muruni in circutimi cenobii construendo, turres in excelso erigendo — o que o autor da Primeira Cronica Breve repete e comenta: '<0 castello de leyrea era dos sarraziis, e corriam a terra ataa coimbra. E faziam muyto mal aos christaaos em soyre e em pombal. E o arce- diago dom tello temendo se que assy o podiam fazer aos coonigos religiosos mandou fazer huum muro em caramanchoes a redor da igreja e claustra». (1) Eram sustentadas por fortes colunas, uma das quais se encontrou deslocada. 201 Nao pertencendo ja a estas obras defensivas de D. Telo mas aos ultimos anos do sec. xii e aos primeiros do xiii, nas partes mais anti- gas, ainda todos nos conhecemos o conjunto acastelado que, para o lado de Monterroio, serviu de suporte a torre dos sinos derruida em 1935; obras no seguimento das primeiras de defesa e provocadas certamente pelo assedio, ao mosteiro, das tropas do emir lacub Alman- gor em 1 190, que, se por um lado, levou os regrantes a obterem, dentro dos muros citadinos, a Porta Nova, terrenos para futuro refugio, os deveria ter obrigado a completar as suas defesas, principalmente pas- sivas, com uma fortaleza do tipo de torre de menagem, a derruida. Nao sao para aqui referencias largas as igrejas fortificadas e sua evolugao quer se trate so de torres sineiras fortificadas, de igrejas for- tificadas por disposigao primitiva ou por adaptagao posterior quer de torres-defensivas-porticos, caso este que e o nosso de momento e do qual da numerosos exemplos de varios tipos, Raymond Rey, em Les Vieilles EgUses Fortifiees du Midi de France (1925). Sendo o muro envolvente do mosteiro e as paredes deste, nao envol- vidas, dispostas em maneira acastelada, a entrada da igreja, pela situa- gao e porque era naturalmente o primeiro lugar buscado num ataque, era necessario que tivesse cuidados especiais de resguardo; o narthex assim desenvolvido, corpo macigo e avangado da construgao, apresen- tava-se como torreao imponente, e para o comprovar basta colocarmo- -nos na Praga 8 de Maio e repararmos para a frontaria de Santa Cruz que Ihe representa as dimensoes com pequenissimo excesso de palmos. ^Seria constituida a maneira de fortificagao perfeita? Nao, como o nao eram neste sec. xii a maioria das igrejas militarizadas; era um reduto para o caso dum ataque e operava a maneira de defesa passiva. Como noutras edificagoes, a porta de entrada era um ponto fraco, facil de forgar e de dificil defesa; para ocorrer a isso o grande arquitecto Roberto teve de rasgar mais fundamente a janela superior, dar-lhe maiores dimensoes e transformar a sua parte inferior em plataforma, como vemos na Se Velha e se repetiu decorativamente nas igrejas meno- res do romanico coimbrao. Foram as necessidades defensivas de Santa Cruz que levaram Roberto a criar o tipo de fachada que ainda se mostra perfeito na catedral. Como demonstramos em Novas Hipoteses dcerca da Arqidtectura Romdnica de Coimbra, foi arquitecto de Santa Cruz o arvernes Roberto. Educado na Basse-Auvergnc (representada hoje pelo departa- mento do Puy-de-D6me) ai tomou as nogoes da arte de construir que Ihe deram a sua personalidade artistica e ai aprendeu formulas que, 202 apesar das influencias recebidas na viagem ate ao condado portugalense, haviam de aparecer nas suas obras como motivos fundamentais. Mos- tramos isto com clareza para a Se Veiha, comp!eta-lo-cmos agora rela- tivamente ao narthex de St." Cruz. Aparece-nos naquela regiao francesa, no periodo de arte caroiingia, ja hem organizada, a formula de narthex que e tipica nas igrejas maiores da regiao no sec. xii e que, mais modestamente, se levanta nas menores. Deixaremos de lado a tese de Hans Reinhard e Fels de que estes narthex sao a sobrevivencia da igreja secundaria que em certos templos caroh'ngios precedia a igreja principal, para nos ligarmos a evolu^ao artistica e aspectos com que nos aparece na regiao. Na igreja de Chamalieres (1) permaneceu o narthex do sec. x, que, empregando as palavras dum estudioso frances «offre deja les dispositions essentielles des edifices romans d'Auvergne», e cuja des- crigao faz: «Au rez-de-chaussee trois arcades apareillees, celle du milieu plus large, retombent, aux extremites sur des impostes, au centre sur deux trongons de colonnes antiques en marbre cipolin, par I'intermediaire de deux chapiteaux massifs d'arkose, deformation curieuse de la cor- beille corinthienne: Tun est orne d'une natte d'entrelacs; I'autre, en forme de pyramide renversee, presente sur ses faces de grossiers rin- ceaux, sur son faux tailloir des oves et, a la place des volutes d'angle, de bizarres spirales analogues aux ressorts a boudin des fibules qu'on trouve dans les tombes merovingiennes. De lourds taillords les sur- montent et, comme la colonne antique qui a servi a etablir cette ordon- nance a ete sciee en deux parties inegales, ou a rachete la difference en surperposant les moulures toriques a la base de la plus courte. Au pre- mier etage une tribune s'ouvre sur la nef par une baie en plein cintre et des temoins ont permis aux architects des Monuments Historiques de restaurer les trois petites arcades a jour qui ornaient cette baie et qui retombent sur des chapiteaux a feuillages sommaires, dont les tailloirs sont timbres de la moulure caracteristique, du cartouche des monuments carolingiens. On retrouve la meme mouluration sur plusieurs impostes des piliers barlongs qui soutiennent les arcades de la nef. A I'exterieur de I'eglise, les modillons a enroulements, a profils en tetes de beliers, qui soutiennent la corniche, ont le meme aspect archaique. C'est du x^ siecle que date ce precieux ensemble». Construgao contemporanea desta de Chamalieres e o pavimento terreo da torre que se levanta ao ocidente da igreja de Mozat (ou Mozac). (1) Nao confundir com Chamalieres-sur-Loire, no departamento da Haute- -Loire, igreja romanica do grupo do Puy-en-Velay. 203 Serviu outrora de entrada da igreja e uma escada, situada ao norte, dava acesso a tribuna que se abria para a nave por uma triplice arcada; a entrada actual e ao meio da nave sul por um corpo avangado, roma- nico, de aspecto dos narthex das igrejas menores. A igreja romanica (modificada no sec. xv) justap6s-se ao narthex carolingio tendo os arquitectos feito uma ligagao imperfeita: o muro do fundo da nave norte encosta-se-lhe sem travagao alguma. Sao bem caracteristicas daquela epoca a irregularidade do aparelho, os capiteis das pilastras, ornadas de grosseiras volutas jonicas e os abacos com a ornamentagao que os Franceses chamam cartouche carolingien. O narthex de Notre-Dame-du-Port, em Clermont-Ferrand, apre- senta restos muito anteriores que mostram que a disposigao actual repousa sobre arranjos arquitectonicos pre-romanicos. Sem falar na base de marmore duma coluna e num capitel, cujo calice e formado de molduras sobrepostas, ja ha muito e repetidamente assinaladas, mais recentemente exames cuidadosos do aparelho mostra- ram duas partes em pequeno aparelho, um correcto e cuidadoso, que devia ter procedido da construgao de Santo Avito, e outro, menos cuidado, atribuido a reconstrugao de S. Sigao, e fora, no angulo sudoeste, fiadas baixas de grande aparelho. As caracteristicas do narthex carolingio da Basse-Auvergne eram — um piso terreo de arcadas abertas para a nave com um outro superior com novas arcadas no mesmo genero. Os grandes edificios romanicos desenvolveram-no, adaptando-o a organica mais complicada que o emprego de abobadas, nas naves e nele, exigiam. Nos edificios maiores, do melhor romanico da Basse-Auvergne, o narthex organizava-se pela forma seguinte. Ao res-do-chao uma nave travessa, tendo de comprimento a largura das tres naves da igreja, e abrindo-se para elas por tres arcos com pilares comuns aos da nave; abobadas de aresta cobrem os seus tramos; o arranque dos arcos fica em situagao inferior ao das arcadas divisorias das naves. Superiormente encontra-se uma galeria das mesmas dimensoes, cujas abobadas estao a altura da que cobre a nave central, abrindo-se, para esta, por largas arcadas sobrepostas. Mais acima ficavam as torres, uma a cada lado ou uma unica ao centro. Esta disposigao mais claramente se ve no narthex de Manglieu. O narthex que se encontra mais frequentemente reproduzido e o de Notre-Dame-du-Port, o que se poderia explicar por estar na cidade 204 que e chcf-lieux do deparlamcnlo e mais facilidade haver de o fotogra- far. Essas reprodugoes, nao obstante isso, sao quase sempre feitas utilizando a fotografia dos Monuments Historiques, tomada antes das sabias restauragoes de Ruprich-Robcrt que o reintegrou, por indi- cagoes seguras, obtidas no decurso dos trabalhos, na antiga disposipao, uni pouco diversa da que se apresenta em fotografia. O narthex aparece-nos nas igrejas menores, exactainente como acontece com as capelas radiantes da cabeceira: eram pegas arqui- tectonicas indispensaveis a uma igreja arverneza; toma aquele, as vezes, maiores dimensoes de piano, principalmente em profundidade, que Ihe dao uma importancia superior, proporcionalmente as naves, a que tem nas igrejas maiores. A igreja de Chauriat apresenta urn bom exemplo. Este orgao construtivo que no departamento de Puy-de-D6me se apresenta, desde o tipo rico ao modesto, dentro dum balangamento familiar de linhas e em numero avultado, ou desaparece ou degenera e fica sem parentesco logo que se saia daquele departamento e se passe mesmo para aquelas regioes que se costumam englobar geograficamente na provincia da Auvergne quer se va para o Cantal, se suba o curso do Allier em direcgao ao Velay, quer se tome para o norte. O narthex arvernes fazia parte fundamental e inicial da bagagem artistica de mestre Roberto. Assim como a viagem atraves de Con- ques, Toulouse e Santiago de Compostela, nao fez mais que dar-lhe a nogao do nionumental arquitectonico, ficando-lhe sempre basilar a arquitectura da Basse-Auvergne, como demonstramos, em Novas Hipoteses acerca da Arquitectura romdnica de Coimbra, relativamente a organica da nave, tambem para o narthex aconteceu o mesmo. Em Santa Cruz encontrou-se com uma encomenda nova como tipo: uma forte torre defensiva precedendo a igreja. No seu vocabula- rio artistico havia o narthex; acomodou-o a encomenda, monumen- talizando-o e robustecendo-o. Aqui, em Santa Cruz, mais uma vez encontramos um duplo pensa- mento — o de D. Telo e o de mestre Roberto — como ja demonstramos para a nave; o arcediago, homem pratico mas do clero e um intelectual, dando indicagoes largas sem precisao de formas, Roberto acomodando a elas o seu saber adquirido no pais natal e alargado na viagem. Ficou uma obra robusta e dominadora que as circunstancias do sec. xvi fizeram desaparecer. (Em «Petrus Nonius», vol. iv, fasc. 1-2. Porto, 1942.) 205 XV OS ARCOS ROMANICOS ENCONTRADOS NA IGREJA DE SANTA CRUZ DE COIMBRA Os arcos que apareceram sob o coro alto, a entrada da igreja, sao anteriores a construgao manuelina; pertencem ao templo da epoca afonsina (sec. xii). Tinha-os previsto desde 1942. Publiquei nesse ano, na revista Fetrus Nonius (vol. IV, fasc. 1-2) um estudo iiititulado O Narthex Romanico da Igreja de Santa Cruz de Coimbra, do qual fiz separata em regular numero de exemplares. Oito anos antes escrevera num semanario da cidade (a 1 7 de Novembro de 1934) um artigo A Igreja Romdnica de Santa Cruz, que reuni em 1940 com novo estudo, o qual deu o titulo ao opiisculo, A Front aria Romdnica da Igreja de Santa Cruz de Coimbra. Nesse estudo de 1934 reconstitui com seguranga a parte da nave e da cabeceira. Os achados posteriores so vieram confirmar o que afirmara. Foi-me possivel fazer essa reconstituigao porque me tinham merecido aturado estudo as estruturas da arquitectura romanica euro- peia, analisando reprodugoes de plantas, cortes e algados publicados, fotografias, alem do exame directo das construgoes nacionais. As conclusoes a que cheguei foram que (empregando agora as palavras de resumo que escrevi no volume do Jnventdrio Artistico da Cidade de Coimbra): arquitectonicamente a igreja romanica e um documento de excepcional valor. Posto que nao fosse grande, era de sabia e solida estrutura. Abrangia a sua nave o espago desde a capela-mor ate perto do coro-alto, isto e, dois tramos da abobada actual; tinha nos flancos tres capelas que correspondiam em piano as actuais e que se ligavam mutuamente por grandes arcos, de modo a darem a impressao de naves colaterais: cobriam as capelas abobadas semiciculares, de eixo perpendicular ao da nave. Na testeira da 207 niesma nave abriam-se os arcos da capela-mor e das laterals, estas excedendo ligeiramente a linha das paredes da nave. O estudo de 1940, o da Frontaria, repousava sobre alguns restos romanicos e na analise das diversas fases construtivas da mesma fachada na epoca manuelina. O estudo do Narthex. de 1942, dividi-o ordenadamente por capitulos. Na reconstitui^ao pelos restos orqiiitectonicos guiei-me pelos elementos visiveis, de que publiquei fotografias. Escrevi: o narthex era aberto para a nave por grandes arcos, isto e, nao era um muro no qual se rasgassem uma ou mais portas; os arcos eram tres como exigia a largura do narthex c a restante organica, ja enunciada, que se opunha a que fosse so um ou ainda dois, numero este impossivel com a fachada cuja reconstituigao fizemos e publicamos; deviam ser de igual largura, para concordancia com as tres naves travessas, indi- cadas pela janela; formavam tres naves longitudinals; as abobadas Inferlores eram de aresta, as unlcas que se coadunavam com tal sistema. Ora se eram tres arcos frontals, terminagao das tres naves longi- tudinals, nao eram tres naves travessas, mas quatro, no que me equi- voque!, em virtude de medidas transportadas relativamente a janela externa (de que apresentel fotografia), isto e, ma leltura da fita e por Isso deslocada marcagao interna, alem de certas referencias documen- tais faltas da necessarla exactidao. Dava-me abobadas bastante alon- gadas, o que nao era corrente, posto que houvesse exemplos. Pouco tempo depois obtive uma boa planta, felta no principlo do seculo (e nao a que reproduzl no volume do Inventario, boa tambem mas dos Monumentos); por ela me convene! que os arcos longitudinais eram mais. Quando apareceram sob o coro-alto os tres prlmeiros arcos, Indlquei logo a quem dirigla as obras que terla de haver forgosa- mente ainda um outro arco a seguir ao coro, como procuraram e encontraram. Devo esclarecer que a planta publicada por Haupt, e Incon- sideradamente reproduzlda duas vezes, por Dr. Chico e Dr. Relnaldo, e falsa. O capitulo mais sugestivo de escrever fol o da reconstituigao pelas indiccK^oes documentois. Transcrevl, periodo a periodo, a parte do contrato entre o blspo prlor-mor, D. Pedro Gavlao, e o arqultecto Boitaca (1513), cada um seguido de comentarlos a interpretar a construgao. Dediquei outro, pequeno, as conclusoes do exame aos restos e oo documento c tcrminei pelas origens artisticas. 208 \ Para agora, nesta allura de achados e de intcrprctagoes minhas, se poder compreender a igreja romanica afonsina, do sec. xn, dcvcmos, eu e OS leitores, julgar-nos dentro do templo actual. O comprimcnto da nave limitava-se ao espa(;o cntre o arco da capela-mor e a linha imaginaria que corta a nave a seguir as primciras capelas, as que estao proximas ao coro-alto. isto e, tinha so metade da extensao da actual. A largura era a mesina. Lateralmente apro- fundavam-se tres capelas, ainda hojc dcfinidas. a cada lado, pclas capelas abertas para a mesma nave e pelo espago escuro intcrmedio. que hoje se pode examinar convenientemente, dcpois das ultimas limpezas. Acima de capela da direita, pela parte detras da vidraga da janela manuelina, distingue-se o rcsto do alto arco romanico, arco de entrada dessa primeira capela. Ao lado oposto, oculto pelo orgao, podendo-se visitar, existe o arco da abertura da capela fronteira. Cobria a nave uma larga e robusta abobada semicircular. Cada uma das capelas laterals possuia outra abobada, de igual curva, nao de pedra aparelhada mas de alvenaria, cuja estrutura pude examinar em tempos. Ao passo que a da nave media era longitudinal, isto e. disposta segundo o eixo da mesma, as das capelas tinham o seu eixo perpendicular ao daquela, sendo, por isso, paralelas entrc si. As capelas ligavam-se mutuamente por largos e altos arcos, de modo o conjunto dar a aparencia de tres naves. A cabeceira compunha-se nao so da capela-mor, mais estreita que a actual, como de mais duas, colaterais, baixas, pequenas, com a abertura descentrada e as paredes externas excedendo a linha da nave. O arco acima da entrada da capela-mor, de torn escuro. que as obras puzeram agora a descoberto nao e da epoca romanica mas um mero e mau arco de descarga da epoca manuelina, feito para ficar oculto sob OS rebocos. Nada significava pois e, assim descoberto. da mau efeito estrutural e decorativo. Regressando a parte abaixo das capelas proximas ao coro-alto. voltarei a dizer que dessa linha ate a frontaria era o narthex, fechado para o exterior, aberto para a nave. Reparando nos arcos que foram postos a vista, melhor se compreende. Por um lado ve-se que o mesmo narthex tinha dois pavimentos: um levemcnte abaixo do piso do actual coro, outro superior. Dentro daquele espago havia dois renques de pilares. com colunas integradas; formavam tres naves longitudinais e quatro transversals, todas da mesma altura; cobriam os espagos abobadas de aresta. O espago superior nao teria exactamente a mesma 209 14 divisao; poderia ter uma abobada semelhante a da nave, como insi- nua o arco de grande vao que dava para a igreja, mais baixo que a abobada desta, poderia ser subdividido de certa maneira, que estudei. Este narthex era, como disse, da largura da nave; as capelas desta excediam a linha lateral daquele. Qual o seu fim? O de narthex-torre-defensiva. O mosteiro estava fora das muralhas da cidade e o seu todo necessitava de constituir fortificagao rudimentar, com partes mais robustas. Grande numero de conimbricences ainda se recorda do conjunto militar de diversas epocas que se levantava no sitio da torre dos sinos, e cujos ultimos restos foram demolidos em parte e noutra cobertos de entulhos durante este ultimo inverno. Aqueles arcos da igreja vieram confirmar plenamente os mens estudos. Todavia o seu tom escuro nao da bem com o conjunto manuelino; uma aguada de cal, sem os esconder, tirar-lhes-ia esse mau efeito. Qual fosse a obra manuelina irei expor em resumidas palavras. A abobada da nave tinha dado de si no principio do sec. xvi. Fora disso causa a obra da capela de Santo Andre, mandada fazer no sec. XV pelo prior D. Gomes, para ai terem melhor ambiente as reli- quias dos Santos Martires. Reformou a segunda e a terceira capela, unindo-as; restando destes trabalhos a abobada na parte escura, ao lado direito da igreja. Desceu o nivel da mesma abobada, por forma a poder abrir na parede da nave janelas de luz directa a mesma. O contraforta- mento nao foi suficiente e, como disse, nos principios do sec. xvi ameapava ruina. A obra do principio deste seculo, a manuelina, nao desceu as fundagoes; limitou-se a demolir a abobada velha, consolidar as paredes, rasgar-lhes novas janelas, reduzir a altura das capelas, fechando a abertura das medias, cobrir o todo de nova abobada. Fez mais, dcmoliu o espago interne do narthex podendo dar a nave dupla extensao da antiga. O actual coro alto veio depois; a seguir a reforma monastica de fr. Bras de Braga, por 1530. Nem de longe tinha sido projectado nos primeiros trabalhos quinhentistas. Fica assim dada a sintese historica c de construgao suficiente para se compreender o que esta a vista. 210 Alem da epoca romanica e da manuelina ha a da Renascenga, a qual so episodicamente me tenho rcfcrido nos meus trabalhos. Toda- via, nos estudos de gabinete, as duas ultimas tem-me mcrccido os mesmos cuidados que a primeira. Pouco escrevi do manuelino porque nao quis, tempos atras, avan- gar por campo que considerava do sabedor Dr. Vcrgilio Correia, como tambem da Renascenga, visto que dela se ocupara Dr. Reinaldo dos Santos. Ora OS santos mudaram e com eles os meus votos, posto que me conserve fiel, na devogao e admiragao, aos antigos. Encontro-me na linha coimbra do Dr. Filipe Simoes, do Dr. Tei- xeira de Carvalho, do mestre A. Augusto Gongalves, do Dr. Vergilio Correia; dela me nao posso afastar, que seria traigao. Conhego as obras artisticas, conhego os documentos da Renas- cenga; posso interpretar e seguir a exagese do Dr. Teixeira de Carvalho; passou-me sob os olhos a evolugao de estudo do Dr. Vergilio Correia; segui o trabalho do Dr. Reinaldo dos Santos. Estive, ha anos, para enfeixar os artigos do Dr. Teixeira de Car- valho e precede-los de larga introdugao, ao que so obstaram circuns- tancias de propriedade literaria. Comecei um comentario, periodo a periodo, ao opusculo de D. Verissimo, que miraculosamente ressurgiu o ano transacto: mas nao o continuei. (Em «Diario de Coimbra», 19-1X-1958.) 211 AS CAPELAS DO LADO DIREITO DA IGREJA DE SANTA CRUZ Os liltimos trabalhos de limpeza, consolidaQao e restauro pelos services dos Monumentos Nacionais vieram revelar aspcctos novos e dar solugao a questoes que a tinham incerta. Para clareza, dirigindo-se este artigo a pessoas que habitualmente andam fora destes estudos, irei sistematiza-lo por epocas. Sera a primeira a da construgao do edificio romanico, na primeira metade do sec. xii. A segunda, a constru?ao da capela dos Martires nesse flanco direito do templo, no sec. xv. Seguir-se-a a terceira, a da primeira fase das obras do sec. xvi, da epoca de D. Manuel, sendo prior-mor D. Pedro Gaviao. A ultima, no mesmo sec. xvi e reinado de D. Joao HI, sendo reformador do mosteiro Fr. Bras de Braga. A igreja romanica, dotada duma nave de excepcional largura para o tempo, tinha, para contrabalangar os impulsos da abobada, tres capelas a cada lado, que entre si comunicavam por arcos, dando, no seu conjunto, aspecto de naves colaterais. A seguir ao actual coro-alto, nota-se atraves das vidragas um arco, que era o da entrada dessa primeira capela. A seguir havia mais dois, de que nao ficaram tragos, que pertenciam as duas restantes. Essa primeira capela da direita conserva o espago originario infe- rior e a abobada alta, oculta agora por construgoes intermedias pos- teriores, como se ira dizer. 213 No sec. XV era frade de St.'^ Cruz D. Fr. Gomes, natural de Lisboa, que foi mandado a Roma tratar assuntos da ordem. O romano-pontifice Eugenio IV aproveitou as suas qualidades, nomeando-o visitador da ordem camaldulense e prior do mosteiro de S. Maria de F]oren9a, cargo que teve por dois anos. Regressou em 1436 e trouxe o breve da cruzada contra os mouros que D. Duarte pedira. Vagando o priorado-mor em 1441, o infante D. Pedro que governava, na menoridade de D. Afonso V, pediu aos conegos regran- tes que o elegessem, o que fizeram nos principios de Maio, exercendo o cargo cerca de dezoito anos, e falecendo a 20 de Abril de 1459, segundo o cronista D. Timoteo dos Martires. As reliquias dos Martires de Marrocos estavam no claustro, encer- radas numa caixa de pedra lavrada, hoje no Museu Machado de Castro. Resolveu fazer-lhe uma capela e uma caixa de prata. Foi a trasla- dagao e inaugura^ao da capela a 10 de Dezembro de 1458, que era domingo, como acabo de verificar; data esta preciosa para marcar a evolugao da arquitectura coimbra. Essa capela nao foi mais que a transformagao da segunda e ter- ceira romanicas do flanco da direita, ficando a primeira a servir de atrio, como agora se ve. Ate a estas ultimas obras, a capela media constituia um espago escuro, e a terceira havia sido dotada no sec. xvi duma abobada mais baixa, para harmonia geral com as outras renovadas da nave, a qual OS servigos oficiais desmontaram e, diremos, muito bem. A fim de se executar essa capela da obra de D. Gomes, demo- liram-se as abobadas romanicas da segunda e terceira, deslocou-se para fora, a direita, a parede lateral, para se conseguir maior largura, fechou-se o arco da antiga capela media, dotou-se o espago assim obtido duma abobada gotica, na arquitectura da Batalha, e fez-se-lhe uma aparatosa entrada, que agora os servigos oficiais descobriram, colo- cada no topo, dentro da primeira capela. Essa entrada era — como mais modestamente se ve na gotica lateral de S. Tiago, que e da mesma epoca, — formada por um vao de arcos apontados, com dois colunelos por lado, o pano superior ornado de motivos flamejantes, devendo rematar em friso e cristagem de tipo batalhino. Tinha mais, o que aqui se perdeu, tal como em S. Tiago, o arco rebordado de lambrequins recortados, como renda suspensa. Ora, como alargaram a nova capela para alem da parede romanica e conservaram a da primeira capela, produziu-se aquele aspect© irre- 214 Entrada da capela dos Martires (sec. xv), com a abobada e a nova porta de ligagao das capelas do sec. xvi gular na da entrada, a primeira, que tem causado certa incomprcensao. A alta entrada romanica desta capela conservou-se, a do tal arco que se ve atraves da vidraga da nova janela. Mas essa abobada ficou em nfvel inferior a das antigas, certa- mente para se dar luz directa a grande da nave, por frestas estreitas e deitadas, como se veem em outros lugares. Dai resultou que a larga abobada da nave deixou de ter suficiente apoio e, no reinado de D. Manuel, apresentava fendas. D. Fr. Gomes mandou-se sepultar ai, devendo ser sua a campa de pedra escura, a esquerda, na regiao antiga da capela de S. Andre, a media. A primeira epoca do sec. xvi, a manuelina, manteve a capela dos Martires e melhorou a primeira, a qual Ihe havia ficado a servir de atrio. No entanto, lan^ando-se a nova abobada geral da igreja, o grande arco antigo dessa primeira capela, aquele que ainda se ve atraves da janela nova, teve de ser fechado por parede ate ao solo, na qual se rasgou a mesma janela manuelina, devendo ter havido porta menor abaixo daquela. Abriu-se nova entrada para esta capela-atrio, mas agora na parede da direita, entrando-se, a fronteira pois ao portal quatrocentista, e a dar acesso imediato a rua, visto que o espa^o em frente era livre, fazendo parte do terreiro de St.^ Cruz, pela razao de que ainda se nao havia construido a igreja de S. Joao (hoje o cafe); entrada que ultimamente OS servigos oficiais descobriram e valorizaram. Ao mesmo tempo foi aberta alta janela, que vai tocar na abobada primitiva. E aquela que se menciona no contrato de 24 de Janeiro de 1513, com o arquitecto Boutaca: primeyramente acabar o dito mestre Butaca de ffazer a fresta que rem sobre a cape/la dos martires da parte de ffora. * * Veio a reforma da vida cruzia em 1527, por iniciativa de D. Joao III, sob a dirccgao de Fr. Bras de Braga. Consequentemente abriu-se nova epoca de trabalhos, com profunda alteragao em certas partes do mosteiro, que em outros artigos tenho descrito ou so enunciado. A capela de S. Joao das Donas, ao lado norte, foi suprimida. Para igreja paroquial construiu-se a direita a nova de S. Joao de Santa Cruz, justamente no referido espago livre, em frente daquela entrada manuelina. Todo esse conjunto, quatrocentista e inicial 216 Capela dos Martires. Abobada e entrada do sec. w quinhentista, da capela dos Maitires foi obliterado. Para os mesmos destinaram-se os altares colaterais ao arco-cruzeiro, o que teve aci- dentes varies, acabando as reliquias por passarem ao conjunto do Santuario, reduzidas a categoria das outras. Deu-se solugao aos espagos das antigas capelas. Abriram-se novos arcos no estilo do Renascimento a primeira e a terceira de cada lado, ficando fechados os espagos intermedios, e a cada uma deram-se falsas abobadas em nivel inferior. Nas da direita, as que se tern vindo a considerar, ficou: capela, espago escuro sem destino, capela. Nas da esquerda: capela de St.° Antonio, capela do Sepulcro (atras do pulpito), nova capela. Os servigos dos Monumentos Nacionais, depois das sondagens, executaram uma prudente conservagao e restauro. Na primeira capela descobriram: a esquerda, o arco gotico flame- jante da entrada dos Martires, o de D. Gomes; a direita, a entrada manuelina com a janela superior e a outra grande, ainda restos de pinturas decorativas desse espago quinhentista inicial; conservaram, porem, a falsa abobada da segunda fase do sec. xvi, a do tempo de Fr. Bras de Braga. Para sustentaculo dum angulo desta abobada e dar visibilidade do arco quatrocentista, tiveram de recorrer a certo artificio, com sustentaculo metalico. Em minha opiniao, nada se perderia em supri- mir tal abobada, restaurando-se a alta capela primitiva, completando em parte e no possivel o que apareceu do sec. xv e do manuelino. Descobriram os mesmos servigos que, por cima da abobada da terceira capela estava ainda a antiga, em ligagao com a do espago escuro; suprimiram-na (e muito bem), ficando reunificado o velho espago dos Martires. Por todos estes trabalhos, os servigos dos Monumentos Nacionais merecem reconhecimento e aplausos. (Diario de Coimbra, 2-iii-1979.) 218 XVII A TORRE DE SANTA CRUZ DE COIMBRA Tendo o arcediago D. Telo rcsolvido fundar urn mosteiro, con- seguiu que D. Afonso Heiiriques Ihe doasse, no arrabalde da cidade, para alem da Judiaria, os terrenes conhecidos por Banhos Reals, aos quais juntou por compra certas casas e hortas que eram pertenga do cabido e bispo, entao D. Bernardo. Junto ficava uma pequena capela dedicada a St.'^ Cruz cujo padroado obteve. A primeira pedra foi langada a 28 de Junho de 1131. A igreja devia ter ficado pronta por 1 1 50. Os elementos para reconstruir o mosteiro romanico sao pequenos. A igreja — de uma so nave, ladeada de tres capelas, abobadada cada uma de seu bergo cujo eixo era perpendicular ao daquela, e terminando por tres capelas absidais que se abriam directamente para a nave linica, como esta demonstrado — era de comprimento pouco mais de metade do actual, e dela restam fragmentos importantes. No sitio da Camara Municipal ficava o conventinho das Donas, a que se seguia o claustro, correspondendo ao de agora, de cobertura de madeira. Para alem da casa do capitulo, onde as obras manuelinas construiram a capela de Jesus, ligava-se a portaria, cujo acesso se fazia por uma rua, hoje representada pela das Figueirinhas, que entao passava mais funda e aproximada da igreja, pelos terrenos ocupados actualmente pela sacristia e igreja de S. Joao de St.^ Cruz. O edificio nao era grande, confrontado com o desenvolvimento que teve no seculo xvi, ou com o abacial de Alcobaga. Ao mosteiro, pouco depois da fundagao, foi-lhe anexado um sector afectado ao uso das Donas. Quando no seculo xvi foram extintas, ocupavam o lado voltado para a praga de Sansao, o qual desde o seculo xii, tinha a mesma localizagao. Tivcram uma capela propria, encostada a parede norte da igreja — S. Joao das Donas, transformada depois. A igreja de S. Joao de St.*^ Cruz (hoje um cafe) 219 foi edificada no principio do segundo quartel do seculo xvi, para paroquial do isento, e nao tem relagao com as conegas. Como pela epoca da fundagao do mosteiro os mouros ainda dominavam aquem Tejo e nao devendo estar esquecida a entrada que eles fizeram na cidade, no governo de D. Teresa, a 22 de Junho de 1117, cercou-se o mosteiro de muralhas com suas torres. A «Vita Tellonis Archidiaconi» mostra-o ocupado em «murum in circuitu cenobii construendo, turres in excelso erigendo». Morreu D. Telo a 9 de Setembro de 1 136 com a obra em meio. O grupo de construgoes acasteladas que ruiu agora com a torre dos sinos, era de epoca posterior, do seculo treze, nao erectas ao mesmo tempo, mas construi'das, ficando encostadas entre si, com pequeno intervalo de anos, certamente. Nao ha documento que as date. Eram a sequencia da fortificagao do mosteiro. Serviram por bastante tempo de residencia dos D. Priores-mores, e suficientemente amplas eram para isso. So no seculo xvi os sinos para ali passaram. A primeira torre sineira conhecida era uma que fazia parte das muralhas da cidade, no sitio ocupado pelo Colegio Novo, e designada nos documentos daquele seculo por «t6rre velha dos sinos», mais tarde transformada em capela de S. Nicolau e St.^ Maria Madalena, para onde Joao de Ruao esculpiu uma estatua daquela santa, possivelmente uma toda salitrada que se guarda no Museu. Nao repugna aceita-la como primitiva, tanto mais que no romanico coimbrao as torres sineiras conhecidas (Se-velha, Salvador) ficavam isoladas, acumulando corn a sua fungao propria a de bastiao guerreiro. Por contrato com Boytac, de 1513, mandava-se acabar sobre a sacristia uma torre para o relogio. Em 1540 ja os sinos estavam instalados na torre grande, agora ruida, como sabemos pela descrigao de D. Mendanha, traduzida por D. Verissimo e impressa em 1541, segundo a transcrigao de D. Nicolau: «No fim deste terreiro pera a parte do Oriente esta hua fermosa fonte de agoa, que corre da tromba de hum Elefante em hum tanque de pedra de nova invengao; a qual fonte fica encostada a hua formosa torre de pedra parda de canto talhado tam forte, que tem as paredes de quatorze palmos de largo, e tem de alto cento e vinte. Junto desta torre estao outras duas da mesma altura, e fortaleza, em que estao fermosas casas foradas, e pintadas, que servirao antigamente de apo- sentos dos Priores mores, que tinhao seu eirado na torre maior, com vista pera o Rio Mondego, e seus campos. Agora servem estas casas de celeiros, e estao no alto da torre, onde era eirado os sinos do Mos- 220 1 A torre com a fortificagao medieval teiro. que sao nove, sinco grandes, e quatro meaos, que sao feitos por tal arte, que huns soao como tiples, outros como tenores, outros como contraltos, e outros como contrabaxos, e todos juntos fazem hua suave armonia, quando os repicao, e tocao pellas festas; de maneira, que causao prazer, e alegria, como tambem causao tristeza, e senti- mento quando os dobrao, e correm todos pellos defuntos» (1). Nao sabemos como era aquela construgao. A torre que ate agora se elevava acima das muralhas era obra do seculo dezoito, e e bem pos- sivel que a sua erecgao nao fosse unicamente para se ter um maior espago para os sinos e feita segundo a moda do dia, mas porque tal- vez na obra do seculo xvi se nao tivesse atendido convenientemente a sua seguranga, fortalecendo-se em setecentos as construgoes inte- riores da torre, de modo a ficar uma base cheia e solida. A natureza do solo, com as infiltragoes da agua e a qualidade da pedra coimbra, foram preparando de longe a derrocada. Em 1894 deu-se o primeiro alarme, deixando, como medida de precaugao, de se dobrarem os sinos. A imprensa foi-se fazendo eco do perigo que a torre corria. Nos ultimos tempos esses alarmes intensificaram-se e fizeram-se algumas vistorias. Nada indicava que pudesse vir com tal rapidez o seu fim, estando-se ate na resolu?ao de apear a torre dos sinos que seria recons- truida junto do Santuario, e de restaurar as construgoes fortificadas medievais. A invernia aturada do fim do ano aluiu-a fortemente. Na manha do dia 2 deste mes notou-se que as brechas existentes se tinham tor- ID Nicolau de S. Maria, apesar de fazer a transcrigao em italico, alterou-a, acomodando-a ao seu tempo, o meado do sec. xvii. O exemplar da «Descripgam e debuxo», o linico conhecido e citado no fim do sec. XIX, que se julgava perdido, veio a posse da Newberry Library de Chicago, sendo revelado pelo Prof. Revah («Bol. Bibl. Univ.», vol. xxiii, C.'', 1957), que obteve o microfilme publicado. A impressao esta datada: «Anno domini .M.D.XLI.» Nicolau, no comedo da transcri^ao feita, introduz a fonte do elefante, e foi modificando. A descrigao da torre e, porem, a seguinte, com desdobramento das abrevia- turas: «Em fim deste dormitorio estao tres torres de canto talhado, tao fortes que tern as paredes de quatorze palmos de largo & serao dalto .CXX. Em huma destas torres estam os sinos do moesteyro que sam noue .S. (a saber) cinquo grandes & os outros meaos... » A mudanga da torre deveria ter sido projectada com o comego das obras a seguir a reforma de Fr. Bras, e executada sem demora. Em Setembro de 1534 ja se tinha dado a mudanga; nessa data mandava-se pagar a imagem da Madalena «que esta em sam njcolao na torre qu? foi dossynos». 222 A torre na queda A torre vista do Jardim da Manga nado maiores e que se produziam desabamentos interiores. Durante o dia mais se acentuou o pcrigo, tendo de se tomar medidas urgentes. No dia 3 (de Janeiro de 1935) resolveu-se provocar a sua queda pela acgao da agua. As 17 horas e 17 minutos deu-se a primeira derrocada que levou a parede norte da torre medieval e uma parte da Escola Brotcro; dois minutos e meio depois comegaram a abrir-se grandes fcndas, a torre sineira inc!inou-se sobrc o edificio das Obras 224 Publicas, OS sinos locaram pcla ultima vez na sua agonia, e ela abateu-se na rua, arrastando uma pequena parte da cadeia de Santa Cruz e derruindo a frente das Obras Publicas. Eram 17 horas e 24 minutos. So ficou de pe a construgao medieva voltada para Montarroio que vai ser demolida, por nao oferecer seguran(;a. A populagao de Coimbra assistia, desolada, tendo muita gente lagrimas nos olhos. Hoje e um monte grandioso de escombros. (Em «Renascen9a», ano v, n.<^ 92. Lisboa, 15-1-1935.) 225 XVIH A CAPELA DE SAO PEDRO, EM AVO E muito pequena, de pouca altura e grande simplicidade de uns catorze metros de comprimento. Tem uma so nave e correspondente abside quadrangular, a que nos ultimos anos do seculo passado ou primeiros deste, juntaram, em continuagao de seus muros, uma sacristia, que deu a construgao aquela forma desgraciosa de dois corpos iguais. Na fachada, olhando o poente, abre-se a porta de um so arco em ogiva. A seus lados ha duas frestas pequenitas, a desigual altura do solo, tapadas interiormente. A meio da parede norte esta outra porta, com a verga em semi- circulo, e tao exigua que so tem 1,70 de altura. No topo da nave, ladrilhada de largas pedras de granito e de tecto singelamente apainelado e muito baixo, abre-se o arco triunfal, semicircular, bastante largo e com pilastras curtas, pintado actual- mente a vermelho. No altar muito pobre, simples taboas aplainadas e cobertas gros- seiramente de tinta que esta a cair, a imagem de S. Pedro do seculo xv, da estatuaria medieval coimbra, estatuaria de que tenho encontrado exemplares interessantes. E o humilde apostolo, descalgo como na iconografia medieval se representavam os apostolos, segurando lassamente o evangeliario e a chave, de barba encaracolada e cabelo fazendo coroa. Outrora houve mais dois altares na capela, provavelmente um de cada lado do arco cruzeiro. Fala neles o termo da visita da igreja de Avo no ano de 1744, em que se mandavam retirar. «0 m." R.o Parroco no termo de quinze dias fara demolir OS Altares que estam na dita capp.^, de S. Ildefonso e de N. Snr.^ da Pied.*' vt.o nao estarem ornadoz, nem haver q."' os orne; e a Ima- gem de S. Ildefonso fara collocar no Altar do Glorioso S. Pedro (1)». (1) LivTo das Visitas, fl. 73 v." — Arquivo da Irmandade do SS.™" de Avo. 227 Capela de S. Pedro. Sec. xiv Santo Ildefonso ja se nao encontra na capela. Procurei-o inu- tilmente por Avo e pela vizinha Anseris, e todos a quern me dirigi desconheciam tal imagem. Em 1775 ainda ali se mantinha, porque na visita desse ano, em virtude do estado da capela, eram mandados retirar as santos para a igreja paroquial. Desapareceu porventura quando do maior abandono daquela. A Senhora da Piedade nao seria mais que alguma gravura e por isso o visitador nao faz a seu respeito recomenda^ao nenhuma. Iluminando o altar, ha do lado da Epistola uma pequena fresta horizontal, a unica que agora, depois do tapamento interior das de poente, ilumina a capela; mas abertas as portas, a luz e ar lavado da serra inundam-na; pois se ela e tao pequenina! Ainda do mcsmo lado do altar abre-se a porta para a sacristia, que, como a outra que faz a comunicagao desta com o exterior, foi fcita a imitagao da lateral da nave, e para cuja abertura desmancharam quasi mctade da parede do fundo da abside. Quando da construQao daquela dependencia, altearam todo o corpo da capela cerca de meio metro, o que nitidamente se conhece pela diversidade de silharia. 228 As paredes de granito so cxteriormcnte sao rcvestidas dc silhares em fiadas horizontals irregulares. A ornamentagao e nula. Somentc as arestas das portas e arco triunfal sao chanfradas, sendo os chanfros no arco cruzeiro concaves. As impostas deste e da porta poente tern simples molduras. Nao ha um florido capitel, cachorros ornados (o friso assenta dircctamente sobre as paredes), singelas cruzes a brazona-la, nem ate na empena da frontaria se levanta airosa uma sineira. E rude e austera como convem a uma serranita que vive isolada, fora dos caminhos onde passa o viver quotidiano. A sua historia... Nao sei que maos piedosas a fizeram erguer. Os documentos que pude encontrar sao somente do seculo xvii para ca, desde o comedo da sua ma ventura. O tombo velho da igreja paroquial, que ainda pelos meados do seculo XIX serviu para derimir a questao da sua posse cntre Av6 e Anseris, como mais adiante direi, desapareceu. Do tempo em que ela foi acarinhada pelos povos em volta, das antigas romagens liturgicas, restam somente leves indicagoes nos documentos encontrados, a tradigao no povo, e a visita actual das freguesias de Avo e Pomares, pelas ladai'nhas menores nos tres dias anteriores a quinta-feira da Ascensao, e no dia do Apostolo, em que, no largo onde se fez outrora uma pequenina feira, se baila no p6 e no calor de Junho. LADAJNHAS Dezoito freguezias, no dizer de testemunhas coevas, com eslre- mada dcvogam, como diz um visitador, com a sua cruz e o seu clero, na quinta-feira depois do domingo da Pascoa, vinham terminar aqui a melopeia queixosa das Ladainhas (1 ). (1) As Nolicias das Igrejas do Bispado de Coimbra (Biblioteca Nacional de Lisboa) a fi. 238 do tomo II, dizem: «Ha mais outra capella de Sam Pedro na mesma distancia a que por antigo voto sam obrigados a vir como de prezente vem em romaria dezoito freguezias na primeira quinta fr.-' depois da Paschoa.» No relatorio do vigario de Avo, Caetano de Sousa, para as Memorias Paro- quiais de 1758, vem o mesmo numero. Para nao esfacelar o pouco dessas nolas que se refere a capela de S. Pedro, transcrevo integralmente: «Fora desta villa quasi hum quarto de legoa se venera em sua capella o principe 229 Eram as de ao pe — Avo, Anseris, Pomares, Feira, Alvoco... as de mais longe — Midoes, Seixo do Ervedal... e outras, ate dezoito (1). Nao se sabe quando comeQaram a vir. O mesmo se da com o motivo que levou no mesmo impulso de fe, as dezoito freguezias para a capelita. Como e sabido, as fomes e pestes que por vezes invadiram o nosso pais provocaram da parte do povo, das camaras, das colegiadas, procissoes penitenciais, e nao raro se Ihes juntava o voto de as repetir anualmente. Estas a Sao-Pedro, posto que proximas das Ladainhas maiores ou de S. Marcos, sao-lhes distintas; as de S. Marcos tern o seu dia fixo — 25 de Abril, dia em que ja no seculo iv, em Roma, havia siipli- cas especiais; distintas tambem das Ladainhas menores, que desde o seculo V antecedem a festa da Ascensao. As de S. Pedro realizavam-se na quinta-feira depois do domingo de Pascoa, como o dizem testemunhas, ja atras citadas, que as viram desenrolar, que muito provavelmente tomaram parte nelas. Nao eram, indubitavelmente, por isso, deslocagao do dia daquelas outras, deslocagao impossivel de se admitir se atendermos que eram dezoito freguezias que deveriam ser Concordes nisso; como impossivel de admitir e, que so para satisfazer ao caracter processional e estacional das Rogagoes se viesse de tao longe, como do Seixo do Ervedal, onde perdura a sua lembranga. Tiveram, pois, principio nalgum facto que documentalmente nao sei qual fosse; talvez o da falta de chuvas por algum tempo, como diz a tradigao. A existencia dum voto parece certa. O ja citado vigario de Avo, Caetano de Sousa, em 1758, refere-se-lhe, dizendo que o Prelado dos Apostolos o Senhor Sam Pedro achasse esta fundada em lugar alto, espagoso, que se Ihe descortina largas distancias, he huma das mais antigas e frequentada Romania porque todas as sextas feiras de Mayo vam a ella em proci^am as cruzes desta villa Pomares e Anceris, e por costume antigo, que excede a memoria, na pri- meira quinta feira depois de domingo de Paschoa se ajuntavam naquella capella dezoito freguesias em proci^am, e como sucedessem algumas desordens por virem de duas e tres legoas de distancia o Excelentissimo e Reverendissimo Senhor Bispo Conde deste Bispado commutou-lhe o voto a algumas das mais distantes e em esse dia no mesmo sitio se fas huma pequena feira, franca. » Memoiias Parochiaes de 1758 — T. v, fl. 939. Torre-do-Tombo. Devo a copia destes dois documentos ao distinto arquitecto, sr. Jorge Segurado, a quem apresento os meus agradecimentos. (\) Os scus nomes vao-se perdendo na tradi^ao, donde so pude colher aqueles. 230 •"■/VV "SaffSS^vky* S. Pedro. Sec. xv conimbricense o comutara a algumas das freguesias mais distantes; mas nao acrescenta a causa por que foi feito, nem tao pouco diz quais fossem. Aquela comutagao foi o primeiro passo na decadencia das ladainhas, que a falta de documentos nao nos deixa acompanhar. Em 1775 ha uma nova referenda. O visitador no arcediagado de Seia, a 1 1 de Novembro daquele ano, ordenando reparagoes na capela que estava bastante arruinada, como se vera adiante, diz: «Constame q a capella de Sam Pedro de entre as moutas desta freguesia he munto antiga, e a ella concorrem com estre- mada devogam os povos destas visinhangas e indo muntos delles com sua crus em procigam a dita capella repetidas vezes no ano» (I). Nao obstante aqui haver uma certa confusao com as ladainhas das sextas-feiras de Maio, das freguesias de Avo, Pomares e Anseris, de que ja vamos falar, ve-se que entao ainda iam bastantes, talvez todas as nao dispensadas. A maior desergao deveria comegar depois desta data, em virtude do estado da capela. A parede norte encontrava-se arruinada, bem como o telhado, e nao se podiam la celebrar os actos do culto. Quando viesse o ano de 1815, em que o visitador a interditou (ja o anterior citado, o de 1775, tinha declarado que o ficaria se, pas- sados dois meses, nao fosse composta), bem poucas seriam as freguesias, se ainda algumas eram, que la fossem; e depois deste ano o abandono foi total. Abandono causado nao somente pelo seu estado material, mas ainda mais pela censura imposta. Avo, quere-me parecer, ja ha tempo que nao ia a S. Pedro na quinta-feira da semana pascal. Num livro do arquivo daquela igreja — Titelo das obrigafoes assim do Parroco, Beneficiudos, Thizoiireiro, como dos Parroquianos: e dos uzos, e costumes desta Igr."- e Colegiada da Villa de Avo, escrito em 1817, nao encontrei referenda a estas ladainhas, nao obstante no capitulo Lembranfas dos uzos e costumes desta Igr.^ pelos mezes do (1) Livro das Visitas, fl. 32, v.° — Arquivo da Irmandade do SS.™" de Avo. 232 ano — Maio, falar dos pontes terminals das procissdes das ladainhas menores, sendo um deles S. Pedro, na ter^a-feira, pelos seguintes termos: «Nas Ladainhas gerais vao na scgunda fr/' a Snr.^ do Mosteiro, na terga a S. Pedro, c na quarta ao Altar do Apostolo S. Thiago na capella do Mosteiro, ondc se dizem as preces. «Adverte-se que a capella de S. Pedro esta arruinada, e sus- pen^a, e p.'" este impedimento nesses dias que era costume ir a S. Pedro, se vai a Capella de N. S. dos Anjos». E a linica referencia que encontrei de S. Pedro ser um dos lugares das estagoes das Ladainhas da Ascensao, o que era natural. Apesar de nao ter dados alguns, estou em crer que pelo menos algumas das igrejas filiais da de Avo, tambem ali iriam nesses dias. Alem destas procissoes na semana pascal e a de Avo pelas Ladainhas menores, havia outras, todas as sextas-feiras de Maio, de Avo, Pomares e Anseris, como diz Caetano de Sousa (1) e o livro dos uses e costumes da Colegiada (2). As das duas ultimas freguesias teriam desaparecido com o interdito, e as daquela outra, mudadas tambem para a Senhora dos Anjos, ir-se- -iam com a extingao da Colegiada. Pelo meado daquele seculo, em data que me nao foi possivel precisar, recomp6s-se a capelita e voltaram as cruzes de Avo, Pomares e Anseris com as Ladainhas; mas em lugar de ser no dia tradicional, comegaram a ir no dia das Ladainhas menores, Ladainhas que, como e sabido, sao preceituadas pela liturgia romana. Os visitadores do antigo arcediagado de Seia, na sua linguagem simples, deixaram aqui e alem, pelos termos de visita da igreja de Avo, pequenos fragmentos da litania de pobreza e abandono material que a capelita vem arrastando desde nao sei se pouco depois da sua edificagao. (1) Memorias Parochiaes, loc. cit. (2) «Maio — Todas as sexta-feiras Ladainha com Missa a Capella de S. Pedro.» Seguidamente em letra diversa «achao-se mudadas p.'' a Capella da Snr.'' dos Anjos. » Loc. cit. no texto um pouco anteriormente. 233 O de 1712, Dr. Manuel Moreira Rebelo, Protonotario Apostolico e Provisor do Bispado, e o primeiro a falar-nos dela: «E porque a fabrica he tao hem obrigada a ornar a cap.^ de Sao P^ ordeno se mande em tr° de tres mezes reformar o forro della, e os mordomos mandarao consertar as paredez do corpo da mesma cap.^ e retelhada em forma q nella nao chova, e se consertera o Calix da Igreja pertencente a fabrica naquella parte em q esta cobrado ao q tudo se satisfara sob pena de quatro mil reis» (1). Os mordomos de S. Pedro e o fabricario da capela-mor da igreja, simplesmente nao se importaram com o que ordenara o vistador, o que era muito vulgar entao e ainda hoje. Na visita seguinte, a de 1715. o Dr. Domingos Francisco Nunes, como nada se fizera, diz: «Tambem se ordenou na passada q o forro da capella de S. P.*' a q he obrigada a fabrica da capella mor desta Igr^ se refor- masse ao que se nao deo comprim.^^ antes se me fes queixa estava chovendo no altar e por isso se nao podia dizer missa nelle pello q mando ao R.o fabricario com pena de quatro mil reis q dentro de tres meses mande reparar o dito forro e o telhado p.^ q nao chova nelia» (2). Nao obstante vir, como ja na anterior, a ameaga da multa, a capela continuou como estava. Ora, em 18 de Maio de 1717, o visitador, o mesmo da de 1715, mas entao Prior da Colegiada de S. Tiago de Coimbra, encontrando-a no mesmo estado, escreve no livro das visitas: «Como ja nas passadas fosse mandado se reparase o forro e telhado da cap.^ de S. P.° por estar de man.^^ q no altar se nao pode dizer missa por chover no altar e o Rd.^ fabricario o nao (1) Livro das Visitas da Igreja de Av6, fl. 44 v.°. Um pouco anteriormente, em 1688, o visitador Manuel Scares de Gouveia, vigario de San-Miguel de Coja, deixou-nos uma nota interessante de como se trata- vam algumas capelas. "fescme queixa q. nas Ermidas se malhava e recolhiao as novidades couza mt." indegcnte, e p.'' se stranhar, pello q. mando pena de Ex."'*'" e de qt.°^ reis p.'' a confr.''' do s.""" que nenhua pesoa maihe, neni recolha fructos alguns nos d.°^ lugares q. so forao erigidos p." os fieis nelles orarem, e nao p.'' seuirem de Eiras, e geleiros.» (Liv. cit., fl. 4). (2) Livro das Visitas, 11. 46 v.". 234 mandase fazer estando a seo cargo o ci por condcmnado nos tres mil reis cominados no cap" de passada c sob a mcsma em dobro Ihe md." q dcntro dc trcs meses md/' cumprir o d." cap."»(l). O pobre prior de S. Tiago leu mal, nao viu que cram quatro mil reis o que se dizia nas duas outras visitas. Desta vez presume que se consertou; so em 1774 sc Ihc torna a aludir. Este estado da capela nao era somente produzido pelo desleixo. A igreja paroquial desde alguns anos, andava em reconstrugao. Haviam-se langado derramas pelo povo; os rendimentos proprios dever-se-iam consumir inteiramente; nada restaria para sc aplicar as capelas. Isto e-nos confirmado pelo conego da Se de Coimbra, Joao da Costa Saraiva, que em 1718 louva o zelo dos paroquianos de Avo, e por ver que se tinha gasto muito com ela, dispensando-os de a mandar soalhar logo (2). Nao se torna a falar em S. Pedro senao em 1744. Vinha em visita o Dr. Manuel Rodrigues Teixeira, Vigario de Magas de D. Maria, Comissario do Santo Oficio, Juiz dos Residuos, Chanceler e Vigario Geral. Foi ate a capela, viu bem tudo, ordenou: «Necessita a Capp.-^ do Glorioso AppostoUo Sam Pedro de ser rebocada e cayada, e tambem rebocado o tecto della para milhor rezistir aos temporaiz = de se fazer hum retablo novo em que o mesmo Sancto esteja com decencia = De hum frontal de madr.'^ pintado de hua banda com boas pinturas de festa e pella outra com as proporsionadas para o tp" de Advento e Quaresma, e de ser consertada a vestimenta de setim com estolla e manipullo = de hum cordam de boas linhas = De trez pallas de linho bem engomadas; e tambem necessita o caixam dos ornam^os de ser concertado: a cujas despesas esta obrigada a Fabrica da Capp.-^ mor desta Igr.^; e por isso md." que o Rev." fabricario dela no termo de trez meses por conta da m.^ Fabrica ponha em ex.'^'" o referido mandando-o fazer: e q"o a isto falte: o R" Parroco sob de obd.'i findo o dito tr." de conta com o theor deste cap" a Meza da Justissa Ecclesiastica para contra elle se proceder como pareser justo. O m." R." Parroco no termo de quinze dias fara demolir os Altares que estam na dita capp.'\ de S. Ildefonso e (1) Livro citado, fl. 50. (2) Idem, fl. 582. 235 de N. Snr.''^ da Pied.'' v.^ nao estarem ornadoz, nem haver q.'" OS orne; e a Imagem de S. Ildefonso fara collocar no Altar do Glorioso S. Pedro»(l). Estou em crer que nada do que se ordenou nesta visita, se fez; nem retabulo, nem frontal, nem paramentos (agora nao tern nenhuns). Os altares laterals desapareceriam quando da quasi ruina em que a capela esteve e a camada de tinta que a imagem tem a deforma-Ia, parece-me ser posterior. Foi entao que se comegou a acentuar a sua decadencia. Algumas freguesias, como disse, foram dispensadas de ali irem com as Ladainhas, e outras foram-se dispensando. O proprio edificio arruinava-se. Do seu estado de miseria diz-nos claramente Inacio Jose Gomes da Silva, Prior de Santa Comba Dao. A 1 1 de Novembro de 1775 vai em visita a Avo, e escreve no livro das visitas: «Constame q a capella de S. Pedro de entre as moutas desta freguesia he munto antiga, e a ella concorrem com estremada devogam os pouos destas vesinhangas e indo muntos delles com sua crus em procigam a dita capella repetidas vezes no anno; esta capella acha-se com huma parede arruinada e por consequen- cia necesitada de caibrada e tilhada para nella continuar a antiga deuoeam destes pouos e nella se celebrar o altissimo sacrificio da missa, e como nam tem rendimento algum para a sua rey- deficagam e esta freguesia tanto se enterega em que presista e se nam extinga esta deuogam, e concurso das uezinhas e no que que respeyta ao mais esta suficiente paramentada mando que o R.°° Parocho perpondo primeyro na Ig.^ ao pouo a percizam q ha desta obra a seu consentimento proceda com dois homens bons e de sam conciencia avaliando-se primeyro o importe da dita obra proceda a finta e coando os mesmos repugnem o Juis da Ig.s^ requerera ao D."*" Prouedor desta comarca com theor deste Capitulo que o dito Reuerendo Parocho Ihe dara para que o mesmo retissimo menistro mande proceder a dita finta para que se conserve a deuogam o que se executara dentro em dois meses e coando assim se nam execute fiqve suspensa a mesma capella e o R." Parocho para conduzir os santos da mesma capella para a sva Igr.^ aonde os colocarao em lugar decente o qve tudo espero faga pelo seu zello e coando por falta de telha se nao conclua a (I) Idem, fl. 73 e v.°. 236 obra da dita capella nam he minha intengao q ncste caso fique suspensa contanto que havendo telha nova ella se neste tempo se conclua» (I). Nao sei se o paroco, o juiz da igreja, ou aquele outro retissimo menistro fizeram alguma coisa. mas prcsumo que nao. Presumo que ninguem se importou que, passados os dois meses dados para a compor, ficasse suspensa; nem o paroco tambem teve o incomodo de transpor- lar OS Santos para a igreja. 1815, o interdito... «Porque as Capellas do lugar da Moura, de Sao Pedro, e do Santo Christo situadas nos suburbios desta Villa estao incapa- zes dos seus fins e de se celebrar nellas o augusto Sacrificio da Missa tanto em razao dos estragos dos edeficios como da falta dos Paramentos indispensaveis: ficam suspensas athe que sejao reparadas, e paramentadas, com a devida decencia do qua! jul- gara o Reverendo Arsipreste do Districto» (2). O livro das obrigaQoes e dos usos e costumes, em 1817, da-a ainda como interdita, e alguem, mais tarde, poe-lhe uma nota dizendo o mesmo. Continuou assim por anos. Pelos meados do seculo ultimo, em ano que nao pude determinar, um Jose das Neves, de Anseris, condoido daquele miseria, p6s-se a pedir pelos povoados serranos para a recompor, o que conseguiu. Como ficou dito, voitaram as cruzes de Avo, Pomares e a de Anseris pelas Ladai'nhas menores. E foi de ver como os desta ultima freguesia olhavam para os de Avo e Ihe iam gritando que a capela era deles, muito deles — eles a tinham composto. Ora os de Avo nao gostaram, e va de comegarem rixas, de pegar no S. Pedro e tentar leva-lo para a sua igreja, eles que o tinham abandonado. Como durante alguns anos se repetissem as desordens, as justi^as de Oliveira do Hospital e de Arganil, a que pertenciam respectivamente Avo e Anseris, tiveram de intervir, e a face do tombo velho, agora desa- parecido, declararam ser a capela de Avo. Os daquela outra, muito dignos, voitaram costas, desceram a ladeira. e nunca mais Anseris voltou a S. Pedro. (Em «Alma Nova», vol. in. n."- 25-30. Lisboa, 1925.) (1) Idem, fl. 93 v." e 94. (2) Idem, fl. 1 1 1 . O visitador era o R." Jose da Costa e Silva, prior e arcipreste de Nogueira do Cravo, a que Avo pertencia. Actualmente e sede de Arciprestado. 237 XIX O GOTICO VILA-REALENSE DO SEC XV Nos meses de Agosto dos anos de 1933 e 934 passei a/gum tempo na regiao de Vila Real. Recordo ainda, com miiito agrado, esses dias que me deixaram impressoes duradouras : era o aspect o novo das terras, OS USDS e OS costumes, artes construtivas e de decor a<;ao, o proprio meio humano desde a mats representativa nobreza ao povo trabalhador. Ocupei as manhds frescas e as tardes menos quentes a percorrer, part inch de Mateus, grande parte da regiao ma is proxima da cidadc distrital ; tomei not as e fotografias de certos aspect os, sem cuidados de inventdrio artistico regional e sem busca sistemdtica de especies arqueo- logicas; foram notas gerais de viagem, sem destino a qualqucr estudo preliminarmente escolhido. Os apontamentos que diziam respcito ao sec. XV, aproximados e enfeixados, deram-me dois artigos que sairam numa puhlica<,'ao ilus- trada lisbonense. For infelicidade minha, o redactor principal, que sobre si fomava o maior trabalho da publica^-ao, saira nessa altura para o estrangeiro, e f ant as e t a is foram as gralhas, no primeiro artigo, que me vi obrigado a mandar com o segundo a nota seguinte: «No ultimo artigo, ao lado de gralhas sem importdncia, sairam out r as que ou tor nam o texto confuso ou o alteram bast ante. Nao fazemos aqui a sua correc- gdo por a experiencia nos ter most r ado a inutilidade prdtica de tal coisa.» De nada valcu tal adverfencia: do mesmo importuno modo foi assaltado o segundo. Em 1935 aproveitei de novo as notas e fotografias para uma con- fer encia na Escola Livre das Artes de Desenho, de Coimbra. acompa- nhada de projecgdes, intitulada — O romanico e o gotico em Vila Real e suas cercanias, e que teve lugar no dia 14 de Janeiro. Numa tarde de Maio deste ultimo ano, passei a correr, de automovel, pela regiao, aonde nao tinha volt ado ; recordei os artigos e resolvi publicd- 239 -los de novo, o que fa(;o no irabalho que se segue. Refundi-os depots duma nova leitura dos meus apontamentos. Nada investiguei de novo, reporto-me ao que vi e anotei nos anos de 1933 e 34. ARQUITECTURA MEDIEVAL ANTERIOR AO SEC. XV O estudo da arte medieval que se mc deparou num espago de alguns quilometros quadrados em volta da cidade de Vila Real — pois que dela pouco me afastei e nem toda a concha, que os monies ali formam, percorri — e atraente, nao pela perfeigao plastica das obras mas pelo enigma que cada uma e, em virtude de elementos arcaicos evolucio- nados, de outros do momento artistico dos principais centros do pais, interpretados com rudez pelos artifices populares. Alem deste interesse de evolugao, ha o comovido encanto de se ver aparecer, nos ultimos anos do sec. xiii, uma cidade, se determinar o estado artistico da regiao nos periodos anteriores e, como o novo agregado humano, da meninice do sec. xiv, alcangou a juventude no XV e no xvi a sua plena virilidade, tornando-se centro e motivo de progresso para as terras circunvizinhas. Da epoca romanica, encontrei a igreja paroquial de Vila Marim (1), anterior a fundagao da cidade dionisiaca. la para a torre de Quintela; o seu aspecto, visto de longe, suges- tionou-me e, no regresso, fui aquela povoagao aonde nao demorei mais que meia hora, porque o tempo urgia. E modesta (duma so nave e capela-mor rectangular) mas digna de consideragao, por ser um dos elos iniciais da arquitectura local e porque, apresentando-se as construgoes regionais, ate ao fim do sec. xv com elementos arcaicos ou arcaizantes, ela fica um ponto de referencia. O arco cruzeiro ja nao e o primitivo. Esta muito alargado. As janelas estao igualmente modificadas. As duas portas, a do ocidente e a do sul, sao da maior simplifi- cidade, de arco semi-circular, sem colunas e sem molduras, mas tendo ( 1 ) Nao se confunda esta povoagiio com outra do mesmo distrito, Vila Marim tambem, igualmente sedc de fregiiesia, no concclho de Mesao Frio, a poucos quilo- metros do Rio Douro. 240 I Sao Domingos. Frontaria. Sec. xv 16 as aduelas excepcionalmente compridas, o que e raro na arquitectura portuguesa, e que aqui produz, por si so, certa decoragao. A cornija e adornada de esferas como em caso isolado, aparecera no sec. XV na paroquial de Folhadela. Os cachorros sao de ornatos simples, mas dum tipo que se nao torna a encontrar na regiao, quer nos exemplares do sec. xiv quer nos do xv. Conserva do altar primitivo (atras do retabulo actual) a coluna que sustentava a mesa, com a cavidade ritual, aonde, ha anos, o paroco ao tempo da minha visita, e creio que agora falecido, encontrara uma pequenina caixa de madeira com as reliquias da sagra(;ao. A capela mor esta caiada mas, na parte posterior ao retabulo, notam-se pinturas a tYesco, com santos, do sec. xvi que estao sobre- postas a outras do sec. xv. Pinturas que nao sao caso isolado, como adiante direi, tratando de Folhadela. Nenhum outro exemplar da arquitectura desta epoca se me deparou ; nao deve ser unico na regiao que cerca Vila Real, porque no distrito outros ha; contudo esta construgao deve representar bem a arquitec- tura regional da epoca romanica, indicando, por isso. que a arquitec- tura religiosa era ali da mais humilde do romanico do norte do pais. Do sec. XIV so encontrei duas construgoes: uma religiosa e outra militar: a capela fiinebre de S. Bras, anexa a igreja de S. Dinis, e a torre de Quintela. A primeira e um modesto edificio (que vi abandonado e com o tecto a cair), de arcos tumulares agugados, sem ornatos, a nao ser na cachorrada. Tern a porta ao meio duma das faces laterais, acompanhada interiormente de arcossolios, estando ja o mais proximo da igreja sem tapamento pelo exterior. No fundo rasga-se uma breve fresta, ficando af, do lado de dentro, novo arco fiinebre. A parede, fronteira a porta, cava-se de dois novos arcos, um simples, a servir de armario e outro ja manuelino, policentrico e decorado, com caixa ornada e cheia de letreiros em gotico minusculo. Os cachorros sao lisos uns, outros ornamentados de figuras huma- nas animais e geometricas. Dcve-se notar que nao tem ligagao com OS romanicos de Vila Marim nem com os do seculo imediato; nao ha uma linha continua entre os sees, xii e xv, nao so na forma geometrica do cachorro como tambem na ornamentagao. 242 I t Sao Domingos. AI(;ado sul A cornija e cavada duma rigula que recebe as aguas e as conduz ao poente aonde caem de duas gargulas; processes ja perfeilamente gotico. A torre de Quiiitela aparece — menos danificada do tempo que seria de esperar — em meio de casebres, numa sugestiva paisagem campestre. Pertence a freguesia de Vila Marim. Segue o modelo geral das torres de menagem da epoca. Fica a porta bastante levantada do solo, sem outra abertura (fresta) nesse primeiro andar. Inferiormente ao piano do seu limiar devia haver uma quadra sem luz, sensivelmente da altura dum homem, mas que se encontra entulhada. O andar imediato e abcrto duma estreita fresta cm cada face seteira grandemente alargada no interior, tendo de ter um pilarete medial a robustecer o lintel. No terceiro andar, correspondem, as seteiras inferiores, balcoes com parapeitos ameados. Termina a torre logo acima deste andar com o adarve. ameias e mais quatro balcoes colocados, agora, nos angulos. 243 Interiormente desapareceram as divisoes dos pisos que eram de madeira, servidos por escadas igualmente de madeira. Restam os cachorros de apoio das vigas. A cobertura era de telhas, caindo os beirais sobre os adarves deixando desocupado nestes o espago para servigo, e saindo a agua por gargulas rudimentares. A porta de entrada e semi-circular mas o arco de descarga cujo fecho e superior ao dela, e ja apontado. Interiormente tem um dintel apareliiado, isto e, formado de aduelas cujo piano inferior segue a horizontal. Ruinas dum outro castelo, que devia ter sido magnifico, visitei, mas ja noutro concelho — o castelo de Aguiar. Guardo dele uma imperecivel recordagao pelo cenario em que se levanta, seu aspecto lendario e seus rcstos sugestivos. Nao tratarei dele aqui por nao psrtencer a concha e concelho da cidade distrital. SE DE VILA REAL (s. DaMINGOS) Sera esta a primeira igreja do grupo vila-realense do sec. xv que irei tratar, seguindo-se as outras, nao pela sua ordem cronologica, que para varias e desconhecida, mas pelo interesse artistico que tenham. A igreja, que em 1922, pela criagao do bispado de Vila Real, foi elevada a se e como tal sagrada em 1924, ate a supressao das ordens religiosas, no seculo passado, era igreja do convento dominicano daquela cidade. A epoca e circunstancias da fundagao monacal e concomitan- temente da construgao religiosa sao dadas pelo capitulo xvii, do livro 3." da parte n.'^ da Historia do S. Domingos Particular do Reino e Con- quistas de Portugal, de Cacegas-fr. Luis de Sousa ou melhor, pelos documentos que ai se publicam. A licenga de edificar o mosteiro, concedida por D. Joao I, nos Pagos de Almeirim, a 20 de Novembro de 1 42 1, menciona as deligen- cias havidas para a fundagao. O dominico mestre fr. Francisco (de Lima, segundo Sousa, que o diz filho do convento de Guimaraes), a este ano ja falecido, intercedera junto do rci de Boa Memoria para a consecugao da licenga, agora dada, munindo-se anteriormente com as necessarias letras apostolicas, para o mesmo fim, de Martinho V (1417-31) e do arcebispo bracarense, 244 Arcos e pilar do transeplo a cuja jurisdigao pertencia Vila Real, D. Fernando da Guerra (1416-67), bem como do consent! mento do concelho e homens bons da Vila. Era aqui especialmente necessaria a licenga real, por se tratar duma terra reguenga, e em virtude dos foros e pensoes que os mora- dores tinham de pagar e que impendiam nos chaos em que se havia de levantar o mosteiro. Tinha o rei encarregado, a Martim Afonso, contador na comarca de Tras-os-Montes, e ao referido mestre fr. Francisco, a escolha e demarca^ao do terreno. A carta para tal fim, transcreve-a Sousa, omitindo-lhe a data que grandemente aqui interessava. De acordo com os juizes, vereadores, procurador e homens bons da Vila e ainda do prior do convento vimaranense, D. fr. Vasco de Guimaraes, que para tal fim foi chamado, fez-se a escolha do sitio, que era fora das muralhas e no extreme do arrabalde, em parte do Rossio da Vila, em casas e chaos de Diego Gomes de Azevedo, em chaos de Diego Afonso, Vasco Afonso Moutinho, Vasco Martins Cao, Afonso Martins, irmao do anterior, Vasco Pires, mercador, Maria Salvador, de Alvaro Vasques e de seus criados. Todos estes deram as terras livres e alodiais para os frades, tomando sobre si o pagamento dos direitos reais que nelas incidiam. Mandou o rei, posteriormente, a Pai Rodrigues, escrivao dos coutos da comarca, que fizesse a medigao dos terrenes demarcados; encontrando-se que tinham de comprimento cinquenta bra?as e, de largura, vinte e nove bragas de craveira, de dez palmos cada braga. Do ano seguinte, 1422 (9 de Novembro), transcreve Sousa uma doagao da camara da Vila cedendo um pedago de terreno do rossio publico que estava a porta da adega do primeiro doador atras referido, Diego Gomes de Azevedo, que seriam «oito ou dez passadas, pera fazerem a cerca da Igreja do dito Mosteiro, que se ha de fazer onde esta a dita adega». Concedia ainda mais um anel de agua do cano que vinha do Seixo para a Vila e ainda autorizava que tapassem o caminho publico da Barroca que ia do rossio para a fonte do chao. Esta doagao parece mostrar que ja se tinha procedido a um estudo do terreno, mesmo sumario, para as edificagoes e que as linhas gerais de planta tinham sido gisadas, originando esta remodelagao de terrenos. A ida de religiosos e o inicio dos trabalhos so tiveram lugar em 1424. Segundo Sousa, a 8 de Maio comegaram-se a abrir os alicerces do mosteiro, com ccrta solenidadc, celebrando ali a primeira Missa de comunidadc o prior vimarenense dr. fr. Vasco de Guimaraes. E tal afirmagao baseada num documento camarario de 7 de Julho de 1424 246 que diz: «o qual (Padre Frcy Vasco dc Guimaraens) comcgou em dia de S. Miguel, de Mayo do sobre dito anno, a dizcr missas e horas rezadas, e cantadas, e de pregar: e continuou ate o dia prescnte, nao so elle, mas outros Frades da sua Ordem». Este documcnto e a aceitagao, por parte da Vila, da nova fundagao monastica. Foi feita uma reuniao publica dos juizes, vereadores, procura- dores e homens bons «diante da porta do Mosteiro de S. Domingos», isto e, em frente do modesto cdificio de residencia dos frades, que ai Conjunto interno constituiam uma pessoa moral, ccrtamente nas casus (doc. cit." de 142!) doadas por Diogo Gomes de Azevedo que continham a adega do documento de 1422. Comegada a obra conventual no referido ano de 1424, veio a ter o seu acabamento em data que nao sei; como nao posso afirmar se aquele ano seja com certeza o do principio da igreja pois que, primei- ramente, teriam os frades de preparar alojamento para si e so depois poderiam pensar no grande templo conventual; o culto exercer-se-ia em qualquer local mais ou menos amplo, como exemplos conhecidos demonstram. Contudo aquela data pode ser tomada como muito aproximada da verdadeira. 247 A 7 de Janeiro de 1426, o mesmo prior de Guimaraes, fundador do convento vila-realense, fez doagao, com os seus padres vimara- nenses, de diversos objectos de culto; o que nada diz para a cro- nologia. Ha porem no pilar divisorio da nave e transepto, do lado da Epistola, uma inscrigao digna de reparo. Pareceu-me que a pedra, em que foi gravada, ja all ficara disposta, na altura da erecgao do pilar, para a receber. Sendo o granito, em que esta gravada, muito granuloso e estando muito corroido do tempo, e de leitura dificilima. Posto que so um bom decalque, ou antes, uma reprodugao em gesso poderiam dar a certeza da leitura, parece-me que se pode ler: . ERA . MIL iiii (quatrocentos) : Li (cinquenta e um) : iii (tres) d[e] : FEVEREIRO : SE FINOU . / K[a]tERINA . ALVAREZ . m[u]LHER : Q[UE] FOI . D[e] ALV[AR]0 I (?) / R[0DRIG0]0 . E . LEIXOU . P[ER]A . ESTA . OBR[a] (?) iiiio (qiiatro) . mil . r[eis] E em gotico minusculo, distribuido por tres linhas. Com as prudentes reservas que esta leitura induz, podem-se fazer algumas consideragoes. Deve tratar-se aqui da era do nascimento e nao da hispanica porque, atendendo-se aos documentos e suas datas, seria um ano, se fosse a hispanica, demasiadamente cedo e tratar-se-ia duma pre- visao do futuro excessivamente perspicaz. Nada se opoe e ate a pobreza da fundagao leva a crer que a cons- trugao fora lenta e que se procedia ao levantamento dos pilares quando Catarina Alvares morrera, mandando-se preparar um silhar para o letreiro comemorativo da doagao, e nao porem da sepultura no local, ao que nao obsta que mais tarde, no acabamento da igreja, para all fossem transportados os restos da doadora. As paredes laterais deviam estar ja erguidas bem como a capela- -mor, como o pedia a boa ordem dos trabalhos. Nenhuns outros dados cronologicos colhi na analise do monu- mento ou na investigapao sumaria e rapida das fontes documentais. Foi obra do segundo quartel do sec. xv, entrando mesmo, e talvez bastante, para o terceiro, como o estilo artistico e confirma. A capela-mor teve uma reforma em 1755. Pela supressao das ordens religiosas, ficou sede de freguesia, fazendo-se em Junho de 1835 a transladagao do Santissimo Sacramento. Ardcu a igreja e o convento no dia 21 dc Novembro de 1837, facto que vi comemorado num mediocre quadrinho de pintor popular, na sacristia. 248 Porta principal A planta e do tipo tradicional das nossas igrejas maiores, da idade-media, de cobertura de madeira: tres naves de tres tramos, transepto saliente, duma so capela, a mor, que foi transformada no sec. xviii. O algado da nave comp6e-se de quatro arcos ogivais, sendo o ultimo do nascentc mais levantado, para corresponder ao transepto, com tres frestas, uma em cada linha mediana do arco, que encontrei todas transformadas a excepgao duma, de curva semi-circular. As naves colaterais sao separadas do transepto por outro arco, de nascenga inferior aos divisorios da central. Conservam estas naves as suas frestas rectangulares com moldu- ragao simples, igualmente tres na parede exterior e uma no topo do poente, terminando superiormente, a que pertence a nave do Evangelho, em arco conopial. Os pilares divisorios, de quatro colunas incluidas, tem as arestas cortadas por grande chanfro concavo, ficando a secgao do conjunto com a disposi^ao de quadrado disposto segundo as suas diagonals, na linha austera e popular do gotico europeu, formula que, entre nos, se havia de continuar e afinar no manuelino, como, por exemplo, se pode ver nas ses da Guarda e de Elvas. O basamento mal talhado, procura dar o jogo do gotico erudito: a fusao das molduras das colunas, do pilar e do soco. Os capiteis, na maior parte, sao de nitida inspiragao da Batalha, pela sua folhagem e mesmo ate pela disposigao de rostos humanos nos angulos, que os colocam no tipo das frestas laterais e porta da casa do capitulo daquele outro convento, descontando aqui a dificul- dade de trabalho do granito e a inabilidade do canteiro. Um deles esta assinado: ci(fons)o. Cada arco e ressaltado, com as esquinas chanfradas em caveto. O pilar e robusto demais para o arco e as colunas voltadas para as naves nada suportam. Nao quis o mestre da obra suprimir aqui essas colunas laterais, como em S. Domingos de Guimaraes (sec. xiv) se fez para a da nave central, pareceu-lhe melhor sacrificar as razoes de organica de arco e pilar a harmonia deste, o que um pouco antes igualmente fizera o arquitecto da Graga de Santarem (sees, xiv-xv) e ainda em tempo anterior acontecera com Lega de Bailio (sec. xiv); nem ainda quis diminuir o volume do pilar e unir o nascimento dos arcos contiguos e conjugar aquelas colunas das naves com o arranque dos sobre-arcos, o que ja em Santa Maria dos Olivais, em Tomar 250 Pilar divisorio das naves (sec. xiv) se tizera e o manuelino havia de repetir como, por exeinplo, na mesma cidade de Tomar, em S. Joao Baptista e na igreja do Carmo de Moura, etc. A fachada do poente tern a elevagao costumada nas nossas igrejas goticas de tres naves, sendo estas demarcadas por dois fortes contra- fortes, OS linicos do cdificio. Entre eles, avanga urn corpo arquitectonico, para maior desen- volvimento do portal, que, na parede de testa, se cava de dois nichos quadrangulares, rematados de pequenino frontao com ornamentos geometricos quatrocentistas, onde se abrigam duas rudes esculturas da epoca. Os pes direitos e os arcos da porta tern a mesma molduragao que segue duns a outros. so interrompida, na altura da nascenga destes, por uma imposta corrida, traduzindo-se assim, com rudez, a disposigao do momento artistico. A porta, de tres arcos concentricos, distingue-se do corpo avan- gado que forma brevissimo atrio. No alto, fica a larga abertura circular que outrora devia ter sido preenchida por ornamentagao analoga a da testeira sul do transepto. As comijas dos sub-beirais tern cachorradas de desenho arcaico, e que sao a nota que mais confunde e ilude, dando um caracter da romanismo ao edificio e desorientando os incautos. Sao desador- nadas na nave alta e na baixa do sul (porque a do norte nao as possui) mas, no transepto, decoram-se com os motivos que sao caracteristicos do sec. XV na regiao citadina, encontrando-se, entre eles, dois cachorros em envolvente de piramide invertida, em forma de misula gotica. Alem da porta principal, e de outra aberta posteriormente, a sul, tern, na nave do norte, junto ao transepto, uma outra do tipo da prin- cipal que dava para os edificios conventuais. Destes, ainda estao a vista, no adro, alem duma porta semi-cir- cular, datada de 1571, com um rotulo dominado duma cruz, um portao rectangular coroado do cao simbolico de S. Domingos a que sobre- puzeram uma esfera armilar com uma cruz. No edificio, que ocupa o espago do convento, nao sei se existira algum resto da obra primitiva, porque nao procedi a pesquisas nem o tempo que dispunha se prestava a mais que notas ligeiras. Guarda o interior alguns tumulos. Na parede da nave norte recorta-se um arco sepulcral, a obra tumular mais curiosa da regiao, depois da capela de Mougos. 252 Um cairel sobrio pcnde do arco quebrado, oriiamcnlagao vegetal ondula nas impostas, c uma area macissa, de tampa angular, enche o espago inferior, descansando em quatro leoes, como em Mougos e ficando cheios, os espagos intermedios entre esles, por silhares decorados de motives vegetais. E um exemplar simplificado c rude daquilo que se praticava, no sec. XV, no pais. ■*«,.,. i n - , I «iii l |fe.- .^__ . -.»>••_ Rosacea do topo do transepto Uma inscrigao, em gotico minusculo. gravada na parte superior e na lateral da tampa, comemora os fundadores ocupantes: ESTA : OBRA : Ma[n]D0U : FAZER ; D[iOG]0 a[F0NS]0 / E . SUA MULHER . BRA[n]CA . DY[a]z . E JAZ / SEU FILHO . PERO . DI[a]z . QUE . d[e]US . AJA Na area, em capitais romanas, foi gravado posteriormente, com abreviaturas e letras inclusas: DE lOAO TAVEIRA DE MAG[aLHAES?] E ERD[eIR]OS No mesmo tramo, mas em frente, na outra nave, a sul, esta outro arcossolio tumular que, nao obstante a sua simplicidade, e de notar; 253 de arco, em ogiva, preenchido dum conopial abatido. Combinagao austera e popular, sem decoragao, de elementos do momento artistico. A este seguem-se, para o lado do transepto, mais dois arcos sim- ples, quebrados e chanfrados, um ainda no fim tumular e o outro sem a area sepulcral, por terem aberto, na parede, uma porta para o exterior. Na parede nascente do brago do Evangelho do transepto, mos- trava-se, a data das minhas visitas, metade dum arco abrigando uma tampa mutilada, ornada dum escudo com cinco crescentes. Creio que esta agora restaurado, assim como um outro arco tumular que tinha notado entaipado junto ao altar-mor. Bastantes restos de campas com letreiros, de varias epocas, se encontram deslocadas em varios pontes, como, por exemplo, a for- mar degraus no cruzeiro do adro, na porta lateral, no corredor de liga^ao da igreja com a sacristia. Espaco cemiterial foi o adro coberto que ia do transepto, ao lado da nave sul e envolvia a frontaria, de que restam os cachorros das vigas longitudinals superiores, e como ainda o indicam certas cruzes gravadas perto do solo que, pelo seu tamanho, se nao podem tomar por siglas. Do mobiliario antigo e exemplares dignos de nota, encontrei duas tabuas da primeira metade do sec. xvi, uma representando uma santa que tinha sido transformada em Santa Luzia, pela pintura dos olhos simbolicos nas paginas do livro que sustenta, que estava num altar da nave sul; a outra, com a Senhora e o Menino, que vi numa arrecadapao e que, fiz notar ao paroco e que este mandou trazer para a sacristia. Numa tarde de Maio de 1940, passando de automovel pela regiao, parei na avenida junto a Se. Entrei de fugida, brevissimos minutos. Nada me era possfvel notar com miniicias nem isso tentei. A restau- ragao ia adiantada e o grande ar antigo tinha de novo voltado a velha igreja conventual. A impressao com que fiquei do restauro foi a melhor possivel; ate se tinha feito a substituigao, inteiramente louvavel, do retabulo da capela-mor, que era insignificante, por outro de categoria. CAPELA DE NOSSA SENHORA DE GUADALUPE E, em importancia, a segunda construgao deste seculo xv vila- -realense. Pica junto a povoagao da Ponte, na freguesia de Mougos, na 254 I Arco tumular de Diogo Afonso base dum castro romanizado. Isolada, numa paisagem austera, deixa uma impressao duradoira. Foi dada a conhecer pelo Dr. e Prof. Vergilio Correia nos Monii- mentos c Escultwas (l.'^ ed., Lx.=\ 1919, pg. 125; l^ ed., L.x.^, 1924, pg. 163) e rememorada no estudo da arte do sec. xv, publicado na Historia de Portugal (Barcdos, 1932, vol. iv, cap. v). Duma so nave e capela-mor rectangular. O arco da porta principal e o do cruzeiro sao ogivais, semi-cir- culares os das portas travessas; moldurando-se estas e aquelas por dois breves toros e cavetos continuos, dando o aspecto da finura propria do seculo; sendo ainda valorizados por uma arquivolta, assente em cachorros decorados, em cujo caveto passa uma decoragao vegetal, afim da restante do grupo. O arco da capela-mor e forte e rude, com imposta a terminar OS pes direitos e de chanfradura so no arco. As frestas da nave sao rectangulares (moldurada a aresta exterior dum breve toro) como na Se, ao passo que na frontaria da luz um pequeno oculo (parente proximo, ou antes, um motivo solto da rosa- cea do brago sul do transepto daquela outra igreja) e sobre o cruzeiro ainda outro com o preenchimento em forma de pentalfa. Os modilhoes da cornija tem uma ornamentagao tipica, com o predominio de rostos humanos, os quais sao uma contribuigao valiosa, no seu aspecto modesto, para o estudo da escultura ornamental desta epoca na regiao, tao desprovida de exemplares ricos. Alguns rostos da cachorrada, principalmente na parte sul, estao cercados de breves folhages, certamente da mesma inspiragao das caras angulares dos capiteis das naves da Se, dando-se o mesmo com misulas das arquivoltas das portas. A modilhagem da parede norte e mais arcaizante, com muitas cabegas de animais. Os cachorros da capela-mor nao tem ornatos, e sobre a sua cornija assenta uma balaustrada-plena, de pedras unidas e sem vazados, rema- tadas em triangulo, e dando o aspecto de desmedida folha de serra. Exemplo unico neste grupo e digno de reparo. Oculta o canal de recepgao das aguas do telhado, que se vao langar, por gargulas rudi- mentares, para a testeira. Igual utilizagao da cornija, mas sem balaus- Irada, existia, desde o sec. xiv. em Vila Real, na capela de S. Bras, ja referida. Envolvcu, outrora, a nave, uma alpendrada; dela restam, nas paredes da nave, os caes de suporte das vigas longitudinais, para apoio dos barrotes, c uma facha-lacrimal de protecgao a nascenga do telhado. 256 Capela da Senhora de Guadalupe. Sec. xv '7 L.ugar de enterramento devia ter sido este, da mesma forma como o foi o interior, onde existem inuitas campas com letreiros mas de epocas bastantes posteriores a capela (sees, xvi e xvii), demonstrando que teve um passado de grande movimento religioso, porventura que tivesse sido sede de numerosa confraria. Infelizmente o tecto antigo desapareceu na reforma de 1913; era de tradigao mudejar, restando dele as vigas transversals com ornatos geometricos. Diversas pessoas me falaram nele e o conheceram. Digno de referenda e o coro alto, sobre a entrada. Os barrotes, salientes para a nave, tem as terminagoes costumadas do seculo, as quais uma pintura devia dar figuragao humana ou animal. Como escultura petrea, alem das cachorradas, encontra-se na testeira da capela-mor (em cuja parede ha um brasao eclesiastico) uma cruz e crucifixo, dignos de atengao pelo arcafsmo que manifestam, talvez das mesmas maos do cruzeiro que, na altura da visita do Doutor e Prof. Vergilio Correia, estava perto da capela (aonde ainda resta uma parede de suporte) e que ja fui encontrar transferido para maior distancia, para a jungao da velha estrada, que sobe da ponte dos Piscais, com o caminho da capela. Arrumada a um canto da sacristia, deparei com um S. Tiago, obra igualmente muito secundaria da mesma epoca. Construida num terreno em declive, tem a capela-mor e uma parte da nave meias cavadas na rocha; sendo de notar que esta nao foi revestida de cantaria, tendo-se mesmo feito reservas dela, ao lado do altar, para credencias ou bancadas. Em razao da mesma inclinagao do solo, a porta travessa do sul encontra-se bastante acima do piso da capela, havendo, por esse motive, uma escada interior. Nao encontro, entre os meus apontamentos, nota desenvolvida (que julgo ter tomado) das pinturas e nem ja conservo recordagoes nitidas. Havia restos de retabulos retocadissimos e pessimamente, devendo-se considerar perdidos, alem de deverem ter sido inicial- mente maus. * Da capela de Guadalupe, ao pe da qual encontrei tijolaria romana, segui para o castro contiguo. Depois de percorrido grande espago de muralhas, apareceu-me inesperadamentc, em meio do pinhal, uma pcquena capela, de planta rectangular, obra rude. E a capela da Santa Cabega. 258 Fa.chada da esquerda A breve frontaria desapareceu a porta primitiva, da qual deviam ter sido as aduelas que, numa parede do cubiculo que qucr servir de sacristia, formam um irregular arco gotico. Nao se Ihe pode determinar com rigor a epoca, apesar de se poder colocar com seguranga no periodo gotico regional. O seu aparelho grosseiro atesta claramente que nao saiu das mes- mas maos da capela de Nossa Senhora de Guadalupe. Da linha ferrea, que vai cercando o morro, podem-se ver con- juntamente as duas capelas, notando-se que, apesar de orientadas, o eixo construtivo duma nao so nao e paralelo e da outra mas formam um angulo regular. A orienta^ao era sempre condicionada pela dis- posigao do terreno. MOULDS Fica a igreja paroquial num alto desnudado, dominando largos horizontes; olhando a ocidente a magnifica mancha do Marao e a cidade distrital, ao sul os montes de Lamego e, ao levante, as ondu- lagoes do planalto e, seguindo a direc^ao donde vem o Corgo, as mon- tanhas que correm para o sul da serra do Alvao. Foi profundamente modificada, conservando, da construgao do sec. XV, so as paredes laterals do corpo, tendo ainda a parede norte a cornija com a cachorrada que e desprovida de ornatos. A frontaria foi substituida no sec. xviii, lendo-se a data de 1744, no campanario, agora vazio, que a termina. A segunda metade do seculo passado, pertencem a capela-mor e a torre dos sinos. Da epoca manuelina, mas dum manuelino rude, existem interior- mente dois arcos; o menor, junto a porta travessa da Epistola, ser- vindo, na altura da minha visita, de confessionario; o outro abrigando a pia baptismal que tambem e manuelina e tern as superficies ornamentadas. O interesse artistico nao esta, porem, na igreja mas na capela funebre do abadc Fernao de Brito, que se encosta no flanco norte do edificio. Comunica com ele, lateralmente, por um arco em ogiva, sobrepujado do brasao do fundador, cujo vao foi mais tarde entai- pado em parte, para ser colocada uma porta rectangular, de menor tamanho. Primitivamentc so tinha esta porta, sendo-lhe, mais tarde, aberta outra, rectangular tambem, na testeira do meio-dia. 260 :\' ■m:^m^^^m Tumulo de Fernao de Brito. Ano de 1483 Iluminam a breve quadra tres frestas, duas ao setentriao e uma ao poente. Sao de desenho rectangular, modclo usual no grupo, como se ve em Guadalupe, aonde a aresta exterior se moldura em toro, como igualmente na se. Ao meio, levanta-se o tumulo do fundador, deixando livre pouco espa^o. E um grande sarcofago, recortado de arcarias, assente em cachorros, com a figura do Abade na tampa. Estende-se este, rigidamente, vestido duma loba, tipica do sec. xv, que cai em encanudados iguais e paralelos, segurando na direita um bordao, curvo superiormente, e com a esquerda apertando a funda do breviario; na cabega, um gorro da epoca; dois anjos aos lados amparam o morto; aos pes um cao estendido. 261 Ao redor da tampa (nas partes laterals e na dos pes) o letreiro, em gotico miniisculo, em letras salientes: AQUI . lAZ . FERNA . DE . BRITO . COLA^O . E . PARE[n]tE . DO . S[e]NHOR / DO[m] . PEDRO . DE . MEN[e]SES / CONDE . [DE] VILA . REAL . E . SENHOR . DE . ALMEIDA A area sepulcral e ornada, nos frontais, de edi'culas, divididas por colunelos e terminadas em arcos conopiais rebaixados, aonde se insere um apostolado. Cada apostolo tem o seu nome escrito em portugues, sobre o arco. No facial dos pes, dividido em duas edi'culas, como aquelas, ha S. Miguel pesando as almas e um anjo porta-armas com o brasao do finado, sendo designado na legenda como Rafael, honra insigne que o abade se dava, colocando as suas armas em tao prestigioso arcanjo. No facial da cabeceira sob um arco abatido e acairelado a Virgem ampara o Senhor morto e ladeiam-na duas santas mulheres. Sobre a da direita da Virgem o letreiro indica madanela, encontrando-se mutilado o correspondente a da sua esquerda, que talvez se possa ler s[alom]e: a Virgem nao tem letreiro mas uma estrela ocupa o lugar em que ele devia estar. Quatro leoes, em cada frontal, suportam o tumulo, leoes que, num modo arcaico, apertam nas garras corpos humanos que tentam lutar. Entre os leoes, preenchendo cada espago, fica o emblema do abade: um bau de tampa arciforme, cintado e com larga fechadura, saindo dele um ramo de cada lado, com folhas e frutos, enlagando-se e cer- cando o bau. Os ramos devem querer traduzir silvas com amoras, que a dureza do granito e a impericia do escultor nao permitiram reproduzir claramente. Ha mais dois exemplares da mesma escultura, pesada, grosseira, representando a mesma Virgem da Piedade, como no facial do tumulo; uma grande imagem no altar e outra pequena, num nicho exterior, na parede nascente da capela, no seu vertice. A misula mostra as mesmas folhas batalhianas que se encontram nos capiteis da se e em alguns cachorros e misulas de Guadalupe; o dossel e revestido de ornatos fiamejantes. Os cachorros exteriores tem a ornamentagao usual do grupo, que, para olhos nao experim.cntados, pode parecer romanica, mas que, em grande parte das figuragoes e no modo de tratar a pedra, indicam, com alguma clareza, a epoca. Em complemento da sua obra (valiosa indicagao para o estudo artfstico da capela e da arte da regiao) o abade construtor mandou 262 ••'TJWiTT'm'^^igy^'*"*' -n '■ Pia baptismal. Sec. xvi-in colocar na parte de dentro urn letreiro. Duas pedras unidas, na parede setentrional; a da esquerda com o seu brasao, como na porta para a igreja e no tuniulo (de vermelho, com nove lisonjas de prata, 3, 3 e 3, cada lisonja carregada dum leao de purpura) sem tim- bre; na da direita, sete linhas, em gotico miniisculo: ERA . DO . NASCIME[n]TO . DE . / NOSSO . S[EBH]0R . IHU (JeSll) . X (Christo) . DE . / MIL . nil . lxxx . in (1483) . per / na . de . brito . ABADE . / MA[n]DOU . PERA . SI . FAZ[e]R / ESTA . CAPELA . CO[m] . SUA . / SEPULTURA FOLHADELA Fica esta povoa^ao bastante perto da cidade distrital. Duma nave e capela-mor, com a frontaria, portas e frestas subs- tituidas. Da construgao do sec. xv mostra ainda os sub-beirais (cuja cachorrada ao lado sul esta completa) o arco cruzeiro e a fresta do topo da capela-mor. A cornija, decorada de esferas, e os cachorros, de varies motives, tem o aspecto mais arcaico que encontrei neste grupo do sec. xv e, isolados, se outros elementos tivessem desaparecido, levariam a con- clusoes e a classificagao erradas. O arco cruzeiro, em semi-circulo irregular, levemente levantado, tem so a aresta exterior moldurada por um fino toro e cavetos, na forma usual da regiao, sem capiteis mas com breve imposta. A fresta da capela-mor, igualmente semi-circular, e moldurada da mesma forma. A pia baptismal, do mesmo seculo ou principio ja do imediato, oitavada, de faces concavas, apesar da sua simplicidade, deve ser notada. Como em Vila Marim, detras do retabulo, encontram-se nas paredes, sob a caiagao, que esta levantada num ou noutro sitio, pin- turas do sec. xvi, sobrepostas a outras do seculo anterior. Ao lado da mesa do altar primitive, para a parte do Evangelho, cava-se pequeno armario, que letreiro (ja em letras elzevires), pintado nos restos da armagao da porta com que se fechava, indica o fim eucaristico : [pa]nge lingua gloriosi corporis mis[terium] 264 CONSTANTIM Para oriente de Vila Real, passando Mateus e S. Joao de Arroios, em terreno fertil, encontra-se a povoagao que teve grande importancia na terra de Panoias anteriormente a fundagao dc Vila Real, centre de culto dum S. Frutuoso Gon(^alves, que ali foi paroco em recuada e desconhecida epoca, como ja confessava George Cardoso. A sua igreja e ja do principio do sec. xviii (datada dc 1726). Junto a frontaria, encostada ao lado norte, um pouco saliente da linha ^ ■! --X. ' Cimalha da capela de S. Frutuoso daquela, fica a capelita, certamcnte funebre na origem, dos fins do sec. XV. Julguei, ao principio, que se relacionasse com o culto daqucle santo, mas abandonei logo tal presungao ao ler, na area das reliquias. no altar da Epistola, que a transladagao das mesmas se fizera a 12 de Fevereiro de 1764 (data que igualmente se reproduz numa caixinha de reliquias do mesmo santo, que se guarda no santuario da capela do palacio de Mateus) em virtude de licen?a do Primaz, dada a 20 de Janeiro do mesmo ano, e ainda por vir a saber, por outra fonte, que anteriormente se encontrava sepullado no pavimento da igreja. A capela forma pequenina quadra quer em planta quer em algado. 265 A frontaria e quasi preenchida pela porta, de arco abatido e de esquina chanfrada, e pela fresta superior, pequenissima. Sendo o telhado duma so agua, da aquela um corte superior em diagonal. Do lado livre, o do norte, tern seis modilhoes lisos, sustentando a cimalha, cujo caveto se orna de motives vegetais variados, da mesma familia de outros ja encontrados. A mesma cimalha, sem os cachorros, mas com a mesma ornamen- tagao, continua-se na frontaria, seguindo a linha diagonal do telhado. E esta ornamentagao a melhor do grupo vila-realense, decoragao bem do tempo, posto que tratada com simplicidade como o exigia o granulado forte do granito. Tanto da primeira vez que vi a capela, quando ia para o santuario gentilico e rupestre de Panoias, como na tarde em que fui tomar as fotografias, nao entrei dentro, limitando-me a olhar pelas janelitas abertas na madeira da porta. Pareceu-me ser abobadada de bergo, sem impostas corridas a separa-lo de aprumo das paredes, nas quais se cavam dois arcos, a cada lado seu, que apanham toda a parede. Nao me foi possivel voltar para verificar se se tratava de abobada caiada ou de estuque imitando-a. OUTRAS OBRAS Mais exemplares desta epoca devem existir na regiao. Na propria cidade se encontra na R. Isabel Carvalho, uma entrada de capela particular, de que nao tenho aqui fotografia nem aponta- mento algum. Imediatamente acima do Dispensario Anti-tuberculoso deparei com uma capela, de graciosa fachada do sec. xviii, tendo, a cada lado, dois arcos ogivais, assentes em colunelos, com capiteis de rostos e folhagens no gosto geral do grupo. Disseram-me que esta capela era abrangida nas reformas de urba- nizagao e que o proprietario a ia mudar para uma sua quinta. Deve, possivelmente, pertencer ainda a esta epoca a porta da igreja do lugar de Assento, sede da freguesia de Vale de Nogueiras, ogival, baixa, chanfrada, unico resto de construgao antiga da igreja, e da qual conservo pequena recordagao, porque passei por ela, de fugida, na tarde que gastei com prazer na visita ao vizinho santuario gentilico. 266 CONSIDERAgOES GERAIS Depois de percorrida esta serie de edificios, pouco numerosa, mas suficientcmente variada cm tamanhos c destinos (grandc igreja conventual, capelas meramcnte devocionais, igrcjas do agregado paro- quial, lugares de repouso fiinebre) o seu valor que seria pcqueno, sendo visto isoladamente cada exemplar, aumenta. Nota-se que sao, na verdade, dignos de interesse e estudo e, por sua vez, sugestionam outros agrupamentos como seria o do manuclino e do barroco locals. Capela de S. Brds Chamei gotico ao grupo e com razao, gotico que e produto dos artifices populares, simpiificagao e ruralizagao do gotico erudito do momento do pais, e nao continuagao do velho romanico como, num primeiro exame, se julgaria. A muitos tem desorientado a existencia dos cachorros; e um motivo arcaico que se continuou nao so nesta regiao mas noutras ainda, chegando a entrar pelo manuclino, como se ve no continente e ate numa igreja num dos nossos arquipelagos. As plantas e os alcados, destes edificios cobertos de madeira e em que OS recursos monetarios escasseavam, seguem os tipos simples que o pais, depois das tentativas romanicas, adoptou e continuou nos 267 seculos XIV e XV e que levou ate ao fim do manuelino, quer em elementos quer em proporgoes. O pais — naturalmente pobre, sobre-povoado nas regioes mais ferteis, nunca pode construir com largueza, fora de certos casos em que o favor regio ou urn monacato antigo, favorecido de repetidas e grandes doagoes e ainda acumuladas per largos anos, forneciam recursos excepcionais — teve sempre de condicionar o desejo e necessidade dum edificio grande com as formulas que mais economicas ficassem. A igreja rica era a de tres naves, de cobertura de madeira, com ou sem tran- septo (abandonando a forma romanica da rede de arcos longitudinais e transversos de certas igrejas entre Minho e Mondego) com as capelas da cabeceira geralmente abobadadas; a igreja pobre era formada de dois corpos de piano rectangular em que, quando havia mais desafogo, se abriam portas e frestas decoradas. A regiao vila-realense, de economia modesta, recorreu aos pro- cessos simples. S. Domingos (Se) favoreceu do entusiasmo religiose que, entre ricos e pobres, despertou a fundagao monastica, sem contudo se ter ido a projectos dispendiosos. O mestre devia ter sido escolhido na regiao, pois que na arquitectura local se Integra a igreja e nenhum parentesco tem com a arte de Guimaraes, cidade donde vieram os primeiros frades. Ficou igreja ampla (acomodada a prega^ao, con- forme a tradigao das duas ordens mendicantes) com transepto e so uma capela que nao sei se foi poligonal e abobadada. A cobertura, posto que de madeira, devia ser, num ou noutro caso, de alfarge rico, como breves restos denunciam e assinalei a proposito de Guadalupe. Os muros sao cuidados e com duplo paramento de fiadas de can- taria nos melhores edificios pois que, nos restantes, so exteriormente ha aquele revestimento. S. Domingos (Se) e o unico a ter suportes internes e tres naves e, por isso mesmo, so la se encontram arcos divisorios, ressaltados, de arestas chanfradas em caveto. Os algados sao simples, seguindo os paradigmas costumados. Na Se (S. Domingos) a frontaria valoriza-se, na linha das arcadas internas, com dois contrafortes (os unicos do grupo), entre os quais se inclui o corpo avanQado do portal. A rosacea (mais ou menos decorada) e o ornato usual do espa90 superior dos extremes da nave (fachada e cruzeiro) e dos transeptos. Do alpendre, para abrigo do espago cemiterial que rodeava a Se e Guadalupe (ampliando-se assim o espa9o sepulcral interior, o 268 pavimento da igreja) cxistem os caes para suportc di viga longitudinal, de apoio dos barrotcs, e a facha-Iacrimal de resguardo da nascenpa dos tclhados. Na igreja romanica de Vila Marim nao se encontra ta! dispositive. Na Se (S. Domingos) explica-se a sua existencia por ter pcrtencido a uma das ordens mendicantes, as quais, como c sabido, provocaram entre os fieis uni grande movimento de escoiha das suas igrcjas para jazida, originando por isso graves questoes com o clero secular. Guadalupe devia ter sido grande centro devocional, alem de tais habitos sepulcrais estarem na tradigao do pais. As portas recortam-se em arco agugado, aparecendo ainda o semi-circuhr (laterais de Guadalupe) nao sendo este de influencia romanica mas da arquitectura do momento, o fim do seculo, e ainda em arco abaixado, ja talvez do manuelino (Constantim), arco este que repetidamente ha-de aparecer no principio do sec. xvi, nas cons- trugoes domcsticas da cidade. A excepgao da Se, cm que a porta e mais complicada, como ficou dito, sao simples as dos outros edificios, moldurando-se a aresta externa e, em Guadalupe, valorizando-se com uma arquivolta ornada, que nasce de duas mfsulas. Sao de igual simplicidade as jcmelas, que apresentam a forma rectangular, com a aresta moldurada, a excepgao das janelas altas da nave central de S. Domingos, as quais rematavam em arco semi- -circular segundo se deixava ver duma intacta. forma que igualmente tern a da testeira da capela-mor de Folhadela: em arco conopial e a que, na fachada da Se, ilumina a nave lateral do Evangeiho. O coroamento dos muros faz-se, nas partes horizontais, os bei- rados, por uma cornija modilhonada e. nos declives, por uma simples, com um caveto, geralmente liso, mas com decoragao de folhagem em Constantim, o mesmo acontecendo nos sub-beirais, havendo nestes esferas em Folhadela e folhagens igualmente em Constantim. A agua dos beirados cai directamente no solo, a excep?ao da capela-mor de Guadalupe, aonde rigulas a levam para a testeira e, sobre as cornijas, se levantam rudes anteparos, como ficou dito. A omamentagao distribui-se pelas arquivoltas das portas, caveto das cornijas, capiteis e cachorros. A vegetal, segue, nos capiteis e nos cachorros, formas enrugadas, as vezes envolvendo rostos humanos, de estirpe da Batalha; nas arquivoltas de Guadalupe e nas cornijas de Constantim, alem de folhas simples, dispostas em repetigao, apare- cem ramos a que o pobre canteiro quis dar um langamento natural. Os cachorros, que classifiquei de motivo arcaico, evolucionado na ornamentagao, decoram-se de formas zoo ou antropomorficas e 269 ainda vegetais iiiterpretadas por uma maneira rude, cuja epoca os olhares experimentados veem sem dificuldade. A escultura que tern os seus principals exemplares na capela fiine- bre de Mouqos (tumulo e Senhoras da Piedade) e volumosa, atarra- cada, de fraca e insuficiente marcagao de pianos. O exame dos exemplares encontrados tern de ser cuidadoso porque facilmente levam a enganos; os motivos de confronto estao no tumulo de Fernao de Brito, cujas formas e necessario estudar e decorar. Pelo menos, as capelas-mores decoravam-se neste seculo com largas pinturas, o que igualmente no imediato se continuou a fazer. Os exemplos citados, de Vila Marim e Folhadela, demonstram-no. O periodo de vida destas formas artisticas, que acabam de ser examinadas, vai do segundo quartel do sec. xv aos primeiros anos talvez do sec. xvi. Ha so duas obras datadas: a Se (S. Domingos) que devia ter sido construida no segundo e terceiro quartel do seculo, e a capela do abade Brito de 1483. A capela de Constantim talvez ja seja do principio do sec. xvi como o seu arco insinua. Confrontando a ornamentagao e formas de Guadalupe com estes tres edificios, tem de se colocar no ultimo quartel do seculo e para o seu fim. Folhadela deve ser a mais antiga. Nao tenho aqui elementos suficientes para estudar o aparecimento e expansao do manuelino regional e ver como para ele se deu a pas- sagem da arte do sec. xv. Alem dos exemplos mencionados dos arcos e pia baptismal de Mou^os, do tumulo da capela de S. Bras (aonde me nao foi possivel entrar e ler-lhe a inscri^ao), dos restos do palacio dos marquezes, e arquitectura domiciliaria da cidade, nada mais encontrei. Ficaram por ver e examinar certas igrejas paroquiais e algumas capelas, para as quais me foi chamada a aten^ao, e e possivel que nelas perdesse bons elementos, mas nao foi em estudo geral da arte vila- -realense que ali passei aquelas semanas, nem era possivel, nem me podia passar pela cabega fazer tal coisa, mesmo ate so que fosse o estudo exaustivo do sec. xv. O que deixo escrito e um breve ensaio. Oxala outros, em melho- res condigoes de exame, o ampliem e mesmo renovem. (Saido em opiisculo independente. Coimbra, 1941.) 270 XX A CAPELA DE S. LOURENCO E A DE S. MATEUS Poucos dias ainda ha que, vindo duma das vilas proximas, ocupei o mesmo banco duma das camionetes de carreira de um negociante duma das tribus ciganas da cidade. Conhecia-me porque, quando fiz o inventario artistico da antiga gafaria, estive a examinar a casa em que vive e que foi outrora a capela de S. Lourengo, tendo-me rece- bido entao com muita amabilidade. Perguntou-me agora pela his- toria local, dando eu os esclarecimentos que no momento podia dar. A identificaQao que fiz das duas capelas, e principalmente da segunda, e uma novidade no campo da topografia historica local. Vou repetir o que deixei escrito nos verbetes do Inventario Artis- tico da cidade, que no momento ja se encontra na tipografia mas que ainda demorara a aparecer. S. Lazaro era o nome tradicional da gafaria de Coimbra, a da fundagao do segundo rei portugues. Reformada em dois periodos do seculo XVI, ainda mostra restos muito apreciaveis e forma um con- junto ja raro na Europa. Adiante de Santa Justa, na Rua Figueira da Foz, para o lado de baixo, encontra-se um caminho em rampa, o qual se continua por uma parte plana ate ao rio, hoje ja cortada pela avenida em construgao: e a Azinhaga dos Lazaros. Na terminagao da rampa, a mao esquerda, fica a gafaria com o seu portal manuelino, o patio ladeado dos restos das casas dos gafos, capela de S. Lazaro, cozinhas, enfermarias dos homens e das mulheres, restos das casas dos despachos e ainda mesmo o velho pogo. Toda esta parte nao nos interessa no momento. Pela direita, bem visivel mesmo da rua superior, fica em pri- meiro lugar a capela de S. Lourengo, perpendicular a azinhaga e quase encostada a barreira. A primeira impressao e a duma casa qualquer; mas examinada, nota-se o corpo principal e a capela-mor. Se a porta 271 como tambem as janelas sao simples e incaracteristicas, o arco da capela-mor indica que a construgao, depois de transladada para aqui no seculo xvi, sofreu uma reforma e ampliagao. A seguir a frontaria desta capela de S. Lourengo ha um portao de quinta e um muro ladeando a azinhaga, o qual nada indica ao tran- seunte e contudo engloba a parede lateral da capela de S. Mateus. E necessario entrar o portao (precavendo-se dos caes de guarda) para se ver a porta, de verga direita, e ainda fechada por meio de batentes de madeira, almofadados. Esta capela, mais desnaturada que a ante- rior e tambem mais pequena, ficava paralela a azinhaga e perpendicular a de S. LourenQO. Economicamente eram dependentes de S. Lazaro. O local primitivo nao era o que agora tern; encontravam-se mais aproximadas do rio e deviam estar esparsas; a necessidade da deslo- cagao, provocada pelo assoreamento fluvial, fez que se agrupassem a casa para a qual contribuiam com certas receitas. Elas ai estao tao mortas como o hospital, parecendo que a doenga dos antigos habitantes se pegou aos ediffcios e que vao lentamente morrendo do mesmo mal. A capela de S. Lourengo chegou a ter, no meado do seculo xvii, uma irmandade («hum anivergairo pellos confrades da Hermida de S. LourenQO»), hoje foi necessario que viesse e elaboragao do Inventario Artistico da cidade de Coimbra para que pudesse ser reencontrada com a sua «parceira». Da mesma data encontrei notas do culto em S. Mateus. S. Lourengo evoca uma pagina da historia, pedindo uma outra cronica que vira a seu tempo. (Em «Diario de Coimbra», 2-viii-1946.) 272 XXI OS PAgOS A PAR DE S LOURENCO A historia e feita de lagrimas. Rcmexer no passado e trazer, quase sempre, a luz a recordagao de lutas fraticidas e do agravamento da vida ja miseravel dos pobres, que as dissengoes entre os grandes provocam. Tern a data de 1 de Julho de 1320 o manifesto de D. Dinis recor- dando as demonstragoes de benevolencia que tivera com o filho que haveria de ser D. Afonso IV, e a longa serie dos mais duros agravos que dele recebera e das miserias de caracter de grande numero de pode- rosos do tempo. Foi ele ocasiao da guerra civil estalar, patenteando-se, dum lado, as ruins qualidades daquele que foi cognominado de Bravo e que. ao lado delas, outras de verdadeiro valor haveria de mostrar, do outro, a grandeza de alma dionisiana que, se nao tivesse a desculpa dum coragao paterno, poderia parecer, em certos momentos, fraqueza no governo da nagao e ate mesmo pusilanimidade; mas fraqueza mostrou no ponto final das lutas, sacrificando, as pazes, bons e leais servidores. Pela logica ligagao e natural prosseguimento dos sucessos, tem de se deduzir que D. Afonso tinha a esposa cm Coimbra nao na cidadc que estava por el-rei, mas junto dela. Pelas referencias que ha, nesta guerra, aos pagos junto a S. Lou- ren90 e licito, se nao mesmo ha obriga^ao de julgar que ela ali demoraria. Andava o infante na comarca entre Douro c Minho. Passou a Coimbra e Leiria, entrando nesta por conivencias, e foi fortalecer-se na alcagova de Santarem. D. Dinis, marchando para Leiria, nao passou de Alcobaga, aondc mandou fazer justiga aos culpados da perda daquela cidade, dirigindo-se finalmente a Santarem, que o infante rcceioso abandonou, seguindo este para Torres Novas e depois para Coimbra, aonde se aposentou, certamente nos pa?os de S. Lourengo. 273 i8 Ai Ihe nascera o filho D. Pedro, o futuro justiceiro (8-Abril-1320) pois que so a 31 de Dezembro de 1321 se veio a apoderar da cidade. Seguidamente passou a Montemor-o-Velho, Gaia, Feira, Porto, indo cercar Guimaraes, aonde o foi encontrar a rainha D. Isabel para o congra^ar com o pai. Sabendo Coimbra cercada por D. Dinis, deixou Guimaraes e correu em seu socorro. D. Dinis tinha passado o Mondego (em 1 ou 6 de Margo de 1322) e aposentara-se nos pagos de S. Lourengo, deixados pela nora logo que o infante havia tornado a cidade («requievit in palatio quod est erga Sanctum Laurentium»), e assolava os arredores: «E derribaron as casas e filharom muito pam e muito vinho e muito azeite, e danaram o em todo o campo que era semeado de pam novo. E cortarom todos OS olivaes tambem d'aaquem como d'aalem». O infante com o irmao, o conde D. Pedro, o das Linhagens, mor- domo de D. Brites, alojou-se no mosteiro de S. Paulo de Frades. A rainha D. Isabel, que viera no encalgo do filho, iniciando par- lamenta?oes, conseguiu que se assentasse em que o infante viesse para a cidade (aonde tinha a esposa) e D. Dinis fosse para alem rio, o que este fez, a uma terga (16-Mar?o), indo fixar-se em S. Martinho do Bispo, permanecendo ai ate sabado (20) em que resolveu tomar a forga a cidade. Deu-se um reencontro na ponte, «e ouve hi gram pelleja: e dom Martim Gomgallvez Leytooes deitaram Gongallo Pirez Ribeiro da ponte a fundo. E nom pode elrrey entrar e foy pousar a sam Frangisco». Passou o infante ao mosteiro de Santa Cruz, ficando frente a frente OS competidores. Conseguiu a rainha e os que a auxiliavam nas composigoes que o rei fosse para Leiria e o infante para Pombal. Resolveu-se a questao por concordia feita entre os procuradores, que nao seguirei em pormenores ja que, na parte que interessa ao caso dos pagos, fui tao conciso. Onde ficavam os pagos de S. Lourengo? Ja o disse no artigo A capela de S. Louren(;o e a de S. Mateus, no mesmo artigo em que prometi este. Passando-se alem da igreja de Santa Justa, a curva da estrada do Porto, encontra-se a esquerda a azinhaga dos Lazaros. Descida a rampa que encosta ao paredao da estrada, vemos em frente uma casa, a primeira vista sem caracter, cujo eixo e paralelo a mesma estrada 274 superior, aonde habitam algumas tamilias de tribus ciganas, e aonde se dcu a dcsordem memoravel com a morte de alguns. E a cape/a de S. Loiiren^'o. No seguimento desse lado, ha casas, com um portao de permeio, que sc dispoem em scntido perpendicular ao de S. Lou- ren?o; parte delas sao restos da capcla dc S. Matcus. Dependiam economicamente do hospital de S. La/.aro, a gafaria, cujos restos ainda se levantam do outro lado da azinhaga, com o portao manuelino da entrada. A situaQao actual destas capclas data so do sec. xvi; ficavam mais para o rio no seu inicio. O agrupado massigo que hoje apresentam choca a primeira vista; nota-se que foi um arranjo para as aproximar da gafaria. Estavam outrora mais proximas do fatal rio dos assoreamentos. lam-se afundando e perdendo, mas como representavam receitas, pelos fundos que Ihes estariam anexos e que ajudavam a sustentar o hospital, nao foram abandonadas, como aconteceria em caso contra- rio, deslocaram-nas. A exacta posigao antiga e impossivel de demarcar. No artigo que dediquei a rua da Sofia, escrevi que o tragado da estrada antiga, entre Agua de Maias e a capela destruida do Arnado, deveria ter sido mais para o rio, pelo meio das I'nsuas, como quem diz, coisa parecida com a avenida da Madalena que se esta a langar. As capelas seriam proximas desse tragado. O palacio, motivo deste artigo, por ali ficava tambem. A acgao niveladora do rio tudo tem obliterado do que se encontra ao seu alcance; as ruinas soterram-se e nos assoreamentos outros tragados se recortam. Tanto o latim palatio, como o meu portugues pa^o, nao querem significar casa grande, nem residencia feita de proposito para pessoas reais ou de grandes do reino. Temos, na cidade, o exemplo ainda vivo, em pequena parte, do pago de D. Isabel junto a Santa Clara; duas janelas modestas num pano de muro. Ali, em S. Lourengo, haveria so uma casa mais ampla (pertencente a particular ou a instituigao religiosa ou beneficente) que foi utilizada pelos reis nesta conjuntura e nada mais. Nao forjemos agora quimeras. (Em «Diario de Coimbra», 23-.\i-1947.) 275 XXII A CAPELA DE S. LOURENgO AOS LAZAROS Vir evocar, neste ano de sessenta e sete, uma capela de S. LoureriQo e, para mais, tratar dela como existindo, e referir-me a alguma coisa de desconhecido na cidade. Na rua da Figueira da Foz, ultrapassada a igreja de Santa Justa, nota-se a esquerda, do lado do rio, uma pequena mas violenta descida que e ladeira dos Lazaros. Conduzira a gafaria fundada por testa- mento de D. Sancho I. Deixei escrito no volume do inventario artis- tico da cidade que nada e sabido dos primeiros edificios da mesma, nem se poderia saber se teriam ocupado este mesmo sitio ou, como era mais provavel, se estavam mais aproximados do rio, nas insuas dependentes da institui^ao, pois que se acreditava no seculo dezoito que haviam sofrido essa deslocaQao as capelas de S. Lourengo e de S. Mateus. Neste momento, pela elevagao do terreno e pelos aterros da Fernao de Magalhaes, completados de outros marginais para o fim de grandes construgoes, os edificios da gafaria, que ainda em grande parte existiam na altura em que redigi o volume do inventario, estao a acabar de desaparecer. Irei indica-los rapidamente. Descida a ladeira, encontrava-se a esquerda, para sul, o largo portao de entrada, em cuja verga se esculpia o brasao do Venturoso e duas esferas armilares. Entrando, tinha-se a direita a enfermaria das mulheres, para a esquerda a dos homens. Vinha o patio com a capela encostada ao morro, o pogo, e a sul a fiada das pequenas casas de habitagao dos gafos, que no seculo dezoito eram em niimero de onze e de que ainda me foi permitido reconhecer sete. Cada uma possuia piso terreo e um andar, com porta naquele e janela neste; pequena diamine emergia do telhado. Ainda la esta a capela, sobreposta duma casa de habitagao, ja desaparecido o alpendre, vendo-se da avenida o portal manuelino. 277 **-*'. Vestigios da capela antiga da capela de S. Louren^o Regressando ao terreno onde acaba a ladeira e comega a azinhaga dos Lazaros que dai seguia ao rio, em frente do portao referido, tinha-se, para norte, as duas capelas: a de S. Lourcngo e a de S. Mateus. Aquela, desafecta, modificada, que encontrci naquela altura a servir de rcsi- dencia de ciganos, ve-se ainda encostada a barreira e disposta parale- lamente a mesma; a de S. Mateus, que Ihe era perpendicular, ja foi demolida. A capela de S. Lourengo e incaracteristica, posto que relativa- mente ampla, com corpo e capela-mor, de aberturas reclangulares. Quando redigi o volume foi minha convicgao que tanto esta com a de S. Mateus nao passavam de reconstrugoes no mesmo sitio, para onde D. Manuel mandaria traslada-las de pontos dispersos, mais aproximados da veia do rio, as quais estariam anexos bens e que, por isso, havia necessidade de as conservar. Numa visita a S. Mateus, na altura da demoligao, nada de ver- dadeiramente antigo ali notei. Igualmente, nada da epoca anterior ao que a construgao aparen- tava se via na de S. Lourengo. Ha uns anos atras, a 3 de Maio de 1963, passei por ali e reparei que aos lados da porta tinham caido as arga- massas e tinham ficado a vista cantarias anteriores, as quais nao eram mais que os pes direitos e uma aduela de arranque do arco. Haviam, no seculo dezoito, se ja nao no dezanove, para se obter maior espago em altura, cortado o arco e introduzido as cantarias da modesta porta rectangular. A antiga entrada, do comego do seculo dezasseis, manue- lina, era de simples arco apontado, sem impostas, as arestas chanfradas, como se indica na fotogravura junta. Foi-me, pois, dado o prazer de verificar que as conjecturas de anos atras vieram a ter confirmagao. (Em «0 Despertar». Coimbra, 2-iii-1967.) 279 XXIII DATAS GRAVADAS EM ESCULTURAS COIMBRAS DO SEC. XV A variedade de eras que se encontram nos documentos medievais e bem conhecida. Dedicou-lhe entre nos valioso estudo Joao Pedro Ribeiro, na Disserta^ao VI. A parte cronologica do nosso volume Novas Hipo- teses acerca da Arquitectwa Romanica de Coimbra discute varios casos. Aquele de que nos vamos ocupar restringe-se a interpretagao do vocabulo Era usado nas datas gravadas em certas esculturas coimbras do sec. XV. O rei D. Joao I mandou que fosse substitui'da a era hispanica, vulgarmente conhecida por era de Cesar, pela do Nascimento, em lei de 22 de Agosto de 1422, data da sua publicagao, como ficou regis- tado nas Ordenagoes Afonsinas (liv. IV, tit. 66), facto que se comemo- rou na propria inscrigao tumular do rei na Batalha; parecendo todavia que o seu uso oficial se tera de retrair a 15 desse mes ou mesmo a 14. Depois do ano de 1422 (que correspondia ao da era hispanica de 1460) todas as vezes que se conte por Era se deve entender a do Nascimento, como anteriormente se nao pode interpretar pela de Cristo. Os casos que aparegam em contrario exigem seria discussao. Pedro Ribeiro assim o afirmou em varios lugares das Disserta^des e das Observagoes dc Diplomdtica; citando a excepgao de Pago de Sousa, em que a era antiga continuou alguns anos mais. A alegagao da autoridade deste mestre para os casos de que nos vamos ocupar seria bastante, se nao fora necessario insistir. O uso da era hispanica ou de Cesar remonta ao tempo do imperio romano, encontrando-se os exemplos mais antigos em inscrigoes das Asturias e Biscaia. Apesar de hipoteses aparentemente justificadas, continua-se a desconhecer o motivo que Ihe deu origem. Essa anti- 281 guidade e uso constante dao-lhe grande valor, mesmo em contraste com a era vulgar ou crista, proposta na primeira metade do sec. vi, por Dinis-o-pequeno, e cujo uso so se generalizou, na Europa ociden- tal, depois do ano mil. Nos monumentos mais antigos a sua designagao aparece simples- mente — Era. Isso mesmo se verifica em inscrigoes de Conimbriga; uma de Marturia, era dlx, outra de Sereniano, era dlxxviiii. O designativo de Cesar divulgou-se na baixa Idade Media, talvez para evitar confusoes com outras eras usadas ao tempo. Uma inscrigao de Toledo apresenta pedantescamente os sincro- nismos das eras da Encarnagao, Cesar, Alexandre, Moises e dos Mouros. Entre nos nao e raro encontrar-se conjuntamentc a era da Encarnagao, a de Cesar e os anos reais, como verificamos mais uma vez com o letreiro da sagragao da igreja de Lamas do Vouga: sub era m^ cc^ viii'''... ANO AB INCARNACIONE DOMINI M. C. LXX. REGNANTE APUD PORTUGALIE REGE ALFONSO. A redugao da era hispanica a de Cristo faz-se, como e sabido, pela subtracgao de trinta e oito anos (E. 1460, A. D. 1422). O ano desta era peninsular comegava ao primeiro de Janeiro, como o ano juliano em que se fundamentava. A do Nascimento, substituindo aquela, continuou com o mesmo inicio, fora de alguns casos em que, por pruridos de saber, o recuavam a 25 de Dezembro anterior. Na Peninsula fomos nos os ultimos a proceder a substituigao. O concilio de Tarragona do ano de 1 180 mandou usar da era da Encar- nafdo, a qual, em 1530, D. Pedro 4." de Aragao substituiu pela do Nascimento, o que praticamente nao foi mais que fazer passar o comego do ano de 25 de Margo a 1 de Janeiro, segundo o sistema juliano, que pela influencia imemorial da era de Cesar, foi no mundo hispanico o comego generalizado da Era do Nascimento. Por esta mesma do Nascimento, nas cortes de Segovia de 1383, se ordenou contar em Leao e Castela. Antes de passarmos ao exame dos letreiros, iremos, como dissemos, verificar, por convcnientes exemplos, que no sec. xv se empregou a designagao de Era, sem nenhum definitive, pela de Cesar antes do ano vulgar de 1422 (E. 1460), e pela do Nascimento a seguir a esse ano. Poderiamos fazer caminho atraves dos documentos manuscritos e aproveitar de Joao Pedro Ribciro; usaremos de outro metodo, para nao recairmos em veredas batidas; sejam certas cronicas a dar esses exemplos. 282 O cronista Fernao Lopes pertenceu a geragao nova do sec. xv, tendo vivido aproximadamente entrc os anos de 1380 a 1460. Era guarda da Torre do Tombo em 1418, exercendo a seguir o cargo de escrivao dos livros de D. Joao I. A incumbencia de escrever a cro- nica deste rei foi-lhe dada por D. Duarte, comegando a receber o Ano de 1436. Retabulo de .S. Jorge, em Eira Pedrinha ordenado correspondente em 1434. Foi substituido. per velho e fraco, em 1454, na Torre do Tombo. No seu tempo de vida oficial e que se deu a mudanga das Eras. Ninguem melhor que cle podera indicar o que se pensava e quais os usos do tempo anterior e da fase de transigao para a nova serie numerica. A parte da Cronica de D. Joao /.". escrita por ele, so alcanna o primeiro decenio do sec. xv, posto que, pelo encandeamcnto da narra- tiva, haja referencias a factos posteriores. Escrevendo ja na vigencia da era do Nascimento. Fernao Lopes seguiu todavia a era de Cesar, ou hispanica, como ele esclarece: «a quail pella era de C^sar per que esta cronica he copillada» (P. 1, c. 163). Entendeu que, passando-se os factos em tempos que se usava tal era, por ela deveriam ser narrados. De igual modo procedeu quanto ao trata 283 mento com que designou o rei : ate as cortes de Coimbra tratou-o sempre por Mestre e a seguir pelo ti'tulo de Rei, como mesmo se verifica numa passagem tipica: «emlegido o Meestre e algado assi por rei... E horde- nou elRey que» (P. 1, c. 193). Por tal motivo, a primeira parte pode ser denominada a cronica do Mestre e a segunda a cronica d'El-Rei. Indicaremos em resume os lugares em que aparece a Era e as variantes da sua apresentagao, seguindo a edigao da serie da Biblio- teca Historica de Portugal e Brasil, dirigida pelo visconde de Lagoa (Porto, Livr. Civil., 1945-1949), empregando a classica designagao de partes e de capitulos, como ali se encontram numerados. Essa contagem aparece na cronica com a designagao de Era de Cesar, so como era sem o definitivo de Cesar, conjuntamente ano e era equivalendo-se, sem designagao de era ou ano, contagem por era para um tempo futuro no qual ja estava abolida. So encontramos um exemplo de concordancia, se nenhum outro nos escapou: «hu sse comegava o novo ano em Castella da nagemga de nosso Senhor Jhesu Christo de mill e trezemtos e oiteemta e quatro, e da era de ^esar de mill e quatro gemtos e viimte e dous» (p. 1, c. 60) So dois exemplos, cremos, de Era de Cesar: um ja indicado, no qual se refere a compilagao da cronica (p. 1, c. 163), o outro da batalha de Alju- barrota, «E foy feita esta batalha feria segunda quatorze dias d Aguosto da era de ^esar de mil e quatro gemtos e vimta tres anos» (p. 2, c. 44). A mais comum designagao e a de era sem o definitivo de Cesar. Vem algumas vezes acompanhada de sincronismos que permitem a verificagao: «E quamdo veo aa quimta feira seis dias daquell mes dabril da era ja nomeada de quatrogemtos e viinte e tres, seemdo. emtom o Meestre em sua nova e floregemte hidade de viimte e seis anos e omze mezes e viimte e gimquo dias, foi algado rei» (p. 1, c. 192); «postumeiro dia d Abril de mil e quoatro cemtos e sesemta e huum em que a era emtam amdava» (p. 2, c. 195). A forma usual e, por exemplo; «seis dias de dezembro, era ja escprita de quatro gemtos e viimte e huum» (p. 1, c. 9)(1). A indicagao conjunta de ano em inicio de data e era e rara: «acabou este anno de vimte e quoatro e amdava ja era em vimte cinquo» (p. 2, c. 66); «Pasou este anno de quatro cemtos e vimte e seis e veio a era de vimte e sete» (p. 2, c. 120). (1) Os outros lugares sao os seguinles: p. 1, c. 27; p. 1, c. 154; p. 1, c. 177; p. 2, c. 81; p. 2, c. 82; p. 2, c. 99; p. 2, c. 139; p. 2, c. 14! ; p. 2, c. 149; p. 2, c. 170; p. 2, c. 195; p. 2, c. 201 em dois lugares. 284 ^ J Anos de 1439 a 1440. Tiimulo de Fernao Gomes de Gois, em Oliveira do Conde Devemos notar que a indicagao anos no fim do milesimo e case que nao interessa, pois que em qualquer era e esse o nome proprio do periodo anuo. Mesmo inicialmente nao tem outro significado nos casos deste tipo: «em este anno que he ja scripto de quatro cemtos e vimte e oito» (p. 2, c. 146); «no comego do mes de Janeiro do anno que avia de vir de iiijc xxxvij» (p. 2, c. 177). Equivalentemente a formula de era sem dcfinitivo se encontra o milesimo sem designacao de era: «no mes de junho de trezemtos e noveemta e oito annos» (p. 1, c. 32) (1). Pode-se verificar a exactidao num dos casos por meio duma festa fixa do calendario: «em outro dia XXV do mes nomeado de quatrocemtos e trimta e seis que era festa de Samtiago» (p. 2, c. 173). Outros elementos cronologicos acompanham a formula de que tratamos quando o cronista indica OS nascimentos dos filhos do rci (p. 2, c. 146) e que resumire- (1) Bem como nos lugares: p. 2, c. 63; p. 2, c. 78; p. 2, c. 98; p. 2, c. 140; p. 2, c. 167; p. 2, c. 173; p. 2, c. 186; p. 2, c. 195. 285 mos: D. Branca nasceu a 13 de Julho de 426 anos; D. Afonso numa noite de sabado, 30 de Julho de 428; D. Duarte, poslumeiro dia de Outu- bro de 430 anos; D. Pedro uma hora depois da meia noite, 9 de Dezem- bro de 432 anos; D. Henrique uma quarta-feira de cinzas, 4 de Margo de 434 anos; D. Isabel, quarta-feira, 21 de Fevereiro de 435 anos; D. Joao no mes de Janeiro de 438 anos; D. Fernando em dia de S. Miguel, 29 de Setembro de 440 anos. Certamente por erro de copista, sairam equivocadas as datas de D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique. Como a henriquina e a linica dentre estas que vem acompanhada de elementos cronologicos com- plementares, verifica-se que a causa fora essa, pois que no ano verda- deiro (E. 1432) A. D. 1394 recaiu quarta-feira da Cinza a 4 de Mar?o. O escrupulo que Fernao Lopes teve em usar esta era nota-se dum lugar em que se refere a acontecimentos futuros, passados em tempo em que ja se encontrava abolida (p. 2, c. 195), que era como se, por hipotese, ele se encontrasse no ano de que ia tratando, o de 1411: «E na cidade dAavilla omde elRey emta estava postumeiro dia dAbril de mill e quoatro cemtos e sesemta e huum (A. D. 1423) em que a era emtam amdava, aprovou el Rey o dito trauto e na per sempre mas atee seis dias de MarQO de iiijc Ixxij annos (A. D. 1434), no qual anno elle fazia idade de XXIX annos... E amte huns tres annos que se aquele tempo acabase foram a Casteella dous cavaleiros... e com estes comcordou elRey a sobredita paaz por sempre, em Medina del Campo XXX dias dOutubro de mil e iiijc e Ixix anos (A. D. 1431). Fernao Lopes procedeu semelhantemente na Cronica de D. Fer- nando (usando nos a edigao de Barcelos, 1933), o que mais em resumo vamos indicar. Uma so vez, se nao nos equivocamos, empregou a designagao de era de Cesar: «sabado de Lazaro, seis dias dabril, da era de Cesar de mil quatro gemtos e gimquo anos» (c. 9). Frequente e usar so era sem a designapao de Cesar: «comeQOUSse a era de quatro gentos e seis» (c. 18) (1). Tipico, e esta passagem pede especial atengao, e usar ano e era em perfeita equivalencia: «passou o anno de quatro gemtos e sete e comegou a era de quatro gentos e oito, no qual ano» (c. 40). Sem indicagao de era ou de ano: «a hora de prima quarta-feira, quatorze dias de margo, de mil e quatro gemtos e sete anos» (cap. 21) (2). (1) Semelhanteinente em mais catorze lugares: capitis. 45, 48, 53, 73, 83, J07 duas vczcs, 110, 128, 133, 134, 135, 158, 172. (2) Oiitros lugares: c. 24 e c. 96. 286 Ano inicial de milesimo sem indicagao dc que era; «no mes de julho deste anno de quatro ^emtos e sete» (c. 32) (1). Ano de 1443. Rctabiilo do Corpo de Dens, cm Coimbra A Cronica de D. Pedro I (edig. Barcelos, 1932) e parca em datas. So uma vez era de Cesar: «feria quimta, viimte e dous dias do mez doutubro, desta presente era de (^esar de mil e quatro gemtos e quatro annos» (c. 41). (1) Outros lugares: caps. 39, 66, 92, 94, 96 e 112. 287 Era sem o definitivo de Cesar: «e morreo elRei Dom Pedro huuma segunda feira de madrugada, dezoito dias de Janeiro da era de mil e quatro Qemtos e cimquo anos» (c. 44) (1). Encontra-se ano inicial de milesimo sem designagao de que era (c. 24, 32, 35) e ainda ausencia de era ou de ano noutro ponto (c. 22). Ve-se das tres cronicas que Fernao Lopes, escrevendo depois da mudanga da contagem do tempo em era hispanica, chamada de Cesar, para a do Nascimento de Cristo ou vulgar, julgou que, por harmonia com as epocas historicas de que tratava, devia empregar a era usada nas mesmas. Tao logico isso Ihe pareceu, e a todos deveria parecer ao tempo, que raras vezes usou da expressao era de Cesar, limitando-se ao emprego so da palavra era ou de ano antes do milesimo, ou nem usando era e ano ou empregando-as conjuntamente com o mesmo valor. Em resumo: um milesimo sem designagao especial, empregado antes da mudanga, nao poderia indicar outra era que a de Cesar. Equivalentemente ocorreu depois da substituigao (E. 1460 = A. D. 1422). Recorreremos a Cronica do Infante D. Fernando de fr. Joao Alvares, publicada em Coimbra, em 1911, segundo o codice do sec. xv, da Biblioteca Nacional de Madrid, por dr. Mendes dos Remedios. Joao Alvares foi secretario do Infante, acompanhou-o a Tanger e em todo o cativeiro, ate a morte, ocorrida em 1443, mas so conse- guindo o resgaste em 1448, como ele proprio esclarece nos periodos introdutorios. O seu testemunho e de quem viu e ouviu e alem disso escreve longamente. Acerca da infancia do Infante limita-se a indi- cagoes episodicas e todos os pequenos capitulos (em que o dr. Mendes dos Remedios dividiu a obra) que se seguem ate a determinagao de passar a Marrocos so se ocupam das suas virtudes. O primeiro milesimo com que se depara e o da data da partida da armada da praia do Restelo (c. 11): «e quinta feira aos xxij dias dagosto era do nacimento de noso Senhor Jesu Cristo de mill iiij cen- tos xxxvij annos, partirom de Restelo e foram de foz em fora». Nesta passagem nos aparece o termo era com o designativo do nascimento. Em mais dois lugares encontra-se simplesmente era: «ao sabado xj dias doutubro, era de iiij centos xxxviij anos» (c. 21); «primeiro dia de junho da era de mil quatrocentos cincoenta e um» (c. 42). (I) Alem dc 17, 18, 19, 20. 288 Ano de 1448. Senhora sentada, cm Sao Paulo dc Frades 19 Sem indicagao de era ou ano ocorrem cinco lugares sendo o ultimo: «e asy como se chegou o mes de julho de iiij centos quarenta iij chegou-se a fim deste Senhor, quando seos padegimentos eram mayores e mais graves de soportar» (1). Viveu no mosteiro de Jesus de Aveiro, entre as caligrafas dos primeiros tempos, Soror Isabel Luis, que entrou de nove anos no recolhimento inicial, recebeu o habito a 25 de Dezembro de 1464 professou no ano de 1467, domingo, 12 de Janeiro, saiu com outras, em 1518, a fundar o convento da Anunciada de Lisboa, vindo a falecer no de Aveiro a 21 de Junho de 1542. Conservam-se no Museu Regional, instalado no antigo convento, alguns livros de sua mao; tendo nos examinado e tornado nota daqueles que ha anos encontramos expostos. Assinou-os e datou-os usando da expressao Era de, juntando ao dia do mes o da semana. Por estes elementos cronologicos, se a epoca em que escreveu nao bastasse, pode-se verificar rigorosamente que se tratava da era do nascimento. Transcrevemos os finais que vimos. «Este liu(r)o p(ro)cessional he do mostery (r)o de jh(es)u d auey(r)o, acabousse s(egund)a feyra. xxij. dias de junho. Era de mil cccc. Ixxxix. Escreueo Soror ysabel Luis, freyra do dicto conuento.» (22-jun.-1489, segunda-feira). «Este p(ro)cessionay(r)o he do mosteyro de jh(es)u. Acabousse descreu(er) quinta feira seys dias dagosto era de mil.cccc.lxxxix. Screueo.» (6-Agosto-1489, quinta-feira). «Este liuro p(ro)cessional he do mosteyro de ih (es)u acabousse. sesta feyra xbiij. de Setebro. Era de mil.iiij. Ixxxix. Screveo soror: Ysabel luis, freira do dicto c6uentu:» (18-Setemb.-1489, sexta-feira). «Este lyuro processional he do mosteiro de jh(es)u. acabousse aos xxbiij dias de novenbro. Era de Ixxxix. Screueo. Soror: Isabel Luys. freira do dicto c6uentu» (28-Nov.-1489). A letra dominical do ano de 1489 foi D, o que da as concordancias. Caetano de Sousa traz no tomo 1.^ das Provas da Historia Genea- logica da Casa Real Portiiguesa (Lisboa, 1739, pag. 540), a lembranga que escreveu D. Duarte dos nascimentos dos filhos, incluindo a do seu casamento. Alguns dos milesimos sao acompanhado da designa^ao de era sem definitivo. A copia foi mal feita e introduziu erros, se ja nao esta- vam no codicc. Limitar-nos-emos a transcrever a ementa do casa- (!) Cap. 36 e ainda c. 24, 25 duas vezes, 31. 290 I Ano de 1469. Senhoia com o Menino, em Penha Garcia mento: «Em Coimbra era de mil iiij xx biij annos aos xx ij dias do mes de Setembro em quarta feira foy solenizado o meu casamento» (22-Set.-1428, quarta feira. Letras dominicais DC, bissexto). Podiamos repetir exemplos, pois que sao numerosos. Bastam estes para demonstrar que depois da mudan^a da contagem (A. D. 1422; E. 1460) a indica9ao do ano so pelo vocabulo era se tem de entender era do Nascimento on vulgar. Acrescentaremos, como mera observagao, que no sec. xvi se veem frequentemente os milesimos precedidos da simples indicagao de era e que nao e raro encontrarem-se nos escritos contemporaneos equi- vocos de interpretagao. Limitar-nos-emos a tres exemplos, dois por terem sido causa de enganos, o outro por ser tipico. Na base duma custodia da colegiada de Guimaraes: esta cvstodia foi acabada NA ERA DE 1534. Capcla-mor da igreja dos Anjos, de Montemor-o- -Velho: «Esta obra ma(n)dou fazer d(iog)o daza(m)buja na era de 1511 anos». Tiimulo na igreja de S. Martinho da mesma vila, de Luis Pessoa e Mecia Quaresma: a qval falleceo no ano de 1524 E elle na era de 1531. Parece simples, depois do que deixamos escrito, a solugao dos casos cronologicos em que aparega a designagao de era: antes de 1422 trata-se da era hispanica, chamada de Cesar, a seguir, da era vulgar ou de Cristo. Nao obstante ha uma longa serie numerica que se presta a equivocos; e, quando o numeral aparega sosinho, sem que haja elementos que ajudem a cronologia, o caso e insoluvel; isto se verifica na serie aritmetica que vai de 1422 a 1460, que primeiro foi percorrida como era de Cesar e depois do Nascimento. Apresentaremos dois exemplos que em si parece nao deverem oferecer diividas mas que as causaram, um anterior a mudanga e o outro a seguir. A lapide fiinebre do bispo de Evora D. Pedro diz: 1 e(ra) m^ ccc.^ lxx^ viii^ an(n)os sabado p(ri)m EIRO DIA de IVLHO PASOV DOM P(ER)0 B(IS)P0 d evora ell(ei)to q(ve) foi de conca o qval FOI B(is)PO XVII^ ANOS Y X MESES Y VIH." Dl 5 AS 10 ... ESTA ERA MANDOV POER MAR TIN ORTIZ CRIADO DO BISPO DOM P(ER)0 292 Ve-se que o bispo faleccu na era de 1378 anos, ao primeiro dia de Julho, que ocorreu a um sabado; que ele linha sido simplesmente bispo eleito de Cuenca e que fora bispo 17 anos, 10 meses e 8 dias. Cuenca era do rcino de Castela e da provincia eclesiastica de Toledo, mas confinava com a coroa de Aragao e andou nas lutas que dividiram a peninsula neste seculo, tomando a voz por diversos partidos. Ainda nao estava mudada a era nem em Castela nem em Portugal, mas ja tinha sido adoptada em Aragao. Martim Ortiz nao era por- tugues; que uso teria seguido? A indicagao de se ter dado o falecimento a um sabado e que era o primeiro de julho esclarece completamente. Se fosse ano do Nascimcnto, a letra dominical que em 1378 era C indicava para o dia 1 dc Julho uma quinta-feira, o que csta contra OS dados. Ora ao ano vulgar de 1340 (E. 1378), que foi bissexto, correspon- deram as letras BA, regulando naquela altura a segunda; marcando pois o A o dia dois de Julho e sendo ja a esse tempo a dominical, segue-se que o dia 1 caiu a um sabado. Conclui-se consequentemente que se trata da era hispanica. O tempo do episcopado, hoje que e melhor conhecida a serie episcopal eborense, ajudava a solugao. Todavia essa indicagao for- necida por Martim Ortiz nao e mais que uma reivindicagao de digni- dade e nao representa um exercicio. D. Pedro foi simplesmente designado nessa altura, mas nao confirmado nem tao pouco sagrado ou tendo exercido jurisdigao, facto esse que se teria passado em ou cerca de 24 de Agosto de 1322. Todavia, o periodo episcopal indicado na inscrigao podera ja nao abranger a epoca castelhana e designar exclusivamente o tempo de Evora. O bispo D. Geraldo fora assas- sinado a 5-Margo-1321. e parece ter sido o seu imediato antecessor. Foi reencontrado no mosteiro de Santo Tirso o sepulcro do abade Martim Aires, tendo estendida na tampa a sua figura e, lavrado, na frente da area, o escudo de cinco vieiras e o epitafio em tres linhas. A escultura e de baixa artificiania e o letreiro foi lavrado imperitamenle. Temos presente uma fotografia que o nao reproduz como desejariamos e nos deixa duvidas na indicagao do dia do mes. AQI lAZ DOM MARTIM ARES ABADE O FOI DESTE M" E FINOV EN A ERA DE MIL E CCC E LXX II ANOS... (?) DIAS DABRL Sendo o milesimo de 1472 parece que nao deveriam surgir duvidas de se tratar da era corrente. Todavia suscitaram-se e nada menos que ao ilustre Joao Pedro Ribeiro. 293 Chegou a presumir que se estivesse em frente de outro caso de persistencia de contagem pela era abolida. Baseava-se em que documentos do mesmo mosteiro davam falecido o abade em 1437 e que o seu testamento era datado do ano de 1434 (que corresponderia a E.-1472). Acrescentou que se fosse aquela data o ano comum ja se nao deveria ter usado na inscrigao a letra gotica maiuscula mas a minuscula (o que foi equivoco, fruto de excessiva sistematizagao). Nao sabemos o valor dos documentos nem muito menos o que se teria passado na altura de se lavrar o tiimulo e na mente de quem mandou fazer a obra. Poderia ter o abade falecido em 1434 (E. 1472) mas a verdade e que o estilo da escultura, segundo deduzimos da foto- grafia, e mais do fim do esc. xv que da primeira metade do seculo. Exemplos tipicos de milesimos dentro da serie duvidosa serao os das esculturas que deram motive a este artigo. Liminarmente a transcrigao das inscrigoes que interessam, volta- remos a repetir os princi'pios gerais em que assentamos. Entre nos a designa?ao de Era empregada sem definitivo indica aquela que corria comummente ao tempo do seu emprego, a que estava no espirito de todos: antes do ano de 1422 (E. 1460) a hispanica, cha- mada de Cesar, depois dessa data a do Nascimento. A era da Encar- nagao (com o inicio a 25 de Margo), que nao era comum no nosso Pais, foi sempre designada pelo seu nome. A palavra ano em inicio de numeral indica o periodo anuo da contagem do tempo; a de anos (no plural) no fim do mesmo diz as unidades anuais de que o mesmo numero se compoe; isto e, no exemplo seguinte — o ano de 1300 anos — , o ano de equivale a ano da era de (Nascimento, Encarna^ao, Cesar, Criagao) de 1300 unidades, nome generico que neste caso e concretizado por anos. Todavia e necessario estar de sobreaviso, que aparecem casos confusos. Passaremos aos letreiros das esculturas coimbras do sec. xv que nos interessam. Era 1436 anos. O relevo que foi pequeno retabulo medieval da capela de Eira Pedrinha, povoagao da freguesia de Condeixa-a-Velha, representa a vitoria de S. Jorge sobre o dragao. Nas obras de reparagao do templozinho no ano de 1934 foi descido, o que nos permitiu exami- 294 nar convenientementc a legenda qLic cone no li.stcl da base, cscrita em capitals goticas, cavadas. GONCALO: PALMEIRO: MANDOU: FAZER : ESTA : OHRA : ERA: Mil; cccc: XXX : ui: anos: O cstilo da escultura, a propria armadura do cavalciro, suges- tionavam epoca anterior e a recondugao a era de Cesar; nos proprios no equivocamos. Era do Nascimento de 1439 e era 40. O tiimulo de Fernao Gomes de Gois, na igreja paroquial de Oliveira do Conde, tern excepcional importancia neste peri'odo: alem da estatua jacente do cavaleiro e de uma menor, de donzela, alinham-se na frente da area dez esculturinhas, que se completam com as das testeiras; para mais, revela o nomc do escultor e o periodo de factura da obra, no listel inferior a zona das edi'culas. Todos os letreiros foram escritos no minusculo gotico do tempo e em relevo. Scguimos a leitura do dr. Vergilio Correia. (Ioh)ani:afonso:meestre:dos:sinos laiirou:este moi- mentoicomecou o:na era:do:nacimento:de:noso: senhor:hm:xpo:de mil:cccc:xxxix:anos:acabou o: na era :xl:comecado :tres :dias :andad(os :do :mes : de)maio:e pos :doze :meses :em davralo:.. . Ano do Sen/ior de J 443. O pequeno retdbulo do Corpo de Dens. originario da capela do mesmo nome, da cidade de Coimbra, repre- senta dois anjos ajoelhados suportando os simbolos eucaristicos, o calice e a hostia, sob tres baldaquinos. Le-se no listel da base, em minusculas goticas do tempo e em relevo: Senefica : corpos : d(omi)ni : A?io : d(omi)ni : m':cccc\' xxxx:iij:alu(ar)o f(e)r(nande)z:de carvallw o mandou fazer As cinco ultimas palavras foram esculpidas em corpo menor que passou para a face direita do bloco. Este padroeiro ficou-nos mais conhecido depois de recentes pes- quisas que fizemos. A capela, como fundagao pia, foi instituida por 295 Gongalo Gogalves e Ana Afonso, na pessoa do neto Alvaro Fernandes de Carvalho, na era de 1455 (A. D. 1417), tendo este falecido no ano de 1465. Era de 1448. A escultura da Senhora sentada com o Menino da igreja monastica, hoje paroquial, de S. Paulo de Frades tern gravado na face direita do banco da Senhora, em minusculo gotico: frey:aluaro: de:maceeym: :monge:de st€:m(osteiro):de sa: 5 paulo:man dou:fazer:es ta:Imagem :eius:a(n)i(ma): :requiescat 10 :inpace: :amen+ e^:R^:biij Depois do exame directo da Senhora de Penha Garcia, tern de se aceitar que o canteiro interpretou ma! a minuta que Ihe deram para reproduzir e, em lugar de «madelym», gravou «maceeym», ao que o desenho do gotico minusculo do tempo ajudava. A era foi dada so pelas dezenas e unidades. As dezenas estao indicadas por aquela sigla que e a ultima evolugao do antigo x-aspado e que tern o valor de 40. A escultura da Virgem aleitando o Menino da igreja paroquial de Penha Garcia tem igualmente letreiro a dizer que Frei Alvaro de Sao Paulo a mandou fazer no ano de 1469: + frei : a/ii^^ : Sappaulo : A rnadoii : fazer : Ano : De : Mil : cccc : Ixix E, pois, o mesmo Frei Alvaro de Medelim, monge do mosteiro de S. Paulo de Frades, que mandou executar a do seu convento em 1448. Medelim e Penha Garcia, do concelho de Idanha distam entre si uns dezoilo ou dezanove quilometros. 296 A redugao da data destes quatro letreiros a era do nascimento ou era vulgar obtem-se cm primciro lugar pclos dados fornccidos por aquele que foi gravado no u'imulo de Oliveira do Condc c depois pela mutua unidade de estilo que indica oficinas de uma mesma epoca da cidade de Coimbra. Mestre Joao Afonso comegou o tiimulo no era do nascimento de noso senhor ihu xpo (de 1439) c acabou o na era (de 40); encontrando-se em perfeita equivalencia era do Nascimento e era simplesmente, a nao se querer que o tumulo fosse terminado trinta e sete anos antes de ser principiado. O inquerito artistico do distrito de Coimbra revelou muitas escul- turas avulsas, como se pode ver das gravuras que sairam no respec- tivo volume e que nao passam duma selecgao. Puderam-se definir grupos e estilos; as incertezas, como no caso de S. Jorge de Eira Pedrinha, desapareceram ; as afinidades mutuas desta esculturas de que tratamos sao evidentes: sairam do mcsmo ccntro artistico, posto que nao da mesma oficina, e correspondem a uma mesma epoca evolutiva. Podemos concluir que os milesimos apresentados correspondem a era vulgar, como se segue. Retabulo de S. Jorge, de Eira Pedrinha, de 1436. Tumulo de Fernao Gomes de Gois, em Oliveira do Conde, de 1439 a 1440. Retabulo do Corpo de Deus, de Coimbra, dc 1443. Senhora de S. Paulo de Frades, de 1448. Senhora com o Menino. de Penha Garcia, de 1469. (Em «Belas Artes», n." 10. Ac. Nac. Bel. Art., Lisboa, 1957, com leves complementos.) 297 XXIV O QUE PERMANECE DO SEC. XV NA IGREJA MONASTICA DO PA^O DE S. MARCOS A igreja do mosteiro dos frades jeionimos, em S. Marcos, junto de S. Silvestre, no concelho de Coimbra, licou anexa ao palacio que, no meado do seculo, foi construido sobre as ruinas conventuals. Do mosteiro permanece a igreja e o sector de colunas, com suas abobadas, na zona terrea do pago, conservado como lembranga, depois das necessarias e dispendiosas consolidagoes. Procurar hoje o velho convent© e achar-se limitado a parte cultual. A fundagao do mosteiro pode resumir-se em breves periodos, apesar dos funestos acontecimentos em que andou envolvida, dos dramas intimos e das tragedias nacionais de que foi um eco. Seguiremos a narragao do Dr. Joaquim Martins Teixeira de Car- valho, com os complementos de Anselmo Braamcamp Freire, exame do que o cronista deixou dito, e ainda do que se pode tomar do Index dos Titulos, publicado pelo Dr. Manuel Estevens. Teve inicio nuni desejo romantico. O primeiro senhor de Vagos, Joao Gomes da Silva, alferes-mor de D. Joao I, que, com este, esti- vera em Aljubarrota e em Ceuta, quis, em morte, repousar naquele sitio que o encantara em vida, ponto destacado numa plataforma do vale do Mondego, a dominar larga paisagem, tendo a vista a cidade de Coimbra e, por fundo, as afastadas alturas das serras da Lousa e do Espinhal, com as ligagoes que vao a longinqua e perdida Sico. Fez testamento em 5 de Janeiro de I44K instituindo na ermida de S. Marcos uma fundagao pia, com os bens que tinha na \ila e tcrmo de Tentugal, para que ali um capelao dissesse missa e recitasse, sobre 299 sua sepultura, o devido responso. Propriamente para as missas legava as casas de S. Marcos, propriedades e direitos que no mesmo lugar possuia. Nomeava administrador deste vinculo ou capela, como se dizia, o filho herdeiro. Aires Gomes da Silva, devendo continuar em sua sucessao legitima. Faleceu e ai foi sepultado, em tumulo que ja nao existe e no qual havia sido gravada a sua divisa: Oblie, oblie. oblie. Sucedeu-lhe, por conseguinte, o filho Aires, casado em segundas nupcias com D. Beatriz de Menezes. Havia esta sido aia da rainha D. Isabel, como foi dos filhos a seguir ao falecimento da mesma. Quem Ihe fizera o casamento fora o infante D. Pedro, que armara cavaleiro, na tomada de Ceuta, a Aires. Naturalmente, seguiu este o partido do infante e com ele esteve em Alfarrobeira (20-V-1449), pelo que Ihe foram confiscados os bens. Veio a falecer em 1451 ou 54, e nao naquela batalha como aparece escrito. O rei ressalvou os bens de D. Beatriz, confirmando-lhe (28-IV-1450) a escritura do dote e ainda, a pedido da rainha, deu-lhe, no mesmo ano (5-X) a fundagao de S. Marcos. Os bens patrimoniais confiscados a Aires foram dados a Diogo da Silva, filho natural mas legitimado do fundador da capela; a quinta de S. Silvestre a D. Leonor da Silva, tambem filha do mesmo mas de sua primeira mulher, D. Margarida Coelho. Outros bens de que tinha sido feita merce a Martim Mendes Berredo veio o rei a concede-Ios a D. Beatriz, logo que ficassem livres por morte do mesmo, o que aconteceu antes de 1459. Obteve ainda, por tres cartas de perdao, de 22 de Abril de 1451. que fossem relevados de culpa tanto o marido como os filhos, como conseguiu a casa de Vagos (25-VII-1453), por renuncia de Diogo, a qual veio a ficar ao primo- genito Joao da Silva (que foi o 4." senhor), como a de Unhao ao outro filho (13-11-1459), Fernao Teles de Meneses. D. Beatriz, por devogao e desiludida da vida por tantos infortiinios, veio a conceder a capela, com os bens e encargos, a ordem de S. Jero- nimo, para ai fundar um convento, lavrando-se a carta respectiva, a 28 de Julho de 1451, que, a 3 de Agosto, o rei confirmou. A 19 do mesmo mes, D. Beatriz escrevia aquele que era sen procurador, para fazer a entrega. Os sobressaltos nao haviam terminado. D. Leonor da Silva, que havia recebido a quinta de S. Silvestre como compensagao do seu dote, devia entregar o excedente do valor ao referido Diogo da Silva. A avalia(;ao da quinta pareceu-lhe exces- siva e pediu ao rei que fosse posta em leilao. Na acgao judicial incluiu-se indevidamente a ermida e bens anexos. Arrematou o con- 300 Tumulo de Fernao Teles de Meneses junto a rainha D. Isabel. Os frades recorreram ao rei, e a rainha mandou, por carta de 10 de Fevereiro de 1452, ao seu ouvidor Estevao Pais que fizesse a entrega aos mesmos. D. Afonso V, para acabar com as pretensoes de parentes do fundador da capela, mandou passar, a 10 de Outubro de 1453, alvara a confirmar os bens ao convento, declarando que a rainha nao podia comprar a ermida pois que nao fora mandada incluir na venda, e mais, que se viesse a declarar-se nulo o testamento do fundador, ele fazia merce dela ao convento. Diz o cronista: «Comegara6 pois as obras deste ediffcio em Abril de 1452, e a primeira obra de q. se tratou foi da Igreja, q. se fundou no mesmo piano, em que estivera a Ermida de S. Marcos e logo os Monges comegarao a celebrar nella os Officios Divinos, em qt.^ as obras da nova Igreja o permettira6.» Estes dizeres do cronista nao passam de meras dedugoes suas, ajuizando do que habitualmente acontecia; vendo-se mesmo, atraves dos tragos construtivos que restam (os de 1510 e 1522), que ele nada conhecia ou discernia nas diversas fases de edificagao. Todavia nao e de afastar que a obra tivesse comegado em 1452; o mes de Abril, porem, nao se justifica, porquanto os monges nao iam construir num periodo incerto de posse a qual so obtiveram no mes de Maio. Mais provavel sera que so a iniciassem depois de Outubro de 1453, data do alvara regio. Foi seu arquitecto Gil de Sousa que ja construira o convento de Penha Longa. tendo dirigido as obras durante doze anos, conforme Frei Adriano diz. Sera erro marcar milesimos certos da sua actividade e mesmo talvez nao seja inteiramente de aceitar a data de 1 de Julho de 1463 que Braam.camp Freire indica para termo dos trabalhos. O pedreiro Nuno Gongalves, morador na povoagao mais pro- xima, a da Zouparria, foi privilegiado a 24 de Setembro de 1462 para servir nas obras ocasionais do mosteiro. D. Beatriz de Meneses faleceu em 1466, antes de 10 de Junho. Dessa obra nada se encontra a vista que a denuncie. Poderao, em mcra hipotese, pertencer-lhe as alvenarias das paredes laterais do corpo, que tivessem sido conservadas na renovagao manuelina. Esta dever-se-ia ter limitado a fachada, com a criagao do coro-alto (uma parte deste sobrc o novo atrio, outra para o interior, como o largo arco frontal indica) e da qual so hoje existe a porta, datada de 1510, e aquele arco, fachada substituida na epoca setecentista. 302 Hoje, o que se encontra do seculo xv reduz-sc ao tiimulo de Fernao Teles de Meneses, a area, ou uilvez so o frontal, que c a I'lnica parte a vista, do de Aires Gomes da Silva, a estatua jacente de D. Beatriz de Meneses, a face dum tumulo, pelo lado de fora da capela-mor, que tern os escudos de Mouras e de Coutinhos. O tumulo de Aires Gomes da Silva, marido de D. Beatriz de Meneses, o de Alfarrobeira e dos bens confiscados, c o primeiro que se encontra, entrando, a mao direita. Esta totalmente embutido, ficando o frontal a face da parede. O que se vc. portanto, nao c con- forme a apresentagao que inicialmente deveria ter. Este lugar dever- -Ihe-ia ser dado no seculo xvi, pois que o letreiro a que nos vamos referir data desse tempo. O rectangulo que forma esse facial mede 2.04 m. de comprimento e 0,60 m. de altura. O piano e rebaixado, deixando uma tarja envol- vente e lisa, a formar o enquadramento. Esculpem-se no campo tres escarcelas abertas, com a correia de suspensao enrolada em lago: uma ao centro e as outras quase encostadas as margens. Entre elas, no espa^o liso, ha, em capitals goticas do final do periodo, a divisa LARDANT / DESiR. E ncnhum brasao existe, nem tambem ornatos alguns. Colocaram na parte superior uma pedra do mesmo compri- mento e de 19 cm. de espessura, como se fora a face duma tampa. na qual gravaram, em capitals classicas do seculo xvi, em duas linhas: AQVI lAZ O MVI NOBRE E VIRTVOSO BARA AIRES GOMEZ DA SILVA GOVERN(a) DOR QVE FOI DE LIXBOA FALECEO EM IDADE DE 55 ANOS AOS 25 DE MAIO DE 145(4) Esta lapide esta mutilada nas extremidades o que alinge as letras. parecendo significar mudanga. Nao se ve o ultimo algarismo que o cronista indica. Como nao e da epoca do falecimento, mas bastante posterior, a sua ligao nao e segura. Braamcamp Freire da-o como falecido antes de 16 de Agosto de 1451. Tendo falecido antes da esposa, durante a construgao do con- vento, e possivel que ela Ihe tivesse colocado o tumulo na capela-mor. a par ou em frente do seu. A reforma da mesma capela-mor. man- dada executar (1522) pelo neto, poderia ter obrigado a primeira des- locagao, se nao veio logo para aqui. 303 Quase em frente deste esteve a area tumular do fundador da eapela primitiva, Joao Gomes da Silva (fal. 25-III-1444), entre o piilpito e as grades que separavam o sector contiguo ao do arco-cruzeiro. Em obras na igreja, talvez as do seculo xviii, o tiimulo foi retirado e os ossos do fidalgo colocados na area do lado direito da eapela dos Reis Magos, que estava vazia porque aquele a quem era destinada se ficou no desastre de Alcacer Quibir. Seria tumulo do mesmo genero daquele Ti'imulo de Aires Gomes da Silva outro, o do lilho, mas de sua composigao nada e mais conhecido alem dos dizeres do cronista: «Por baixo deste epitafio estava tres vezes repetida a palavra Franceza = oblie = tendo no meio da letra -1- esculpida uma cor6a». O tumulo de D. Beatriz de Meneses (fal. — 1466, antes de 10 de Julho, segundo Braamcamp), como escrevemos no volume do inven- tario artistico do distrito, — e obra manuelina do mesmo tempo dos outros e da eapela, mandado fazer pelo reformador, seu neto. Guarda porcm a tampa tumular com a estatua, da segunda metade do seculo xv, representando-a vestida de viuva ou monja. 304 Na scgunda decada do seculo xvi, o 5." senhor de Vagos, Aires da Silva, casado com D. Guiomar de Castro, quiz fazcr jazigo verda- deiramente honorilico para si e sous pais. Por urn lado remodclou a capcla-mor da igreja do convento, o que estava inteiramente no seu direito, pois que a construgao e a conservagao das capelas-morcs pertencia aos padroeiros. Aqui, em S. Marcos, os senhores de Vagos nao se limitaram a essa parte restrita mas subsidiaram largamente todo o convento. Por outro, instituiu com sua esposa uma capela de missas, como se dizia, de que fez escritura com os frades a 17 de Junho de 1522, documento encontrado peio Dr. Rcinaldo dos Santos, mas nunca publicado. Ja a mae, D. Branca Coutinho, havia feito (1498) outra funda^ao de bens-de-alma, com larga dotapao. O ano de 1522 esta gravado num pilar do tumulo de Joao da Silva, noutro de Aires da Silva e no pulpito (onde ha igualmente o milesimo de 1574 a marcar um complemento, como esclarecemos noutro artigo), datando con- venientemente a construgao. A arquitectura devera pertencer a Diogo de Castilho, como igual- mente ja dissemos nesta revista; a composigao dos tres tumulos, a Diogo Pires-o-Mogo; o retabulo a Nicolau Chanterene. Os tumulos do lado direito sao de novas epocas e autores. Ao lado esquerdo ha a composigao geminada dos arcos com as estatuas jacentes de Aires e de Joao da Silva. Separado e colocado ja no piano em que assenta o altar, ao lado honorifico deste, esta o arco de D. Beatriz de Menezes. Dentro dum enquadramento rectangular, recorta-se o mesmo, de entrada cortada em bisel e limitada por colunelos que se continuam na curva. correndo entre os mesmos uma decoragao inteiramente renascente. A pe^a tumular ocupa o fundo do vao; a face da area, do mesmo periodo. tem a cada lado o brasao de D. Beatriz (partido em pala, e na da esquerda heraldica o campo liso, de ouro, dos Meneses, na da direita, o leao dos Silvas), enchendo o espago livre uma larga folha de perga- minho, na qual, em capitais romanas, dispostas em oito linhas, se Ic: AQVI lAZ DONA BRITIZ DE MENESES MO LHER DAIRES GOMEZ DA SILVA GOVERNADOR QVE FOI DE LIXBOA AYA DA ESCLARECIDA RAINHA DONA ISABEL MOLHER DELREI DOM AFOMSO O QVI(n)TO E DEPOIS O FOY TANBEM DE SEVS FILHOS ATE QVE SE RECOLHEO A ESTE MOESIEIRO DE SA(m) M(AR)C0S ONDE A MOR PARTE DELE FEZ E ASI DAS RENDAS DOTOV 305 20 A estatua jacente e um respeitoso aproveitamento do tumulo antigo. Esta com a da Duquesa de Coimbra, D. Isabel de Aragao (que nele nao chegou a ser sepultada) sao as duas jacentes femininas que a zona artistica coimbra do seculo xv conserva. Ve-se que houve dificuldades na adaptagao, relativamente a largura; tiveram de cortar a tampa, ficando a estatua levemente transbordante. No rebordo livre lavraram ornato de folhas, renascentista. Deveria ter sido mandada esculpir nos ultimos anos da sua vida (fal. — 1466); seu autor foi um daqueles escultores anonimos de que Tumulo de D. Beatriz dc Meneses OS trabalhos do inventario artistico do distrito revelaram imagens avulsas, podendo-se ligar com certas. Representa-a como senhora de idade, parecendo que o artista se deveria ter aproximado dum retrato. Veste uma tunica que, como nas imagens, Ihe deixa ver a ponta dos sapatos, apertada por cordao de nos, como de monja, e do qual pende a direita uma bolsa meia oculta. Caido dos ombros um manto, nao apertado na frente, de pregas direitas, mais rigidas que as do vestido, como se fora de tecido de maior espessura. Um oral fino moldura-lhe o rosto c envolve o peito. Da cabeQa cai um veu que nao passa dos ombros. Os bragos estao dobrados; na mao esquerda sustcnta um livro fechado e com forte pregaria; do mesmo brago pcndem-lhe umas contas, enfiadas em cordao, de globulos alternada- 306 mcnte esfericos e em olivas; apcila nu mao dircila um rolo, que so nao pode saber o que qucira significar, porque nao sobressai do pun ho fechado, a nao se tratar de um bordao. Repousa a cabega em singcla almofada. Era o vestuario de scnhora viuva ou retirada do mundo sem ter professado. Vestuario equivalente ao da outra vitima de Alfarro- beira, de igual grandeza de alma nos revezes, a Duquesa de Coimbra. em Santa Clara, estatua, porem, sai'da de maos mais capa/.cs. Seme- Ihante ainda ao «da senhora de idade» nos paineis de S. Vicente, onde o veu da cabega toma certa elegancia, dobrando-se e sobrepondo-se. O frontal do tumulo, com os escudos de Coutinhos e de Mouras, que esta fora, incrustado na parede, foi a verdadeira razao deste artigo. Utilizado como simples pedra de alvenaria, ali posto na recons- trugao, fica-lhe oculta pslo contraforte cerca de metade: muito muti- lado, afasta qualquer ideia de colocagao intencional. Relativamente ao interior, corresponde ao tumulo de D. Beatriz de Meneses, mas em nivel mais baixo. A parte que ficou a vista foi a da metade da esquerda, cortando a meio o escudo dos Coutinhos e deixando livre o dos Mouras. Cer- cava-o um cordao que em cima e em baixo esta mutilado e que nao aparece naquela extremidade da esquerda. Do escudo central parte um ramo de silva, em ondulagoes irregulares, por tendencia natura- lista, e de tratamento alastrado, que enche o campo entre os dois escudos e continua, cercando o do extremo. Da parte central do escudo medio, tern de comprimento 0,84 m., o que daria na totalidadc 1,68 m.; de altura 0,55 m. Falta a molduragao saliente, que clevaria as dim.ensoes. A forma dos escudos e a tradicional do nosso seculo xv; de tra^ado inferior como de arco gotico, com ponta em bico. O da esquerda e de Mouras, com sete castelos (tres torres dentro de uma cerca) mas nao dispostos como usualmente se encontram (1, 2, 1, 2, 1) e vem no Livro do Armeiro-Mor. mas em bordadura, tres a cada lado, e um ao centro, no umbo. O da direita, que era o central seria de cinco estrelas de cinco pontas, vendo-se somente a inferior da direita heral- dica, estando lascado o ponto que ocuparia a de cima, e, atraves da fisga que a pedra do contraforte deixa, descortina-se a medial: cram pois cinco estrelas dispostas em aspa. Podera ainda existir o escudo da parte da direita de quem o examina, oculto pclo contraforte, se nao foi fragmentado. 307 Decorativamente, e uma pepa ornamental do meado do seculo xv, a proceder a arte do tiimulo de Fernao Teles de Meneses; um elo. duma cadeia artistica que, apesar do seu estado, merece ser considerado. Naturalmente nao se pode ficar limitado a este aspecto; surgira ao espirito de quern quer se seja o desejo de indagar da pessoa a quern tivesse pertencido. Aires da Silva, a reconstruir a capela e a mandar executar a serie de tres tumulos (um para ele e para a esposa, outro para os pais e ainda o da avo) teria de levantar as cinzas respectivas de qualquer ponto em que se conservassem, ou da terra, sob campa, ou de qualquer area petrea. O resto dessas campas ou desses tumulos para onde iria? Este frontal poderia ser de um deles ou dalgum daqueles que, desde a funda^ao da capela primitiva ate 1522, ai foram sepultados. Falta um escudo, um elemento de identificaQao. Era necessario procurar nos ramos genealogicos da familia. Numa primeira indagagao pareceu-nos que poderia ter pertencido a D. Branca Coutinho, esposa do quarto senhor de Vagos, o pai de Aires; OS Mouras ficavam porem injustificados. Deviamos ter comegado pela fundadora do convento, D. Beatriz, tanto mais que e bem manifesto a quem saiba ver que a area actual e do seculo xvi e so a estatua e antiga; tarde nos lembramos dela, e era ao seu primelro tiimulo, daquele tumulo em que tanta grandeza e tao grandes infortunios se encerraram, que o frontal pertencia. D. Beatriz de Meneses era filha de Martinho de Meneses, segundo senhor de Cantanhede e de D. Teresa Vasques Coutinho, que foi camareira-mor da rainha D. Filipa de Lencastre; neta materna de Vasco Fernandes Coutinho, senhor de Leomil, e de sua mulher D. Bea- triz Gongalves de Moura, que fora aia da mesma D. Filipa. Assim se encontram os Mouras e os Coutinhos a representar sens costados maternos. Seria o outro escudo o do pai, de Meneses, seria o da sua alianga, isto c, Meneses e Silvas? Era mais natural que se tratasse deste; partido em pala, na primeira o leao dos Silvas, pelo marido, na segunda o campo liso, de ouro, dos Meneses. Foi este que o neto mandou esculpir na area. Nao aproveitou a antiga, possivelmente, por querer dar-lhe nobre epitafio, a indicar sua alta categoria e a acentuar que a mesma se devia a fundagao monastica. Parece irregular essa representagao, com o predominio da linha- gem materna; no entanto, irregularidades e desequilibrios equivalentes se encontram tanto nos tumulos isolados de senhoras como nos comuns a marido e mulher; regras era de nao as haver. 308 Para nao sairmos do seculo xv, e para so citar alguns exemplos, vemos no de D. Bcatriz Percira, cm Vila do Conde, repetir-se o da alianga Braganga-Pcreiras; na da Duquesa de Coimbra, igualmente so infantes de Portugal e Aragao; no destes mesmos, na Batalha. a urn lado, o de D. Pedro, a meio o da cruz da S. Jorge, a esquerda o mesmo de Coimbra; no de D. Duarte de Meneses, em Santarem, que a piedade da esposa consagrou a sua memoria, num so o dele, noutro o da alianga; ainda em S. Marcos, o de Fernao Teles de Meneses, erguido ja pela esposa, tem a direita o dos Silvas-Meneses, a esquerda o dela, D. Maria de Vilhena e, para vincar que e o de solteira, com o cscudo em lisonja, ao centro o da alianga; mas onde maior aproxima- gao ha daquele conceito e nos de Rui Gomes de Alvarenga e de sua mulher D. Melicia de Melo, na igreja da Graga em Lisboa, que estao sob um arco, postos de topo, o daquele para a esquerda de quern os olha, tendo ao centro o seu brasao, esquartelado de Vasconcelos e Teixeiras, entre dois outros, o paterno dos primeiros e o materno dos segundos, o daquela, o seu pessoal, que e partido, tendo na pri- meira pela o do marido e na segunda o paterno, que e Melos com bordadura de Albergarias, entre o do pai, aqucles Melos, e o da mae, Freires de Andrade, estando de permeio dos escudos, num e noutro tLimulo, o emblema repetido de um compasso, sob dois desenhos, o de compasso comum e o de medidas rigorosas. * Estavamos neste ponto e interrompemos, para ir a S. Marcos ver de novo a figura de tao nobre senhora: e agora, a retomar a pena, acabamos de chegar de St/'^ Clara, do exame do tumulo da Duquesa de Coimbra. daquele tumulo onde nao chegou a des- cansar e foi para a filhinha Isabel, para aquela que serviu de tema ao Dr. Teixeira de Carvalho, no formoso artigo — Uma madeixa de cabelos louros. Num e noutro lugar pcrpassou-nos pelo espirito o desastre militar e moral de Alfarrobeira e a imagem de D. Beatriz, a aia dos filhos de D. Afonso V, que, dotada de excepcional grandeza de alma, soube orientar a rainha e congragar-lhe o amor do esposo, manter a digni- dade do marido, obter-Ihe o perdao e o dos filhos, conseguir a resti- tuigao dos bens e, mais tarde, licenga da divisao da casa nos vinculos de Vagos e de Unhao, para acabar modestaniente a vida como se fora monja, quase ao tempo em que o mosteiro se conclui'a. 309 Passamos pelas narragoes dos tempos antigos, a registar friamente nomes e datas, pelos monumentos artisticos a anotar e a confrontar seus estilos, rogando em grandezas e declinios, sem meditar nas desme- didas ambigoes e nas torvas maquinagoes duns, nao nos apercebendo do caracter diamantino de outros, e ainda daquelas qualidades, que podemos qualificar de divinas, de certas figuras de mulher, que deram vida e educaram o espirito daqueles que fizeram a grandeza da nagao, estimularam os fortes, ampararam os vencidos e os desiludidos que tombavam, cercando ainda de cuidados os que desapareciam da cena da vida e, a seu lado, iam ficar, passando rosarios feitos de contas de saudade e de amor. O tumulo de Fernao Teles de Meneses, tendo sido numerosas vezes reproduzido, nao necessita de pormenorizada descrigao. O enquadramento e feito por arco gotico, como de claustro, sem capiteis a separarem os pes direitos da parte curva, cairel de arquinhos a debruar o vao. A area e tratada com esmero: folhagem variada e crespa, dum gosto ja pre-manuelino, enche-lhe as partes planas e amolda-se aos cordoes; no campo superior, o simulacro dum pergaminho vai de lado a lado ostentando larga inscrigao; no de baixo, tres brasoes: para a nossa direita a da cabeceira, o escudo de Fernao, esquartelado do leao dos Silvas e do campo liso, de ouro dos Teles de Meneses, brasao de filho segundo; para a esquerda o dos Vilhenas, que era o da esposa, D. Maria de Vilhena, com o escudo em lisonja; ao centro novo escudo, o da alianga, partido de um e de outro. mas a pala dos Vilhenas a direita heraldica, o contrario do regular. O que torna excepcional o tumulo, o destaca no nosso meio, e o vasto dossel, cobrindo o guerreiro como tenda de campanha, cujos panos dois pcquenos selvagens abrem e levantam, a produzir tanto um pregueado anguloso como cascata de encanudados. O cavaleiro dorme face a Deus, de maos postas, com armadura de placas e, sobre a mesma, uma dalmatica curta, broslada de suas armas. A composigao e dum raro efeito mas deixa em suspenso certas interrogagoes: qual a razao porque o arco se nao Integra em outras arquitecturas compiemcntares, como os dos infantes na Batalha, os dos Almeidas em Abrantes, o de Duartc de Meneses em Santarem? Porque nao se adorna o extradorso da flora enroscada dos cogulhos? Da impressao de ter sido estudado para um si'tio apertado, onde essa 310 riqucza ornamental sc nao pudcssc desenvolver. Todavia, o mais tardio, chamado de Joao Gongalves Zarco, na se do Funchal, lambem nao possui essa ornamentagao externa. O Ictreiro, cm minusculas goticas, disposto em sete linhas diz: Aqui repousa o corpo do muy honrrado e muy nobre tidalgo e caualeiro fernam telez de meneses filho de ayres gomez da silua e de dona briatiz de meneses moordomo moor e gouernador da muy escrarecida S(e)n(ho)ra dona lyanor estonces princesa e agora Rainha de portugal O qual asy em africa como em castela per terra e per mar taaes seruigos e feytos na paz e na guerra fez que ouue a morte enueia do seu crecimento pois no milhor da uida e leuou uiueo xxxxb annos e meo e faleceo na era de mil cccc e Ixx e bii permero dia da bril Dona maria de uilhana filha de martim afom de melo e de dona margarida de uilhena aya da meesma S(e)n(ho)ra Rainha tam nobre per uer tudes como per real linhagcm huu(m)a soo sua molher o mandou fazer em uida e aqui se se mandou sepultar pera iazerem os ossos tam iuntos como forom as uontades uiueu Na publicagao deste letreiro na cronica deu-se transposigao de granel: as linhas de 14 a 20 da pagina 56 deviam seguir-se ao texto da pagina 57; isto e, no letreiro de Aires Gomes da Silva ficou inadver- tidamente incluido o que pertencc a Fernao Teles de Meneses. Alem de insignificantes gralhas, houve uma na idade: saiu como la estivesse 35 anos e meio, quando sao 45 (xxxxb). Nunca se veri- ficam excessivamente ietreiros e suas transcri^oes, quer feitas por nos ou por outros; copiam-se, transcrevem-se para as minutas, passam-se estas a limpo, ha a composigao, correcgoes apressadas e, em tantos passos, origina-se um erro; o que quer dizer, sempre bom e emendar mas nao censurar. Como foi dito, Fernao Teles veio a ter, por nova merce, parte das terras do pai e foi senhor de Unhao e Cepaes, de Meinedo, de 311 Gestapo e da Ribeira de Soaz; foi comendador de Ourique e mordomo- -mor e governador da casa da rainha D. Leonor. Faleceu, o que o epitafio nao diz, duma pedrada acudindo a uma desordem em Alcacer do Sal, na noite em que chegara aquela vila, tendo sai'do de Santarem nessa manha, a 1 de Abril de 1477, isto e, partiu a correr para a morte. O pai de D. Maria de Vilheiia era senhor de Ferreira de Aves, na Beira Alta. O Dr. J. M. Teixeira de Carvalho, fundado em que D. Leonor e chamada rainha na inscrigao e que so em 1478 foi dada licenga aos frades de entrarem na posse dos bens doados por D. Maria, concluiu que o tiimulo fora mandado fazer por esta em 1478 a 1481. Nos, porem, julgamo-lo mais tardio, talvez ja dos fins do peniiltimo ou comegos do ultimo decenio desse seculo xv. A fundagao e dotagao para uma capela de missas, com toda a fazenda de Condeixa e obrigagao de uma, certamente diaria, e de 14 de Maio de 1478, a licen^a de D. Afonso V de 21 de Agosto de 1478 igual- mente, a posse tomada em 10 de Julho de 1481. Este vinculo teve mais tarde certas alteragoes. Fundagao pia e execugao do tumulo sao coisas diferentes; o tumulo foi construido por D. Maria de sens bens e nao pelos frades com as receitas da dotagao. O ano de 1481 nao sera um termo mas um comego; depois desse ano e que a obra se deveria ter iniciado, pois que so entao D. Maria adquiria o direito de a poder executar numa igreja de que nao era padroeira. Falta-nos, porem, um ele- mento essencial, o ano do falecimento desta senhora, data que nao houve o cuidado de acrescentar ao epitafio, que havia sido redigido de modo a recebe-la. Temos em frente e na distancia, indistinto, so a notar-se pela mancha branca que o destaca, mais esbatida hoje na neblina da manha, o conjunto do pago novo e da velha igreja, levantado numa plataforma, semeada do escuro das oliveiras, e por fundo o verde triste dos pinhais. Nao nos podemos furtar a uma filosofia facil, propria de quem esta a entrar em idade e, pela profissao, e levado a meditar na tran- sitoriedade da vida. S. Marcos e um daqueles lugares altos do espi- rito, como certos santuarios de cimos que se sucederam secularmente a representar cultos varios: a uma quimera de grande senhor, que desejava que suas cinzas repousassem no lugar de seu encanto, suce- dem OS infortiinios dos seus, uma congregagao de paz, oragao e estudo 312 se fixa, as revolugoes a dispersam, um incendio aniquila os edificios, e so as seis estatuas jacentes de guerreiros e a de uma senhora conti- nuam, de maos postas, perpetuando a cspcrariQa dos que ali dormem. Hoje. sobre as rui'nas, ergue-se um nobre palacio, mas em volta, na regiao imediata, os pa^os dos que sc mandaram sepultar na igreja, ou ai foram orar, os dos Coutinhos, donatarios da Baia, dos Almadas, dos Perestrelos, dos Vasconcelos de Quimbres, em cada inverno que passa, mais se desagregam e se somem como as cinzas e os nomes dos grandes que os habitaram. (Em «Ocidentc», vol. Lxxvin. Lisboa, 1970.) 313 XXV O PA^O DOS SENHORES DE POMBEH^O NA CIDADE DE COIMBRA Ainda nao o tinha identificado quando escrevi o volume do Inven- tario Artistico da Cidade de Coimbra. Porem, na introdugao do seguinte, o do Distrito, ja me referi a casa dos Cunhas de Pombeiro da Beira, situando-a no seu clima artistico e habitacional. Ja nao e possivel, infelizmcnte, ir aponta-la; tenho de me limitar a indicagao do local em que se ergueu e dos restos que dela existem. Conserva-se, todavia, a porta dc cntrada, esse elemento arqui- tectonico que define artistica e moralmente uma casa, a Estrela, tratada em manuelino naturalista. Tao bcla pareceu aos franciscanos da provincia da Conceigao, da observancia mais estreita ou capuchos, que a colocaram na igreja do seu colegio-conventual de Santo Antonio da Estrela, aonde se conserva. Bom destino o seu: porta de palacio, entrada de Igreja. O tema puramente arquiteconico que, no ultimo gotico, seria um arco conopial erguido em duas colunas, foi transmutado pelo canteiro manuelino em fortes calabres que formam robustos nos, naquela altura em que deveriam ficar os capiteis, e se enovelam na jungao superior. Abaixo deste vertice, na verga recortada, destaca-se escudo heraldico, de emblemas raspados, envolvido ainda na fita que diz: SPES MEA IM / DEO ESTE (spes nieo in Deo est). Do outro lado da via, a casa dos Alpoins mostra, voltada a rua do Correio, porta semelhante e, no alto da esquina, o brasao igual- mente raspado, no qual so permaneceu a filateria com o grito da familia: Notra Da ma da 1 1 Puy. Nas demoligoes dos edificios conventuals, que tinham side ulti- mamente adaptados a industria e que se incendiaram. foram encon- trados capiteis de duas epocas: uma recuada, o sec. xiv, alguns outros 315 do sec. XVI inicial, manuelinos, do tempo da porta. Os primeiros eram de galeria de palacio e nao de capela, como parecera a falecido escritor. Capiteis e porta da epoca do rei Venturoso a que casa teriam pertencido? Nao havja di'ividas, era bem sabido: a de Garcia de Almeida, filho do segundo conde de Abrantes, sobrinho do bispo D. Jorge de Almeida, o qual D. Joao 3.". a 1 de Mar?o de 1537, nomeara reitor da universidade transferida. Ali estiveram, por meses, as aulas de algumas faculdades. Sofreu a casa um incendio, nao muitos anos antes de 1554, grave acidente a que se refere o Elogio de Coimbra ( Conimbricae Encomium) de Inacio de Morais, em versos latinos de puro recorte: Hinc ad Gartiae praeclara palacia tende, Quaqiie patent tanto limina digna viro. Sed partem (ah) magnam hausenmt incendia nuper Dun I vento exoritur J/annna repente furens: Celsaque tecta ruunt: ardet preciosa supellex, Et versa in cineres gaza opulenta cadit Apparent etiam nunc vastae signa ruinae. Luget et. abrupta mole, supcrba donnis. Elogiando os ilustres pagos de D. Garcia, lamenta o incendio que havia pouco tinha destruido grande parte; forte ventania atigara as chamas, caindo os tectos, ardendo o precioso recheio, tornando-se em cinzas aquela opulencia. Viam-se ainda as grandes ruinas, cau- sando desmedida pena a soberba casa abatida. Magnifica elegia, como nao teve nenhum dos outros pagos conim- bricenses ja desaparecidos. Perguntando-se, pois, quais os moveis heraldicos que o escudo raspado teria ostentado, era natural que se respondesse que os dos Almeidas: de vermelho, seis besantes de ouro entre cruz doble e bor- dadura de ouro tambem. Sao as armas que se veem no retrato do mesmo reitor, na sala dos actos privados. Tive, todavia, sempre duvidas que o reitor usasse as dos Almeidas tal como ali estao, sem quebra, pois que so aos representantes da casa de Abrantes pertencia traze-las direitas, isto e, plenas. O proprio bispo as esquartelou do leao dos Silvas, como filho segundo, o que se pode ver em diversos lugares da cidade; de igual modo as esquar- telou um irmao dcste, Pedro da Silva; so de Almeidas mas tendo 316 chefc de vermelho com cruz de prata usou urn outro, o 6." prior do Crato, Diogo dc Almeida {Livro ilo Anveiro-nior, publicado pcio sr. A. Machado de Faria). Ora Garcia nao so era filho segundo. era bastardo; por isso mcsmo nao podiam ser aquclas, sem mais nem menos. Isto mostra o valor e a cautela que, concomitantemente. se deve tcr com aqueles retratos. A maior parte nao passara de fisionomias convencionais e os brasoes de mera armaria interpretativa. Foi o proprio trabalho do Inventario Artistico da Cidade que me levou a verdadeira IdentificaQao. A divisa era a mesma de outra pedra de armas que tinha side encontrada nas demoligoes do claustro da Se Velha, e essas armas nao eram mais que as dos Cunhas, senhores de Pombeiro da Beira. Toda- via nao me pareceu que tanto essa identidade de divisas como a propria epoca fossem suficientes provas e nao del opiniao. Estava a acabar de se imprimir o volume quando saiu o notavel trabalho — O Dr. Pedro Alpde, portidario do Prior do Crato — do ilustre historiador senhor Antonio Machado de Faria, que me levou a uma notula acerca da casa dos Alpoins, na adenda final do mesmo volume. Podia ter acrescentado outras, que o mesmo trabalho dava para diversas. Um dos documentos ali publicados elucidava duas coisas do meu maior interesse: a torre de Belcouce e a casa dos Cunhas. Era o aforamento a Pedro de Alpoim, o senior, lavrado a 30 de Janeiro de 1520, nada menos daquela torre. Transcreverei parte que mais interessa a este caso. «Peramte elle comtador pare<^eo Pero dAlpoem caualeiro da casa do dito senhor ^-idadado e morador na dita (;idade e Ihe dise como a porta de Bel/couce Junto das casas da morada delle Pero dAlpoem o dito senhor tinha huma torre miiito daneficada sabre a dita porta de Beilcouce que parte da parte do Norte com pardieiros de Joam Ahiarez da Cunha que foram de dom Afonso dc Tayde aleayde moor da dita <^idade e do Sull parte com rua pruuica que vay por bayxo da dita torre pela couraca a Via Longa e da parte do Leuante parte com rua pruuica que vai da Rua das Fangas por amtre suas casas e quimtaes e casas do dito Joham Aluare: e muro da dita ^idadc e da parte do Ponente parte com barroquas do dito Joham Aluarez da Cunha que estam sobrc a dita coura<,'a e sobre o rio de Mondeguo.» 317 Deste trecho e do exame do local, a Estrela, se ve que a torre ficava dentro do jardim vedado que antecede o edificio do Governo Civil (casa do dr. Angelo da Fonseca); seguia-se pequeno casebre que corres- pondera ao arranque da arcada, isto e, dele para dentro do edificio, ficando logo a seguir a casa dos Cunhas, assente na parte restante do proprio e actual edificio, seguindo para o patio e abrangendo a sua area talvez a igreja, como parece. Subindo-se do rio, acabava a rampa dentro do jardim, como que em patamar, para dar entrada pela direita a porta, voltada ao sul e que atravessava de lado a lado a torre, que era consequentemente porta-torre. Esta ocupava o espago entre a arcada lateral e o gra- deamento do jardim, para o lado de cima. Passada a porta, ficava, para a esquerda, em descida, a rua das Fangas e a direita, em subida, a couraga de Lisboa. Facil e pois de ver agora a topografia, seguindo a transcrigao do documento e recalcando o que acabo de escrever. A torre e a porta formavam uma unidade, tal como se ve no dese- nho de Baldi, de 1669. Para o norte, isto e, na direcgao da rua das Fangas, confrontava com os pardieiros dos Cunhas; ao lado contrario com a rua que atravessava a mesma torre e descia a couraga da Estrela, e se continuava pela rua da Alegria, pela estrada da Beira, para a Arrega9a e Pinhal de Marrocos, a Via Longa antiga; do nascente con- frontava com a rua que era a continuagao das Fangas, separava as casas e quintais dos Alpoins (Direcgao Distrital de Finangas) das dos Cunhas (Governo Civil) e a muralha que se continuava da torre pela couraga de Lisboa acima; do poente, voltado ao rio, era o escarpado (barrocas) entre a casa dos Cunhas e a parte descendente da courapa, para o Mondego. Documento maravilhoso tanta para a casa dos senhores de Pom- beiro como para a torre de Belcouce! Nao me restaram duvidas: a casa, anteriormente a Garcia de Almeida, fora dos Cunhas. Ja, senhor desta certeza, me referi, como deixei dito atras, no volume do distrito, a mesma, sob esta identificagao. Como teria passado a casa ao reitor? Esclareceu-me outra publicagao do mesmo douto investigador, senhor Machado de Faria, o Livro clc Liiihagens do Seculo XVI (Lis- boa, 1956). 318 Le-se no titulo dos Almeidas: «Doni Garcya dAlnwycIa Jillio bastardo do condc Doin Joao c jimao do conde Dom Lopo e dos oiitros e casoii com Dona Tonni.sa filha dc Joao Aliiarez da Cimha scnhor de Ponbcyro de que ouue a Dom Joao e a Dona Maria da Sylua.n Referenda mais breve se encontra no titulo dos Cunhas. Passou, por conseguinte, por casamento e heranga. Joao Alvares da Cunha (Jan'Alvares, de certos lugares) deveria ter sido sepultado no claustro da Sc, como parece indicar o rcferido brasao encontrado nas obras. Alem do pago e do seu tumulo, aqui cm Coimbra, deixou em Pombeiro o nome vinculado a obras de Arte: o turibulo de prata e o calice, da epoca manuelina. Fez tambem obras naquela antiga vila, de que permanecem fragmentos. Deveria ter falecido por 1529. O filho e herdeiro da casa de Pombeiro, Mateus da Cunha. logo que recebeu o senhorio, mandou esculpir o seu tumulo, com estatua jacente, que persevera na igreja daquela frcguesia. O pago de Coimbra nao foi mandado construir simplesmente por vaidade, para possuir casa na cidade; deveria ter-lhe servido de principal residencia e centro dc relagoes com a gente da regiao envol- vente, a comegar pelos seus parentes, os Cunhas de Antanhol, que por essa altura tambem mandaram reformar a casa, mas modestamente. Gozou do senhorio, como donatario da coroa, de Casal de Alvaro e Bolfiar (povoagoes do concelho de Agueda que andavam habitual- mente unidas), cujos moradores tiveram uma questao com o mesmo Jan'Alvares, contra o qual foi dada sentenga em 1504. A mae do mesmo Joao Alvares, D. Leonor de Sousa, depois da morte do marido, retirou-se para o convento de Semide. Ai foi aba- dessa uma sua filha, irma daquele, D. Brites da Cunha. que falcccu em 1553 e cuja campa se conserva na sala capitular. O referido filho e herdeiro do senhorio, Mateus da Cunha. andou envolvido numa historia muito grave com uma das monjas, no que interveio o bispo D. Jorge de Almeida, e de que foi levado conheci- mento a D. Joao 3.". * * O brasao de armas que a casa de Pombeiro usou, tanto no ramo principal como nos transversos, de que conhego onzc documentos figurados que se escalonam do principio do sec. xvi aos fins do xviii, 319 foi o seguinte: partido em pala; na primeira, em campo de ouro nove cunhas de azul, dispostas 3-3-3; a segunda cortada, tendo no primeiro Portugal-antigo (em prata cinco escudetes de azul, dispostos em cruz, cada um carregado de cinco besantes de prata); no segundo, de ver- melho (?) cinco flores de lis de ouro (?). Eram estas armas que estariam (e ja se viu como o posso afirmar) no escudete da entrada do seu pago de Coimbra, como sao as do escudo proveniente do claustro catedralicio. Joao Alvares juntou a estes dois escudos a divisa Spes mea in Deo est que se nao ve a circundar o pequenino escudo do calice de Pom- beiro nem no que pertenceu ao pelourinho da mesma antiga vila; isto e, divisa individual que nem sempre usou. Os heraldistas tem encontrado dificuldades em saber a origem dos dois quarteis de Portugal-antigo e das flores de lis. As nove cunhas sao as do tronco que foi a grande casa de Tabua. O visconde de Sanches de Frias (que devia estar escudado no genealogista Sanches de Baena, que Ihe prefaciou a monografia) escre- veu que Portugal-antigo viera por D. Maria Gon^alves (de Sousa), neta dum bastardo de D. Afonso 3.°, casada com o primeiro senhor da terra Martim Lourengo da Cunha. Os lises considerava-os provindos da rainha D. Leonor Teles, que casara em primeiras nupcias com Joao Lourengo da Cunha. Braamcamp Freire tambem originava na casa de Cantanhede um dos quarteis. Estas atribuigoes sao feitas meramente por tenteio, a percorrer ascendentemente as linhas de geragao. Sao como escrevi no Inven- tdrio Artistico do Distrito de Aveiro, Zona Sid, explicagoes que pare- cendo razoaveis para cada caso, visto separadamente, depois de exame cuidadoso se ve que se encontram em oposigao aos escudos figurados existentes, os quais ou Ihe sao anteriores, ou, por pertencerem a ramo diferente, se nao podem acomodar a mesma razao. Por exemplo, o escudo da rainha, o dos Teles de Meneses, do qual ha dois em Coimbra, e inteiramente liso, so de ouro. Os cinco escudetes e os lises andam em ramos segundos dos Cunhas, senhores de Tabua, tanto nos de Pombeiro, como noutros; assim se vcem nas armas do bispo da Guarda D. Gonpalo Vasques da Cunha (fal. 1426), como nas de Joao de Albuquerque, sobrinho do bispo, no seu tiimulo de Aveiro, se aqui nao for simplesmente Albuquerque com um quartel de Cunhas. Tem dc se procurar uma origem bastante antiga, e essa ainda na propria casa-mae. 320 Portal da casa dos Alpoins 21 O brasao dos senhores de Tabua, o tronco de todos os Cunhas Portugueses e espanhois, pode-se ver, por exemplo, nesta cidade, na frontaria do Seminario, no do bispo D. Miguel da Anunciagao, pelos condes de Povolide, que o usaram tal como a casa fundamental: — as nove cunhas, tendo em bordadura cinco escudetes. Estes escudetes nos senhores de Tabua vinham-lhe dos Albergarias, de que ficaram com a representagao primaria. Todavia esta bordadura nao justifica OS escudetes de certos ramos. Uma incognita das tantas da armaria portuguesa. O mesmo que se deu na casa de Pombeiro, em ser inalterada a composigao heraldica, tanto na linha da representagao, ate a varonia passar aos Castelos-Brancos, como nos ramos secundarios, e nestes pelo menos ao fim do sec. xviii, se verificou na casa originaria, a de Tabua. Conservaram as nove cunhas com a bordadura dos cinco escudetes^ como era natural, os representantes, que em 1760 foram elevados a condes da Cunha. Igualmente os conservou o ramo lateral dos condes de Povolide. De igual modo procederam alguns bispos. O do Porto, D. Rodrigo da Cunha (sec. xvii) nada juntou por diferenga ao escudo, completando so o conjunto heraldico com o chapeu e as borlas costumadas. Antes do episcopado usou-as tais quais e (em lugar daquelas insignias) com o elmo, respectivo paquife e„ por timbre, o meio grifo; assim se vemi no rosto dos Lusiadas, tanto na edigao de 1609 por Crasbeeck, como na de 1612 de Vicente Alvares. No mesmo seculo, o bispo capelao-mor D. Manuel da Acunha colocou fora e acima do escudo (e nao em chefe) as letras AM. O referido prelado conimbricense do sec. xviii, D. Miguel da Anunciagao (dos Povolides), sobrepos igualmente ao escudo a cruz adorada por dois anjos, que era o emblema do mosteiro de St.^ Cruz, mantendo inalterada a composigao do mesmo escudo, como se pode ver no seminario, na igreja da Pedrulha, alem de outras partes. Deve haver mais exemplos; foram estes os que se m6 depa- raram cm singela busca. Na introdugao ao volume do Invcntario Artistico do Distrito escrevi que as construgoes domiciliarias da cidade, da epoca do manue- lino naturalista, tern o melhor exemplar na casa de Sobre-Ripas, isto 322 e. na sua parte mais antiga, vindo a seguir as porias das casas dos Alpoins e dos Cunhas de Pombeiro. Ora a primeira mctade do sec. xvi deu feigao propria a cidade, que hoje, a cada momento dcsta renovagao intensa, se ve perder c que olhos argutos e compreensivos ainda reconstituem sem dificuldade. Construiu-se no gotico final, no manuclino naturalista. na renas- cen^a. A nobreza provincial e a aha burguesia marcaram a sua pre- senga no casario, por constru(;6es de relative volume, cheias de pitoresco. Foram diminuidas na sua importancia urbanistica pelas grandes manchas construtivas dos colegios monasticos, tal como a respectiva nobreza tradicional foi absorvida e os seus nomes ofuscados pela expansao da organica dos estudos maiores. A primeira metade do seculo fechou a corrente tradicional citadina, que era dominada pela fidalguia, pela se e pelo mosleiro criizio. Os portais daquelas tres casas definem o manuelino naturalista nas construgoes domiciliarias. Este aspecto do manuelino na cidade e anterior a infiuencia da renovagao cri'izia, como ja escrevi no volume atras citado. O exemplar princeps continua a ser a janela dum antigo pago de TentLigal, datada de 1507. Marca ela o comego da corrente natu- ralista, a qual aquela renovagao de St.^^ Cruz nao fez mais que sobre- por-se. Os portais das casas dos Cunhas e Alpoins sao relativamente modestos, em confronto com o da rua de Sobre-Ripas, a do licenciado Joao Vaz; parecendo que os construtores se limitaram a interpretar-lhe o cordao externo. omitindo tudo o resto. O dos Alpoins tomou aspecto mais naturalista que o fronteiro. Se no destes, o dos Cunhas. os calabres que substituem as colunas partem ainda de bases de composigao arquitectonica, ali tomam como que o aspecto de borlas, e, no alto, reunem-se num cacho de romas. do mesmo teor que aqueles que as esculturas das Nossas Senhoras do tempo apresentam com a mao direita ao Menino. que amparam ao outro lado. O comego das tres obras deve estar ja na segunda decada do seculo. Em fecho poderei escrever que o pago dos Cunhas, senhores de Pombeiro, estava secularmentc morto e fica agora ressuscitado, paten- teando-se ainda naquela porta que deu passagem aos nobres senhores. aos frades e que, hoje, na igreja desafecta, nao se sabe que sorte o esperara. (Em «Diario de Coimbra», ano 29, n." 9.547 e 9.552, de 29-xi e 5-xii-1958.) 323 XXVI O CASTELO DE AV6 O castelo erguia-se no pequeno monte em cujas vertentes se encon- tra o primitivo nucleo da vila, na confluencia da ribeira da Moura e do Alva, sitio naturalmente defensavel pelo escarpado das encoslas. Era constituido por uma so cortina de muralhas. sem torres salientes, e tendo a propria de menagem a formar um dos angulos. A porta de entrada, uiiica, ficava a sul, como ainda hoje se ve. voltada para a ribeira da Moura, sobre fraguedos quasi perpendi- culares. com acesso dificil. Para la se chegar, depois de subida a rua ainda hoje denominada Coura^a. tinha de se passar pcrto da torre de menagem e seguir rente a muralha por alguns metros. Do outro lado a capela de S. Miguel (cuja orientagao nos faz crer que a actual nao seja mais que uma reconstru^ao duma primitiva medieval, nos fins do seculo xvi ou no xvii) torna impossivel a passagem por aquela parte. O caminho primitivo para a porta da capela era uma passa- gem estreitissima entre a parede norte desta e a muralha. em degraus. O muro de suporte de terras do lado exterior, formando adro, e de epoca posterior a da fortaleza, quando muito da edificagao da actual capela. Mesmo depois do abandono do castelo, na capela e a sua volta, fizeram-se consertos, pois que ali era a sede da irmandade de S. Miguel, da qual ainda existe um livro de contas no arquivo da igreja paroquial. Dr. Antonio de Vasconcelos traz na pagina 78 do seu livro — Bras Garcia Mascarenhas (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1922) — uma pequena fotografia do Castelo em 1871, obtida pelo falecido professor Antonio Augusto Gongalves, e a pag. 331 uma lamina com a ampliagao daquele cliche. E um documento valiosissimo e linico que nos mostra quase intacto o lango sul das muralhas. tal como o deixaram as obras dionisiacas. 325 As causas que deram origem aos castelos do rio Alva (Avo, Coja e Arganil) nao se mostram claramente a primeira vista. O Visconde Sanches de Frias(l) faz sua a opiniao do engenheiro Alexandre da Conceigao: «E para mim verdade adquirida que toda a regiao do Alva, compreendida entre Alvouco da Serra, acima de Avo, e Pombeiro, foi em tempos remotos o teatro de uma importante exploragao aurifera. A propria importancia das povoagoes, como Avo, Vilacova. Coja, Arganil e Pombeiro, todas na margem esquerda do Alva, em pessima situagao militar, me esta indicando que essa impor- tancia, ja grande nos primeiros tempos da monarquia, nao Ihes podia vir senao das suas condigoes industriais». Pois bem, para se conhecerem aquelas causas, e, segundo o nosso juizo, necessario remontar a dupla reconquista crista e integra-las numa cadeia de fortalezas que serviam, ao longo da Estrela e das serras que desta vao ate as ultimas elevagoes do Espinhal, de marcos entre cristaos e infieis, e que era constituida pelas de Seia, Avo, Arganil, Gois, Lousa, Miranda e Penela. Todas elas com excepgao da pri- meira e das duas ultimas, sem duvida foram sempre de pequena impor- tancia como construgoes; assim o insinua para as desaparecidas aquela situagao ao longo de acidentadas serranias que ja por si obstavam a deslocagao de grandes massas de gente armada. No periodo, que vai das conquistas de Afonso III ate a assolagao de Almansor (sec. ix-x), nao podemos saber qual fosse a importancia daquelas localidades e quais as que comegassem a ter fortificagao. Na reconquista de Fernando Magno e estabelecimento do con- dado de Coimbra de novo aquelas terras ficaram fronteirigas, como o pedia nao tanto o acaso das lutas armadas como a situagao geogra- fica, aqui poderosa condicionadora da formagao do territorio politico. Ao proprio conde D. Sesnando se atribui a fundagao de dois castelos, o de Seia e o de Penela. Ate as lutas de D. Sancho II e D. Afonso III nada conhecemos que diga directamente respeito ao castelo de Avo. O quinhentista Pedr'Alvares Nogueira no seu Catdlogo dos bispos de Coimbra, capitulo undecimo, tratando da vida de D. Pedro Soares (1) Pombeiro da Beirci. 2." ed.. Lisboa, J 899, pag. 24. 326 M Castelo de Avo e falando das lutas entre o clero e D. Sancho I diz: «No tempo d'este prelado padeceu a cleresia d'este reino, e principalmente a d'este bis- pado, muito trabalho, por ser muito contra a liberdade ecclesiastica el-rei D. Sancho, filho de el-rei D. Affonso Henriques, principe tao catholico e tao devoto, como sabemos. E tendo este rei no principio de seu reinado dado tao differentes mostras do que depois fez, porque, como temos visto, deu a esta se o logar da Covilha com tao grandes liberdades... e deu ao bispo e cabido o castello de Avo com toda a jurisdigao e direitos que tinha nele, e o padroado da egreja, e mandou que fosse couto, e gozasse dos privilegios do melhor couto que houvesse no reino em satisfagao dos dizimos que tinha levado». E mais adiante: «Ora sendo este principe tao devoto d'esta se, e fazendo tantas merces aos bispos e conegos d'ella veiu-se a mudar de maneira que parece que nao desejava senao achar modos de os vexar e perseguir; porque sem nenhuma causa nem razao Ihes derribou e arrazou por terra os castellos de Avo e de Coja, e nao consentiu que os reparassem, e punha tantos tributos aos moradores d'aquellas terras, que as despovoaram. «E porque se nao fossem, e deixassem as terras ermas, mandou deitar pregao, que nenhuma pessoa se saisse d'ellas, e mandou que todo o gado dos moradores de Avo, que se achasse fora do termo pastando, fosse perdido. O que tudo fazia, porque estes homens eram vassallos do bispo e do cabido, e por esta causa elle e seus meiri- nhos OS obrigavam a cousa desacostumadas para em tudo Ihes darem vexaQao e molestia. «Tomou muitas propriedades na Vacariga, de que esta egreja estava de posse de mais de cem annos, e tomou o couto de S. Romao, e OS casaes de Freixenedo e outras muitas terras, e, quando vinha a esta cidade, vexava aos clerigos em tudo que podia, e deitava-os fora das suas casas e mettia 'nellas outras pessoas, e tomava-lhes os man- timentos e as roupas, e nao Ihes queria guardar os privilegios e Hber- dades, concedidas por seus antecessores, e que Ihes competiam de direito, e aos clerigos que estavam confirmados pelos bispos tirava OS beneficios, e mettia outros de posse, e os introduzia 'nelles, e fazia outros excessos similhantes» (1). Termina por uma «livre e desenvolvida tradugao», como Ihe chama Santos Abranches da conhecidissima bula de Inocencio III — Vehementer nos zcliis, dirigida ao arcebispo de Compostela, que tem a data de 23 de Feverciro de 1211. (1) Dr. Pedro Alvares Nogueira, Cutdlogo dos bispos de Coimhra, nas Insti- lin\oes Chrislas, viii ano, 1.'* serie, pag. 272 e 273. 328 Lendo-se com cuidado esta parte do capilulo uiidecimo, que na publicagao de Prudencio Garcia vem sob a alinca I, logo dc comego se nota com estranheza que tratando-se da destruigao de dois castelos que aparegam naquela bula pclo seu nome, nem haja alusao a tal facto, e que somente se relatem as vexagoes que o rei fizcra «em uma villa do bispo» como com igual estranheza mais se nota tambem que todos OS outros historiadores ate aos da actualidadc descrevendo aquelas lutas, se nao refiram a tais factos. Seguidamente aparece o erro de Pedr'Alvares em alribuir a D. Sancho 1 a doagao do couto de Avo, quando foi D. Sancho II que a fez ao bispo D. Tiburcio e cabido por contrato oneroso aos 29 de Margo de 1240 (era de 1278). D. Sancho I dera so foral aqucia vila. no ano de 1187(1). Parece claro da leitura deste capitulo que Pedro Alvares tendo a sua frenle documentos que eram relativos ao Povoador juntamente com outros que presumia referirem-se ao mesmo rei, e nao sendo capaz de os harmonizar, de formar com eles um corpo uno. simples- mente os juxtapos na narragao. Sabendo nos que Pedr'Alvares era incapaz dc invcntar documentos e que o seu Catalogo se baseia essencialmente naquelcs que compu- nham o cartorio da Se de Coimbra, ficamos com um intenso desejo de saber qual fosse a epoca em que se deram as destruigoes dos castelos de Avo e Coja. Guiados por Santos Abranches encontramos que toda a parte que atras transcrevemos nao e mais que um largo resumo da bula de Inocencia IV Etsi a quihuslihet, «dirigida a El-Rei de Portugal, mandando-lhe que nao moleste o bispo e clero de Coimbra e Ihe torne a refazer o castelo de Avo e Coja, que destruiu e muitas outras coisas», como aquele A. a sumaria, dada em Anagni aos xvi das calendas de Setembro do 12." ano do seu pontificado, 17 de Agosto de 1254(2). Ha um traslado dela no livro Copia de Biillas, que pertenceu ao arquivo na Se, encorporado actualmente no da Universidade. que e tudo quanto dela se conhece (3). (1) Port. Monum. Hist., Leges et cons, pag. 462. (2) Joaquim dos Santos Abranches, Summa do Bulhirio Portti^ue:. Coim- bra 1895, pag. 321. (3) Copia de Bullas, fl. 46. E este o nome que o volume manuscrito tern na iombada, lugar iinico onde aparece, por nao tcr rosto. Santos Abranches cita-o sempre por Trastado da.s Bullas, e iitiliza exclusivamente a numeragao de paginas a lapis que ele tem, certamenle por ainda Ihe nao tcr sido aposta a de folhas de carimbo. 329 Nao a transcrevemos nem traduzimos par ali se encontrar com numerosos espapos em branco. E dum grande valor pelos factos ineditos que tras, e digna dum CLiidadoso estudo, mas que nao e prudente aproveitar sem reservas enquanto nao aparecer o original ou uma copia mais digna de confian^a. Nao queremos dar, de qualquer modo, a interpretaijao que Ihe vamos fazer, relativamente ao castelo de Avo, pois que e ele que neste momento nos interessa, um caracter de absoluta certeza, mas tao somente apresenta-la como hipotese de certa probabilidade. Nao tendo «os prelados do reino tomado a peito a causa do seu colega portuense» nas lutas com D. Afonso III, nem os historiadores apontarem outras dissengoes com o clero antes daquelas que foram motivadas pelas inquirigoes iniciadas em 1258, temos de recuar os factos narrados naquela bula e, conjugando-os com outro lugar de Pedr'Alvares, de que ha um eco em Herculano e que Miguel Ribeiro de Vasconcelos desenvolve, fundando-se todos no mesmo documento, coloca-los no periodo da guerra civil que levou ao exi'lio o infeliz D. Sancho II, nao obstante pertenceram a facgao do Bolonhes o bispo de Coimbra, nessa epoca D. Tiburcio, e o cabido, senhores das for- tificagoes arrasadas. Escreve Pedr'Alvares Nogueira: «Durando as differengas entre el-rei D. Sancho e seu irmao D. Affonso um mestre eschola d'esta se, que se chamava Pedro Martins, tomou em sua guarda da mao dos conegos o castello de Avo, fazendo homenagem d'elle, e que o nao entregaria, senao a quem o cabido mandasse; mas, quebrando o jura- mento, o entregou a el-rei D. Sancho. Pelo que o arcebispo de Braga, legado apostolico, o excommungou; e andou muito tempo vexado porque fizera esta entrega contra vontade do cabido. Em satisfagao d'este aggravo deu ao cabido os casaes de Almalaguez e Alcabideque, e muitas propriedades em Ovoa, com obrigagao de Ihe fazerem um anniversario por sua alma» (I). Fundando-nos nesta citagao e na bula julgamos que se pode esta- belecer a seguinte ordenagao dos factos. Tinha o castelo debaixo da sua guarda o mestre-escola Pedro Martins. Movido quer pelas suas ideas de legalidade, vendo neste rei o soberano de direito, quer, mais provavelmente, por pressao de (I) Dr. Pedro Alvares Nogueira, he. cit., pag. 309. O documento de doagao e de 30 de Setembro de 1248. A. Herculano, como ficou dito no texto, faz-lhe uma Icve referenda na sua Histoiia de Portugal (nota 1 a pag. 72 do tom. v, da ed. de 1916, liv. v, parte 2.''). 330 D. Sancho II, com qucm nuiilo privara o tio deste conego, o bispo D. Pedro Scares, como diz Miguel Ribeiro de Vasconcelos (I ), fez-lhc a entrega da fortaleza. Se a maior parte da Beira se conservava fiel, havia contudo espa- Ihados por ela numerosos nucleos de rebeldia. Uma cantiga dc e.scarnho que a falecida D. Carolina Michaelis dc Vasconcelos comentou (2) refere-se aos traidores Bezerras da Beira, qualificativo que tambem Ihes deu mais tarde o Nobiliario, e as entregas ao Com/e de Castelos naquela regiao (3). Que OS partidarios do Boionhes que ali dominavam nao tivessem ficado inactivos e que as lutas costumadas em guerras civis, desde simples homicfdios encobertos ate verdadeiros combates, se tivessem dado, e de uma grande probabilidade. Foram possivelmente eies que derrubaram os castelos de Avo e Coja e que fizeram as vexagoes narradas por Pedr'Alvares, nao se preocupando que em direito as fortalezas fossem de pessoas da sua facgao, a do usurpador. De facto pertenciam ao odiado D. Sancho. e era quanto bastava para que, por um cego odio, as desejassem ver inutilizadas, pois que se nao eram poderiam vir a scr pontos de resis- tencia que Ihes fossem entravar as suas ambigoes. Acabado de pacificar o reino pela morte de D. Sancho II, que mesmo exilado ainda servia de motive de rebeliao de pontos isolados, D. Afonso III empreendia a conquista do Algarve, seguindo-se-lhe as dissengoes com Castela. O pacto de Paris nao se cumpria, o descontentamento do clero. posto que se nao manisfestasse claramente, era algum. O de Coimbra perdera, com a mudanga da capital, uma certa supremacia. O bispo D. Egas Fafes apesar de ser, pela sua familia e por si. alguem, nao tinha o valimento de D. Tiburcio. Dois dos seus castelos dos coutos da Beira estavam destruidos e ainda em poder dos partidarios do rei. e o rei nao se resolvia a reconstrui-los, nao reparava os danos feilos, nao impedia os que se continuavam a fazer e contestava-lhe direitos. Sem que entrassem cm lutas, pareceria ao bispo e cabido que haveria conveniencia em obter uma bula papal. As queixas de gra- il) Miguel Ribeiro de Vasconcelos, Noticia historka do /nosleiro de Vacan\-a. nas «Mem6rias da Academia Real das Sciencias de Lisboa», nova serie, 1863. torn, ii, parte ii, pag. 16. (2) D. Carolina Michaelis de Vasconcelos. «Em volta de D. Sancho 11», na rev. Lusitania, vol. ii, pag. 7 e seg. (3) Portug. Monum. Histor., scriptores, pag. 376. 331 vidade juntaram outras de menos monta a que as incertezas dos direitos, tao vulgares na epoca, facilmente dariam motive. Dai a bula em questao, Etsi a quibusUbet , de 17 de Agosto de 1254. Que efeito obteve? E de tradigao que D. Dinis reedificou o castelo de Av6(l). Por motivo ainda desta bula ou como obra de seguranga geral do pais? O de Coja ja estava reconstruido em 1335, mas nao sabemos desde quando. Nesse ano fez o alcaide uma doagao ao cabido (2). Se a seguir a este periodo aparecem documentos, e de algum valor, para a historia da vila de Avo, nada se nos veio a deparar que directamente dissesse respeito ao castelo. Numa das devassas episcopais dos fins do seculo xviii no arce- diagado de Seia, de que nao tomamos apontamento, encontramos ha anos referencias a actos de imoralidade passados dentro das muralhas que indicavam estar o castelo em completo abandon©. As teste- munhas que depuseram faziam referenda aos casaroes do castelo, que deveriam ser as casas em ruinas do governador. O desabamento foi-se dando pelo segundo metade do seculo passado. No ano de 1857 ja estava caida uma porgao da muralha norte, acabando de se desmoronar em 1863. Tendo uma enchente do rio feito abater a ponte que no seculo xvii Bras Garcia Mascarenhas mandara construir sobre a ribeira da Moura, ou de Pomares, como tambem e conhecida, a uns metros de distancia da actual, foi do castelo (segundo nos foi dito em Avo) pedra para a sua reedificagao. Anos depois, a 8 de Setembro de 1878 desabou sendo aproveitada tambem a pedra nos muros de suporte dos terrenos mar- ginals, como ainda hoje se nota bem, por o aparelho e a siglagem das cantarias denunciarem claramente a primitiva proveniencia. Continuando e quase concluindo a demoligao, um empregado das obras piiblicas arrasou em 1879 a parte sul da muralha para a cons- trugao dos muros da estrada distrital. (1) «Na comarca da Beyra mandou (D. Deniz) fazer de novo os castellos de Avo, Sabugal, Alfayates, Castel-Rodrigo, Villa-mayor, Castel-bom, Almeyda, Cas- tclmilhor, Castelmendo, S. Felices dos Gallegos: e mandou de novo edificar a Villa do Pinhel, e seu castelIo». (Pedro de Mariz, Dialogos de Varia Historia, Lisboa, 1749, pag. 164). (2) Dr. Pedro Alvares Nogueira, toe. cit., vol. viii, 2.^ serie, pag. 182. 332 As entidades oliciais, ou oficiosas, juntaram-se os particulares no aproveitamento do castclo como pedreira, e continuaram ate bem perto de nos a acgao daquelas(l). Hoje so conserva a porta de entrada; tudo o mais rasa o pavi- mento interno. Exteriormente, pela diferenga dc nivel, ainda o muro guarda uma altura variavel, ordiiiariamente inferior a um metro. Do lado nascente, como e maior esse desnivel e a muraiha fica prote- gida pelas casas que se ihc encostaram e que na sua parte superior apoiaram os telhados, conserva ainda alguns metros(2). Actualmente olha-se em Avo com veneragao para aqueles pobres restos, infiuencia sem diivida dos notabilissimos pintores que ali tern passado nos ultimos anos. Oxala que nao seja uma veneragao pla- tonica e que a altiva porta nao siga em breve o caminho tao trilhado dos restos curiosos de Avo antigo. («Arte e ArqueoIogia», ano ii, n." 1. Coimbra, 1933.) (1) Dr. Antonio de Vasconcelos, Braz Garcia Mascarenhas. Coimbra, Imp. da Univ., 1922, nota 2 a pag. 331 : Visccnde Sanches de Frias, O Poeta Garcia, Lis- boa, 1901, pag. 86. (2) Uma destas casas tern internamente. sobre uma porta de loja, uma pedra com a seguinte inscri^ao em duas linhas, que estivera em evidcncia num edificio baixo, de um so piso, que ocupara o mesmo lugar: obra o es o povo / pera as almas. 333 XXVII DOIS TECIDOS MEDIKVAIS MOURISCOS Na igreja do extinto mosteiro de Santa Cruz de Coimbra cxiste uma casula que pertence ao culto dos Cinco Martires de Marrocos, feita de dois padroes dc tccido mourisco, medievais, de la e linho. O seu renome popular e devocional fez com que a conhecessemos logo que viemos para a cidadc. A parte central, tanto a das costas como a da frente, mostra aquele padrao que e o de desenho mais simples e meudo. O fundo, isto c. o tecido basilar, em linho de fios grosses e irregulares, como os da lia^ao popular e manual do pais apresenta-se na forma dc tccelagem «lisa», com completa alternancia dos fios da teia e da trama. Sao uns e outros do mesmo teor, como acontece na tecelagem rural, nossa conhecida desde os tempos de crianga, por termos vivido em terra de tecedeiras. A la e langada a todo o comprimento da trama. em series de quatro fios de cor verde-sombrio, seguidos de outros quatro dum encarnado-carregado. O efeito e de pequeninos rectangulos, encar- nados, verdes e brancos. O branco e dado pelos fios de linho. em «liso», quatro em teia, quatro em trama; as duas outras cores, pelo levante simultaneo de quatro fios da teia, produzindo o mesmo efeito numa e noutra face, ficando sem avesso. O langado dos fios de linho e de la e alternado, o que indica que se tratava dum tear com dois jogos de perchadas, uma para o tecido fundamental e o outro para a la da decoragao, ja fora do tipico tear popular corrente no pais que e so de duas perchadas dc ligos. O tecido nas parte laterais, mais ornamentado, e do mesmo linho e da mesma la, com as mesmas cores, portanto do mesmo centre de fabrico do medial. E decorado de pequenas rosetas de oito pctalas, ordenadas por urn esqueleto construtivo geral em quinconcio, isto e, rede de losangos formados, cada um, de dois triangulos equilatcros, redo que se torna 335 bem visivel pela continuagao dos espagos entre as petalas, aqueles que se encontram no sentido dos diagonals da tecelagem. Os espa^os que medeiam naturalmente de roseta a roseta sao decorados de pequeno quadriculado de cor, da familia do padrao do tecido central. As cores verde e encarnada dispoe-se as zonas, de modo a ficarem as rosetas partidas ao meio pelas duas cores, nao rigorosamente mas na propor^ao de dez, doze passagens de langadeira para cada uma, de modo a sucederem-se cada vinte e duas passagens, que com as vinte e duas brancas formam um total de quarenta e quatro para a repetigao do tema. Na tela, as flores ocupam trinta e dois fios e os espagos dezassete. Esta tecelagem produz dois efeitos, o da frente e o do avesso, pelo natural intercambio das cores. A parte do tecido na frente esta mais gasta, como o uso o pedia mesmo; as costas porem veem-se mais descoloridas, em virtude da exposi^ao a luz, numa das galerias superiores do claustro, num con- junto de restos mobiliarios conventuals que domlnavam museu, e que as obras de restauro do monumento encerraram. Esta depreciagao dos tecidos e frequente nos museus, em virtude da persuasao de que as cores antigas sao inalteraveis, erro que tem prejudicado gravemente boas colecgoes. Os tecidos apresentam, como enunciamos ja, apesar dum certo caracter, um nivel popular e, por isso mesmo, com possibilidades de extensa zona geografica de fabrico, dentro da artificiania mu^ulmana ou de sua influencia, isto e, peninsular-marroquina. O caracter mu^ulmani- zante em obras menores do nosso Pais aparece-nos ate bastante tarde. Nao conhecemos o modo como estes tecidos se ligaram ao culto dos Cinco Martires de Marrocos. A tradigao popular, na maneira simples de conceber os factos, diz que a casula era de uso deles na celebragao da missa. Nao se encontra, ou os tecidos de que e feita, na relagao que das reliquias do mosteiro fez frei Jeronimo Roman, nem tao pouco na de D. Nicolau de Santa Maria, nem nos recordamos ainda de a ter visto mencionada nos cronistas e papeis cruzios que tcmos consultado. A transformagao dos tecidos (que poderiam a andar a envolver as reliquias) na casula presente deve datar dos fins do sec. xvii ou da primeira metadc do xviii, pois que assim o insinuam os galoes e, em certa parte, o formato. podendo acontecer que fosse ja uma remodelagao de outra anterior. A forma ampla nao e aqui muito significativa; se nos damascos o corte se subordinava em grande parte as larguras da tecelagem e ao seu melhor aproveitamento, na casula dos martires 336 A chamada casula dos Martires de Marrocos 22 haveria so a preocupagao de aproveitar a maior quantidade do tecido que existia, em virtude do sentido religiose que Ihe andava ligado. As partes do tecido que ali se nao utilizou foram distribuidas como reliquias. Veio-nos ter as maos, ha bastantes anos, um pequenino fragmento acompanhado dum letreiro impresso em pergaminho: «De Casula SS. V. MM. Mar6chii». A casula actual mede de altura (tendo-se acertado as extremidades das costas e da frente para tomar) 1,34 e, na sua maior largura, 0,99 m. O processo de ajustamento relicario destes tecidos e facil de pre- sumir, pois que e a evolugao conhecida de outros analogos; panos que andavam a envolver ou simplesmente estavam conjuntos com os ossos foram considerados do uso dos santos, acabando por se julgar que a melhor acomodagao que poderiam ter seria a de casula para servir ao culto dos mesmos. A liturgia, posto que exija para os paramentos sagrados a seda, era aqui ressalvada pela alta origem dos tecidos e, por isso, tern sido ela usada na festa dos Martires ate ao tempo presente. Julgamos conveniente dar um breve resumo da paixao dos Cinco Martires de Marrocos, a cujo culto os tecidos andam ligados secular- mente, para conhecimento das nossas relagoes marroquinas medievais. Estava-se ainda na epoca heroica do franciscanismo, sendo ainda vivo o fundador. Celebrado o capitulo geral de Assis, no Pentecostes de 1219, houve uma dispersao de religiosos para o apostolado, incluindo-se neste a pregagao aos mugulmanos. Desejava-se ainda, para complemento desta, o martirio proprio. S. Francisco fez mesmo a viagem a Damieta. No ano de 1221, ano a seguir ao da morte dos cinco, foram padecer em Ceuta (unica cidade acessivel aos cristaos, como sabemos do tra- tado com os pisanos de 1186) sete outros franciscanos. O nosso Santo Antonio igualmente desejou e buscou tal fim de vida, de que o livrarani circunstancias fortuitas. Era uma ideia fundamental da exaltagao franciscana. No ano do referido capitulo geral apareceram em Coimbra os cincos frades italianos. Haveria um ano ja que existia um pequeno grupo da ordem precariamente recolhido junto da ermida de Santo Antao (depois de Santo Antonio) dos Olivais. As fontes da narragao dos sens actos que hoje temos sao duas: as Legenda Martyrum Morocliii, publicadas em Scriptores, a maior redigida por frei Francisco de Sevilha, da provincia da observancia de Portugal, em 1476, e a menor posterior. Existiu outra, agora 338 desaparccida, a qual se referem os cronislas, uma inquiri^ao do bispo de Lisboa D. Mateus (fal. em 1282) em que dcpos «um Cavaleiro de Santarem que chamavam Estevao Pires, homem velho, e honrado, c de louvada vida, e costumes que ao dito Ifante sempre servio». Nao sabemos quern fosse Estevao Pires. Esta inquirigao e provavelmente a fonte de todas as narragoes. Saidos seis frades de Italia so chegaram a Portugal cinco: Berardo que conhecia rudimentos de arabc, Otao sacerdote, Pedro diacono, Adjuto e Acursio. De Coimbra seguiram para Alcnquer, aonde receberam agasalho da infanta D. Sancha, que Ihes deu fatos seculares, de modo a poderem entrar despercebidos em Sevilha. Tentando aqui pregar e sendo presos, o governador, cujo nome parece nao ser facil de identificar, depois duma tentativa de execugao a morte, embarcou-os, conforme o desejo deles, para Marrocos, acompanhados dum Pedro Fernandes que Rui de Pina identifica: «Dom Pedro Fernandes de Castro o Cas- tellao... que por odios, e perseguigoes dos Condes de Lara, nao se pode soster em Castella, e duas vezes se passou aos Mouros, e desta derra- deira para Mirabolim de Marrocos». Ao fim da longa Jornada foram encontrar na cidade de Marrocos ao infante D. Pedro, filho de D. Sancho I e irmao do reinante D. Afonso II. D. Pedro devia residir nas casas aonde se aquartelava a milicia crista ao servigo do sultao, as quais se encontrariam ao poente da cidade, perto da praga da Cotubia, conforme identificagao do fran- ciscano Koehler, que vivendo nos locals os podera ter identificado convenientemente. Nao e de facil investigagao a causa da estada ali do infante, que se expatriara, por causa do irmao, para o reino leones. O estado caotico da peninsula ao tempo, tanto em Leao como em Castela, poderiam dar um pretexto. O refugio dos reis, principes e grandes nos reinos mugulmanos peninsulares era caso frequente, como e sabido: no impcrio marro- quino era mais raro mas os exemplos nao faltam. Nesta mesma epoca, OS Laras de Castela, que tinham decaido do poder depois da ascengao de D. Berenguela e reinado do filho D. Fernando, falecido D. Alvaro de Lara, passaram a Africa, a corte do imperador; D. Fer- nando faleceu ai e D. Gongalo voltou, mas tendo entrado em novas revoltas homiziou-se entre os mouros da Andaluzia, morrendo em Baeza. As informagoes que a legemla longa da do infante D. Pedro sao imprecisas. Diz, a proposito da chegada dos cinco franciscanos: «qui in curia regis marrochii illis diebus pro directione negotiorum 339 quorumdam aduenerat». Na saida do infante, com as reliquias, «consumatis tandem negociis suis, pro quarum expedicione de regno portugalie uenerat, rex almiramolinus liberam sibi licenciam redeundi concessit)). O infante nao podia ter ido de Portugal porque estava expatriado e alem das desavengas iniciais tomara armas contra o rei para defender as irmas. Isto que a legenda diz nao deve passar duma interpreta^ao do escritor quatrocentista. O primeiro contacto dos franciscanos com o sultao seria na praga Djama el Fna. Julgados loucos, mandou-os recolher ao hospicio, com ordem ao infante de os colocar na fronteira, o que logo este exe- cutou, vendo o perigo que corriam os cristaos com a extemporanea pregagao. A alucinagao do martirio possuia-os e, no caminho de Ceuta, conseguiram fugir aos guardas e regressar a cidade imperial. Novamente presos, repetiu-se a fuga, tendo feito aparigao, mais tarde de efeito espectaculoso, numa expedigao militar, ou porque ja acom- panhassem as milicias cristas ou se escapassem do hospicio e la fossem ter. Uma nova pregagao, num dia santo de sexta-feira, na praga, levou-os ao fim. Berardo, no seu arabe pouco inteligivel, costumava misturar maldigoes ao Profeta e, de loucos, acabaram por ser julgados blasfemadores. Nesta altura o infante e os outros nobres ja nao intervieram; os animos populares estavam grandemente exaltados e OS cristaos temiam por si mesmos. A execugao acabou por ser feita pelo proprio sultao, possuido duma cega exaltagao religiosa, provo- cada pelas respostas deles, abrindo-lhes os cranios, no que quebrou tres laminas! Arrastados os cadaveres para fora do palacio, a populaga apode- rou-se deles. Pedro Fernandes e Martinho Afonso, mandados pelo infante para recolher os restos, foram mortos. Os cristaos, temerosos, nao sairam em tres dias a rua. De ordem do sultao, tentou-se quei- mar os membros dispersos dos cadaveres, o que se executou de forma imperfeita, pois que os cristaos puderam recolher grande parte, gragas as suas relagoes e a venalidade. O capelao do infante, Joao Roberto, conego de Santa Cruz de Coimbra (cuja presenga explica a vinda das relfquias para esta cidade e para o mosteiro, de preferencia a catedral ou ao eremiterio dos Olivais) fez cozer os restos para os descarnar e ser facil o seu transporte. Era um processo usual na epoca e que se praticou com S. Luis de Franga, S. Tomas de Aquino, Bertrand Duguesclin, etc. O falecido professor Dr. Alberto Pessoa, que exa- minou os ossos, encontrou sinais evidentes do emprego de instrumentos cortantes usados na escarnagao. 340 O Infante pouco dcmoraria depois disso. De Ccula passou a Algeciras, Tarifa e Scvilha, donde saiu, em barco, para a Galiza. Dc Astorga mandou as reliquias a Portugal. Trouxe-as pessoa de categoria, Afonso Pires dc Arganil. Nao aparece o seu nome cm Lcgcnda Martyrum Morochii. mas os Livros de Linhagens (Script.) sao claros. O I diz: «este Affonso Pires foi o que trouxe as cabcgas dos martyres a Santa Cruz de Coimbra»; o IV repete: «que trouve as cabe^as dos martyres de Marrocos a samta Cruz de Coymbra per mandado do iffante dom Pedro de Portugall». A. Brandao afirma o mesmo, como tambem ja o escrevera Rui de Pina. Afonso Pires, que teve o apelido de Arganil, da terra do seu senho- rio, era pessoa de qualidade. Os nobilidrios fazem comegar nele a linhagem dos de Arganil c parece que se nao cncontram cspalhados nos mesmos os nomes dos antepassados; e provavel que dcscenda de Pedro Uzbertcs que deu carta de foro a vila, no ano de 1175, talvez mesmo filho, acreditando no patronimico de Pires. Foi um dos grandes companheiros do infante. Tendo casado com D. Vclasquida de Samora, ficaram-lhe grossos bens em Castela, que foram motivo de litfgio entre os netos Pedro Ancs Portel e a irma Maria Ancs. Se a sua vida, passada ao servigo do infante exilado, nao Ihe permitiu figurar na vida portuguesa da epoca, ja assim nao aconteceu com os filhos. Pedro Afonso de Arganil foi uma das pessoas escolhidas pelo rei para a algada das cortes de Santarem de 1273, e o seu nome aparece noutros documentos de menor importancia. D. Marinha Afonso casou com o poderoso D. Joao de Aboim, mor- domo-mor, que tomou parte em toda a vida politica do Pais no reinado de D. Afonso III e no princi'pio do de D. Dinis. Entre os netos encontramos D. Maria Anes, casada em scgundas nupcias com Joao Fernandes de Lima, senhores de Mafra por troca de Portel; Pero Anes de Portel, casado com D. Constanga Mendes, tendo uma filha deles, D. Branca Pires, casado com o conde D. Pedro, filho natural de D. Dinis, e outra, D. Maria Pires Riveira, casado com D. Afonso Dinis, filho natural de D. Afonso III. Outra neta, D. Marinha Afonso, matrimoniou-se a Fernao Rodrigues Redondo. OS quais fizeram a capela (gotica, de tres naves) de S. Pedro de Arganil, indo morrer a Santarem, aonde este tem o tumulo, e deixando aquela por testamenteira a propria rainha Santa Isabel, testamento que foi executado pelo rei D. Afonso IV. Em resumo, gente grande. A vida de notoriedade do infante D. Pedro comegou depois do regresso de Marrocos. A sua permanencia em Leao nao deveria ter 341 sido longa. Aqui se tinha refugiado, na corte de Afonso IX (que casara com a irma D. Teresa, da qual se separara em 1196, por impo- sigao papal) donde viera defender os direitos das irmas, e aonde se teriam dado as causas que o levaram a Marrocos. Passando a Aragao, a ajudar Jaime I, o conquistador, veio a casar, em 1228, com Aurembiaux, senhora do condado de Urgel, filha de Armengol (8." conde), nao tendo filhos. Em 1231 faleceu a condessa, deixando-lhe o condado. A heranga foi disputada. Trocou-a com D. Jaime, que Ihe deu a ilha de Maiorca, para onde foi residir; voltou a fazer nova troca com o rei, pelas pragas de Segorbe, Morelha e outras. Teve partidarios para a sucessao do sobrinho D. Sancho I. O papa porem escreveu-lhe rogando-lhe que auxiliasse o conde de Bolonha. Faleceu a 2 de Junho de 1258. Pina altera a cronologia e certas afir- magoes de outros necessitam de ser comprovadas. Os Cinco Martires de Marrocos tiveram a boa sorte de encontrarem na vida e na morte gente grande. Em caso diferente, teriam sido cinco pobres homens ingenuos que se internariam em Marrocos e morreriam obscuramente, sem deixar rasto. Recolhidos os seus ossos, vieram descansar num poderoso mosteiro, aonde se continuou o seu culto. Objectos de diversa natureza que andaram ligados directa ou indirectamente a esse seu culto valorizaram-se como reliquias; assim aconteceu aos tecidos que originariamente poderiam ter servido para envolver os ossos, a simples campainha de confraria que o sec. XVIII remodelou, a qual foi retrogradada e grandemente ate se chegar a atribuir o seu uso aos proprios martires, e umas espadas que se tiveram com as do martirio, cujo principio e fim desconhecemos. O Inventario Arti'stico dara nota das especies artisticas ligadas, no extinto mosteiro, com os Martires. Sob o ponto de vista historico e seu uso como interpretagao artis- tica, as Legenda Martynmi Morochii tem de ser lidas com precaugoes. Obedecem ao fim da literatura deste genero, que e o de fomentar a devogao, seguindo esquemas consagrados, empregando a fraseologia tradicional, dando interpretagao prodigiosa aos factos correntes, fazendo predominar o motivo piedoso sobre o historico. Apesar disso sao elementos documentais valiosos, esclarecendo as relaQoes com OS mugulmanos e o estado de espirito duma epoca, bem como fazendo compreender as permutas artisticas e comerciais entre os seguidores das duas religioes. (Em «Boletim da Academia Nacional de Belas Artes», n." J 5. Lisboa, 1946.) 342 i XXVIH EVOCACAO DO XI CENTENARIO DA PRIMEIRA RECONQUISTA CRISTA DE COIMBRA (DISCURSO) Estava-se no ano de oitocentos e setenta e oito (878), seculo ix, segundo a contagem conium da sucessao dos tempos, ano de nove- centos e dezasseis, da hispanica, que nessa epoca se usava. Ano glorioso este, ano pedra angular em que assenta o leor da vida moderna da cidade e da regiao. Feito de tal grandeza e que, contudo, hoje, passado urn milenio e centena de anos, o seu conhecimento nos e dado por breve nota do Chronicon Laurbanense: Era DCCCCXVI^ prendita est conimbrie ad ermegildo comite. Na era de 916 foi tomada Coimbra pelo conde Ermenegildo. Era este conde de Portucale e Tui e procedeu por ordem do rei asturo-leones Afonso III -o-grande, aquele que de Oviedo veio assentar a sede do governo em Leao. Oito palavras somente a rememorar esse facto de extraordinario alcance, comentado singelamente pelo Chronicon Goforum. na ementa de resenha da vida daquele rei: Conimbricam ab inimicis posscssam heremitaitit et ex Gal/ecis postea populavit. O que vem a dizer que Coimbra, possuida pelo inimigo, fora ermada e povoada a seguir por gente vinda de acima Douro. Acgao epopeica consideramo-la, como em todos os tempos os vencedores julgaram as suas; porem, nos, com a sensibilidade moderna, meditamos nos morticfnios a seguir a tomada e na redugao ao cativeiro dos moradores restantes. No entanto, morticinios, escravidao, vio- lencias de toda a ordem vem-se surgir da noute dos tempos, repe- tirem-se com os seculos, estenderem-se agora sob os nossos olhos. Repetiremos, comentando, frase ouvida na juventude a homem de cabelo branco e de lucida inteligencia: os avos nao se discutem, 343 aceitam-se; a qual acrescentaremos — com a sua personalidade, a sua vida, procurando compreender-lhes os ideais, suas lutas, seus motivos de gloria; juntando ainda — e mostrando a nossa gratidao por terem langado as bases do que tern sido a vida duma nagao em oito seculos, nos quais se constituiu, se alargou, deu mundos ao Mundo, repetlndo o dizer do nobre Poeta. E esse periodo, essa primeira reconquista crista, permaneceu por um seculo, ate as razias de Almangor, o que na mesma ementa e comen- tado sumariamente: A/manzor Ben amet cepit Colinibriam, et sicut a miiliis senibus audiuimus deserta fuit VII annis, postea reedificauerunt earn Hismaelite, et tenuerunt earn. Almangor, pois, tomou Coimbra e, como a muitos foi ouvido dizer, ficou deserta sete anos, sendo reedi- ficada pelos ismaelitas que a conservaram em seu poder. Era o ano de 987, como para Montemor se daria em 900. Se foi despovoada a cidade, o territorio permaneceu com a gente ads- trita; no entanto com aqueles acidentes que se podem presumir e certos documentos revelam, mas que, neste momento nao exigem explanagoes, pois que so o tempo da primeira reconquista e nosso intento. E se agora os dados da vida intercalar entre Afonso III e Alman- 9or nos interessam nao e, porem, para reconstitutir essa vida do sec. ix ao X, mas para reconhecer, atraves das consideragoes topograficas e do repovoamento, as razoes do desaparecimento das modestas cons- trugoes que nessa epoca se executaram, bem como o nivel popular do muito pouco que ainda se mostra. As nossas singelas palavras reduzir-se-ao a um rapido escor^o, a uma visao como que tomada planando, atraves da geografia, dos elementos historicos do povoamento, isto e, limitar-nos-emos a palavras de mera sugestao, para terminar nas formas artisticas, Sao estas as razoes, e serao a guia, a iinalidade desta modesta palestra. Conquistada a cidade, ficavam, como dizia no seculo xviii Manuel da Rocha, «fechadas as portas em Coimbra aos mouros da Estremadura, que so pela parte oriental poderiam acometer a provincia da Beira, a quem pelo meio-dia serve de muralha a grande serra da Estrela». Em historia gcral da Reconquista dever-se-ia considerar todo o territorio entre o Douro e a linha da Estrela, pelo Agor, a Lousa- -Espinhal, alargando-se para nascente a Lamego e Viseu. A nossa 344 finalidade, porem, a tie comemoiar a lomada dc Coimbra, leva-nos a ter so em conta a faixa ocidcntal, que historicamente e a da restau- rada diocese visigotica conimbricense, a qual tinha por limite norte a corrente do rio Douro, desde Gaia (Castrum Aniicjuum), com o distrito de Aveiro, prolongando-se para sul do Mondego. Faixa ocidental que, em sintese, tentaremos definir geografica- mente, procurando indicar os elementos naturais que Ihe serviam de defesa militar, isto e, o territorio em que se exerciam as actividades de paz. Para conhecer a vida do homem e necessario conhecer tambem a terra em que ela se desenvolveu. Limitada de norte pelo fosso do Douro, ao sul pelo sulco do Mon- dego e pelas alturas referidas, do Espinhal a Estrela; por todo o nas- cente pelos enrugamentos complexos que as correntes fluviais cortam. formando trincheiras de ravinas profundas. O seu acesso pelo inimigo era dificil e, para aquem da larga zona que a curva de nivel de 200 metros define, a vida podia decorrer nor- malmente, so entrecortada das lutas domesticas que nao foram peque- nas e dos ataques muguimanos na fronteira sul, porque aqui, como diz Gonzaga de Azevedo, definindo a epoca final, — «Coimbra, cidade da fronteira com os serracenos, mudou frequentemente de possuidor no decurso do seculo x. Libertada por S. Rosendo, em 968, voltou ao poder dos muQulmanos, que a dominaram ate 981, e, em 975, per- corriam e despovoavam a terra, ate as vizinhangas do Douro, sem obstaculo». Uma rapida vista de olhos pela carta orografica mostra a dificul- dade de acessos por esse lado nascente. Vindo-se do Norte, veem-se por Este as colinas que, entre os 100 e 200 metros, vao em breve bater nas trincheiras do rio Uima c do Arda, e nas alturas da serra da Freita, por Arouca, para logo encon- trarem as da Gralheira e a garganta dificil do Vouga. Seguindo-se as linhas elevadas das Talhadas com as do Caramulo, ravinadas pelo Alfusqueiro e pelo Agueda, a ligarem-se ao Bugaco e ainda ao entre- lagamento de vales ate a Louza. A consideragao das invasQes por esselado mostra a dificuldade da travessia vinda de nascente. A propria de Aimangor, em 997, sobre S. Tiago de Compostela, logo no fim da epoca, o esclarece. Se este em 987 havia reconquistado Coimbra, prosseguindo para Leao (988); se em 990 se apoderou de Montemor, a sugeitar esta regiao que dominou ate ao Douro, havia a entrada facil pela faixa ocidental 345 Ja a anancada a S. Tiago de Compostela era dificil, e seria o terror que reinava entre os cristaos que o favoreceu. Vindo de Coria, que marcava a passagem praticavel entre o sisterna central castelhano e o da nossa Estrela, dirigiu-se a Viseu; dai seguiu para a Foz do Douro, onde viria ter uma frota de apoio. De Viseu a Gaia o caminho era verdadeiramente aspero, e so o panico e a desordem crista liie facilitou a travessia. Tinha vindo a seguir a estrada romana, cujos restos encon- tramos nas grandes alturas, para S. Pedro do Sul, vencendo as lombas da Gralheira, ate perto de cotas dos mil metros na serra da Freita (sitio tao aspero que no sec. xiii D. Mafalda ai fundou uma albergaria de apoio), para depois descer violentamente ate Chao de Ave e seguir por cumeadas brandas. Entre a zona litoral abaixo dos 200 metros e os aplanamentos acima dos 700 metros situa-se uma meada de vales com asperas encostas que formam uma serie de verdadeiras trincheiras militares. Podem-se ajuizar seguindo na estrada n." 16, de Albergaria-a-Velha a Celorico, a de rio Vouga, chamada tambem da Beira, e a n." 17, de Coimbra ao mesmo ponto, a tradicional da Beira, ou ainda, mais sensivelmente, o caminho de ferro da Beira Alta ate se atingirem as cotas de 600 metros, perto de 800 na secgao da Guarda. Entre essas linhas elevadas de planalto e as baixas da zona atlan- tica estabelece-se um enovelado de montes que tornam impraticavel um grande movimento de armas, mesmo tendo so em conta o ataque de guerrilhas locals; permitindo unicamente correrias de pequenos grupos. E, se vieram a verificar-se as correrias apontadas na citagao de Gonzaga de Azevedo, no final do periodo, e que a desorganizagao interna, como foi dito, as favoreceu. Neste terreno litoral, entre Douro e Mondego, guardado e defen- dido naturalmente, em lugar de um ourigamento de castelos, levan- tava-se um so de importancia, o de Santa Maria ou de Vila da Feira; em contraste com as epocas proto-historicas, das quais permanecem varios pontos com defesas castrejas. Ali, na parte alta do territorio que se tem vindo a considerar, assentou um tcmplo dum deus lusitano, que teria sido cristianizado com o culto a Santa Maria. Seriam os muros envolventes a proteger o mesmo, que de comego formaram precariamente o castelo da recon- quista, do qual so restam silhares da epoca romana, utilizados na cons- trugao do seculo xn. Ficava nao so a meio da metade superior do territorio, como tambem vigiava as linhas de transito, a grande, decalcando a estrada 346 imperial dc que ha reslos, que ia de Coimbra a Cale, c que conimua a ser a directriz da actual EN-1, e ainda a da linha da costa. A linha transversal inferior, a do Mondego, era defendida pelos castelos de Miranda, Coimbra e de Montemor-o-Velho, este com o pequeno de Santa Olaia. Nesta vasta zona os campos sao ferteis, de ondulagoes brandas e de vales abertos, favoraveis as culturas e a fixagao humana. Vales mais internes, com acidentes pouco duros, ate aos severos montes, estendem-se ou alargam-sc para nascente, os quais levam a linha do Paiva, como o amplo de Arouca, circundado dc cievadas cotas, o do Vouga, como o do Alfusqueiro e o do Agueda, pouco pene- trando; vales e depressoes que, apesar de todas as dificuldades de transito, permitem a comunicagao com as regioes verdadeiramente internas, as da larga zona de Lamego e a mais vasta e rica de Viseu que descai ate a serra da Estrela, estas porem mais agrestes, com mais duro regimen agricola, regioes centieiras. no fundo. Nesta zona do reino leones, neste longo tracto que a diocese de Coimbra ocupou, exerceram dominio: Afonso HI -o-grande (866-909), Garcia I (909-914), Ordonho II (914-924), Fruela 11 (924-925), Afonso IV -o-monge (925-930), Ramiro II (930-950), Ordonho III (950-955), Sancho I -o-gordo (955-967), Ramiro 111 (967-970), Ver- mudo II (982-989), alguns dos quais por breves anos de reinado. A vida politica no pequeno reino nao foi facil. Se as lutas com OS islamitas, pode-se dizer, eram continuas, as revoltas internas foram numerosas, tanto pelo metodo de sucessao real, que era de tradigao electivo e que se procurava tornar familiar, como pelas rivalidades de grupos e ate outras, como a dos servos das Asturias logo no tempo de Aurelio. Um muito rapido escorQO demonstra-o, atraves so da epoca dos reis que dominaram nesta faixa que se tern considerado. Afonso III, acabou nos fins do governo por ter como opositores dois dos filhos, tanto Ordonho que se fora fixar em Viseu, donde partiu para um ataque a Sevilha, como Garcia, vendo-se obrigado a abdicar. O seu reinado foi de continua luta com os muQulmanos, tcndo-lhes conquistado Lamego, Viseu e Coimbra, e levando as devastagoes ate Merida; cansados os contendores das mutuas devasta<;oes, firmaram treguas que duraram vinte e sete anos; ocupando-se Afonso a repovoar 347 e a fortificar lugares da fronteira, e a organizar o reino, que ja se esten- dia por um tergo da Peninsula. Ordonho li fez campanhas vitoriosas para o sul, mas, em 920, o amir Abde Arrahmane tomou a ofensiva e derrotou-o e a Sancho de Navarra coligados, continuando com novas arrancadas sobre aquele reino. Fruela 11 e Afonso IV, a seguir a seus obitos, foram causa de dis- sen^oes e lutas. Ordonho II, bem como Ramiro 11, mais tarde, fizeram doa^oes a Lorvao, o primeiro mesmo procurando restaurar a diocese de Lamego. Elevado Ramiro II ao trono, encontrou por adversario Abde Arrahmane III, que havia abandonado o titulo de amir e se considerou cahfa. Foi dura a luta mas Ramiro conseguiu uma estrondosa vitoria em Alhandega, a sul de Salamanca, cuja fama ultrapassou os Pirineus, acabando por se firmarem pazes. Seguiram-se dissengoes e lutas civis. Ordonho 111, depois de submetidos os condes revoltosos, organi- zou uma rapida expedigao contra Lisboa que tomou e saqueou. A sua sucessao, como de habito, trouxe novos conflitos. Condes galaico-portugueses procuravam viver como independentes. Sancho 1 conseguiu dominar, pelo menos aparentemente, as par- cialidades. Sabemos que a 15 de Novembro de 966 estava em Lorvao, fazendo-lhe doagoes. Gongalo Moniz, que tinha sido homem seu, fe-lo envenenar; e ele, sentindo-se mal, retirou-se apressadamente para Norte, nao chegando, porem, a Leao. Com a sua morte voltou esta regiao ocidental ao estado de revolta, ressurgindo as parcialidades. Ramiro 111 suportou novas invasoes, destacando-se as dos nor- mandos, que ja por 960 tinham aparecido, os quais vieram-se a fixar em portos galegos, devastando a terra, e que, por 967, dominavam a costa entre Douro e Mondego. Sendo confiado o governo da Galiza a S. Rosendo, monge e bispo, de idade avangada, conseguiu veneer os normandos, dominar os muQul- manos, que faziam correrias acima Mondego, e retomar Coimbra, como ja ficou dito, para esta ser de novo perdida e retomada depois pelo rei Bermudo 11 em 981. Comegara Almangor as suas triunfais correrias. Em 987 recon- quistou Coimbra, cm 988 tomou a propria cidade de Leao, em 990, Montemor, em 997 fez a arrancada sobre Santiago de Compostela, que, em panico, os habitantes haviam abandonado. Faleceu Bermudo 11 em 999; sucedeu-lhe uma crianga, seu filho, Afonso V, sob a tutela de Mendo Gongalves, que os normandos mata- 348 Calice de D. Mendo Gon?alves e de Dona Toda. Sec. x (Fotografia ampUada. Alt. 10,5 cm.) riam em 1008, ficando a viuva D. Toda em seu lugar na regencia; con- des que se irao encontrar, a falar do calice de Braga. Teve este periodo de um seculo lutas permanentes contra o inimigo, o islamica, como dissengoes internas, e da maior dureza frequentemente. Sente-se tambem um grande esforgo povoador, de aproveitamento das terras e de organizagao. Para o nosso caso, o da construgao, interessava conhecer o remanescente, como ainda, qual a exteiisao que os edificios tipicos, OS religiosos, ti\eram. Do que existe vai-se dizer a seguir, e bem pouco sera. O que poderia ter existido nesse tempo necessita ainda de inves- tigagao que, necessariamente, tera de ser demorada, interpretando com argucia os documentos que se conservam. Estes nao sao numerosos, mas atraves dos mesmos se podera formar um largo reticulado — que interpretado sobre o mapa e com o conhecimento directo do terreno — permitira dizer-se que todas aquelas freguesias que nos ultimos seculos eram consideradas igrejas matrizes, das quais foram distratadas outras que Ihe ficaram depen- dentes, que essas matrizes, em grande niimero, remontavam a esse tempo. A terra, porem, estava largamente inculta, com matagais, brenhas, bosques, gandaras, espagos vagos, onde viviam e se acoitavam animais ferozes ou animais silvestres de vulto. A propria toponimia o revela, como Rio de Ossos (designagao antiga do urso), Ossela, Mata de Ussos, Asna Brava, Vale de Zevras, etc. la-se fazendo o arroteamento, crescia a populagao, as capelas dos dominios particulares passavam a sedes de freguesia, e os desdobra- mentos seguiam-se. Nao sao muitos os documentos a servir de base, mas suficientes para a triangulagao geral. Mesmo certos duvidosos, como o da doagao do mosteiro de Crestuma, documento ja elaborado no seculo xn, nas discussoes entre os bispos do Porto e Coimbra, refere uma extensa lista que, sem duvida, se reporta a uma existencia paroquial da pri- meira reconquista, e que abrange muitas das igrejas entre o Douro e o Antua. O grupo dos documentos originarios dos mosteiros dessa primeira epoca, salvos nas fugas, como na do abade Tudeildo da Vacariga para Lega, onde se manteve o mosteiro, e uma grande fonte. 350 Dcstc modo, sao os dc Pedroso com Crijo. para acima Vouga; Arouca no grande vale c regiocs proximas; entrc Vouga e Mondego. Vacariga, que na altura da tomada definitiva de Coimbra organizou uma lista a leivindicar, como Lorvao. Documentos de pessoas particulares e relagao de bens de proceres o sao igualmente, como o do ano dc 897, de bens de entre Douro e Vouga, de Gundesindo Eriz e Inderquina Pala, ligada esta a familia real. Ou outros depois da perda mas que se reporlam a epoca anterior, tal como o dc 1050 do condc Gongalo Viegas e D. Chamoa. Espanto nao pequeno e, para o comum, a considera^ao do alto nivel artistico que foi o da epoca imperial romana e a redugao das tecnicas a um mero nivel de artifice na visigotica e, a seguir, nesta da Reconquista. A invasao dos barbaros, com a decaida economica c a falta de encomendas, o desaparecimento dos artistas capazes e a Formosa quebra duma competente Iransmissao do conhecimento e pratica das tecnicas, da a razao. Para executar uma obra de Arte nao basta tcr so cm frenle um bom modelo, e necessario conhecer as fases sucessivas pelas quais a execugao passa. E esse metodo nao se adivinha, nao vem por ins- tinto, requer ser conhecido e aprendido sob direcQao competente. Longas tentativas, largos anos sao necessarios para que se reencontrem as tecnicas que foram perdidas. Mas a tendencia natural do homem e a de progredir; um novo conhecimento junta-se ao anterior e guarda-se; os resultados vao-se somando e acaba por se readquirir o esquecido e avangar para novos niveis. Na Reconquista encontravam-se as tradigoes visigoticas com as tecnicas populares, havia uma vaga influencia da arte islamica daquela primeira fase que se estava a elaborar na Peninsula, como ainda pre- carias relagoes com o Oriente cristao. Mas essa arte, a que comummente se chama Mogarabe, nao apre- sentava um facies homogeneo, formavam-na grupos ou edificios iso- lados, vivendo das tradigoes da zona e dos elementos dc contacto da vizinhanga. Todavia na restrita regiao leonesa deu-se uma ressureigao unica, no seculo ix, na epoca de Afonso II a Atonso 111, tendo o ponto culmi- nante com Ramiro I (842-850). 351 Pelos seus elementos de estrutura arquitectonica nao tem aqui antecedentes, dando origem a um problema insoluvel; decaiu e o que dessa arte asturiana remanesceu foi pouco. No tempo inicial de Afonso II aparece enigmaticamente o mestre Tioda sobre o qual nada se pode dizer. ]sto deu-se, porem, em volta de Leao. por encomenda e patro- cinio real. Foi uma tentativa dum pre-romanico que se nao conti- nuou. Deve-se aquele Afonso, cerca do ano de 830, a igreja de Santullano, de tres naves e cruzeiro, so abobadada nas capelas da cabeceira. Todavia, o que se podia chamar esplendor asturiano, vem com Ramiro I, em que um mestre de elevado ni'vel, considerada a epoca, amalgamou a tradigao local com elementos procedentes talvez quer da Italia do norte, quer, em certo grau, do proximo oriente. Deu ao rei um nobre salao de reuniao, uma Aula Regia, adaptada depois a igreja, a de Santa Maria de Naranco (ano 848), um edificio propriamente igreja. a de Santa Cristina de Lena, a que se junta S. Miguel de Lino ou de Lillo. Nestas, a composigao das estruturas com abobadas e a ligaQao com outros elementos sao dum notavel avango e mostram grande engenho. Ao visitante comum hao-de parecer construgoes banais, mesmo rusticas, e perguntara a razao que levou a propaganda turistica a impor-lhe a visita; ao conhecedor das epocas causam admiragao, que maior se torna quanto mais se estudam. Mas fora do centro leones a arte e pobre, como foi dito. Esta arte modesta era aquela que se teria executado na zona que se esta a considerar, agravada com o facto de ser posterior, aqui, ja fora do surto ramirense. Exemplares mais proximos ha os do modesto niimero da Galiza, entre os quais se destaca o pequeno mas muito sugestivo, de S. Miguel de Celanova (Orense) e o de Santa Maria de Lebena (Santander). Temos, nas nossas li?oes, apresentado a de S. Miguel de Escalada (Leao), por ter sido consagrada em 913, um ano depois da nossa de Lourosa, e estar no centro leones, sendo um bom exemplar de con- fronto para o nosso, ja em zona afastada e de fronteira. O estudo desta epoca da Reconquista, ate que, com o seculo xi, venha o romanico do Norte, e grandemente sugestivo e hoje ja com ampla bibliografia. Sera o momento de perguntar: — que resta nesta zona litoral, entre a linha do rio Douro e a bacia do Mondego? 352 A resposta e desanimadora. Percorremo-la, freguesia a fregucsia (com menor minucia no concclho dc Gaia), na finalidade do Invcn- tario Artistico, e nada encontramos. Per urn lado, foi causa a modestia das construgocs, por oulro a riqueza que, pelos seculos xvii e xviii, as domiciliarias c religiosas nesta zona mostram. As igrejas eram pequenas, de modestia excessiva: a populagao aumcntou e as possibilidades igualmente. Os templos insignificantes, — de adobe ou xisto miudo, raras cantarias dc gneisse, ou de granito do lado nascente, ou calcario do sul, regiao fundamente percorrida de incursoes inimigas — nesta epoca da Reconquista, nao eram mais que tugurios do divino, como tugurios eram as casas em que os grandes e servos viviam. Desapareceram na epoca medieval, como desapare- ceram as que o comego da segunda reconquista levantou no sec. xi: como nos dois seculos referidos, prosperos, desapareceram as medievas. Viera um tempo de progresso agricola, como no momento se esta a formar aceleradamente um industrial, que substituiu o que era pequeno e antigo. Sabemos que o abade Primo de Lorvao chamara de Cordova o mestre Zacarias, sem duvida para a renovagao do mosteiro, e que fez para a camara de Coimbra quatro pontoes, mas nada resta em Lorvao, onde uma porta de arco ultrapassado e ja de novo periodo, a de Recon- quista definitiva, e aqueles desapareceram totalmente. Para compreendermos a construgao religiosa na epoca, temos de ir a nascente, ainda no distrito e diocese de Coimbra, ja no aplana- mento, dentro da linha de curva de 400 metros, que antecede o macigo da serra da Estrela, a Lourosa. Construi'da em granito, com os silhares, colunas e arcos tornados das construgoes romanas, principalmente dum templo dedicado a Jupiter, conservou-se pela aderencia natural que os blocos de granito dao pelo seu peso, e, apesar dos abandonos, neves cobrindo as paredes desprotegidas, ventanias abalando-as, pode esperar o restaur© do ano de 1188, a ampliagao de 1677 e a do seculo xviii, ate que os servigos oficiais a remodelaram, a ressuscitaram. Igreja de tres naves, transepto, tres capelas de cabeceira e atrio introduzindo-a. Construgao rude, com irregular reemprego de mate- rials classicos, exemplo (ano de 912) equivalente a S. Miguel de Esca- lada (ano de 913), largamente afastadas entre si dentro do reino leones. Das especies sumptuarias e de culto ha um pequenino calice, de altura miniatural, uns 10,5 centimetres, tendo a copa 7 centimetros por diametro, conservado na se de Braga. Ornam-no medalhoes for- 353 23 mados de hastes vegetais, incluindo o desenho de dois leoes e duas aves. Trabalho duro, de ourives cristao, bem definidor do atraso da epoca, procurando interpretar motivos islamitas. Na base alas- trada, uma inscrigao diz: In nomine Domini. Menendus Gundisalviz et Tuda Domna sum. Que vem a dizer: Em nome do Senhor. Sou de Mendo Gongalves e de Dona Toda. Era um calice para a comunhao particular dos condes, que foram tutores de Afonso V na epoca tragica, a seguir as assolagoes de Alman- Qor, aquele Mendo Gongalves que em 1008 morreu, defendendo a terra num ataque de normandos. Calice equivalente a dois de Upsala, cujas fotografias vimos ha pouco e que eram destinados aos sacerdotes levarem para o tumulo, revestidos igualmente, como quem na Eter- nidade ia continuar as fungoes que na vida haviam exercido. A Patria tem lugares sagrados que e necessario visitar comovida- mente e nao como meros turistas ou secos eruditos remoendo datas e documentos. Em Lourosa, onde se devera ir, quer fora, tendo a paisagem eterna das serras como fundo, quer no interior, ladeados das arcadas em arco ultrapassado, no silencio da nave, rememoremos essa primeira metade do sec. X. Em toda a Europa iam invasoes, morticfnios, assolagoes, um negro pavor esmagando as almas, como para a Peninsula se esbogou ha pouco. Na Franga, o imperio carolingio havia-se desmembrado e organi- zavam-se governos particulares, pois que os povos viam que a segu- ranga dependia de cada um. Os normandos, estabelecendo-se nos estuarios dos rios, iam ate ao interior, sendo mesmo obrigado Carlos- -o-simples, em 911, no ano anterior a Lourosa, a ceder-lhe o territorio que deles tomou o nome de Normandia. Ainda no seculo ix tinham vindo os ungaros que, atravessada a Alemanha, e a seguir a sua vitoria de Augusburgo, penetrado na Franga, assolaram a regiao do Reno, sendo vencidos so em 955, por Otao-o-grande, o reorganizador do imperio germanico. Os mu?ulmanos haviam-se estabelecido em Frejus e devastavam o sudeste frances. A Italia encontrava-se em verdadeira anarquia, dividida numa multidao de senhorios, com grandes lutas entre si, a que so a descida daquele mesmo Otao pos ordem, tcndo-se proclamado rei da penin- sula em 961. A Franga tambem so na segunda metade desse seculo x se comegou a recompor, com a eleigao de Hugo Capeto, em 987. 354 * * Aqui em Lourosa esta a area saata, o coragao da Patria. Aderem as suas pedras vcnerandas as lembrangas desse aspero tempo dos seculos ix-x, em que o lavrador abria siilcos e langava a semente nem saber quern recolheria o fruto, o batalhador. inseguro dos seus dominios, reconhecendo que so o seu brago c o seu sanguc Ihos garantiam. Em Braga, no tesouro da se, encontra-se o pequcnino calice reavi- vando a lembranga e como que tornando presentes os dois condes, regentes na menoridade de Afonso V, que suportaram as consequencias das arrancadas sucessivas de Almangor, que, alem das que fizera para Nascente, como foi dito, destruira Coimbra e Montemor, fora desman- telar Leao. capital do reino, inutilizara os mosteiros de Eslonza e Saha- gun, e que, em 997, se dirigira a Santiago para o aniquilamento do simbolo supremo do inimigo, pois que os mugulmanos consideravam aquele santuario a «caaba» dos cristaos. E, por acrescimo, sobrevieram as arremetidas dos normandos, numa das quais, em 1008, perdeu o conde a vida. E o pequenino calice uma gota de prata e ouro, feita recordagao viva de tao grandes infortiinios. Igreja e calice comemoram os grandes e os servos que, naqueles longinquos tempos dos seculos ix-x, lutaram e lavraram, penaram e souberam esperar, langando nos caboucos as pedras fundamentais duma nagao que perdura. Coimbra, 7 de Dezembro de 1978 (Em Actus das I Jonuukis do Griipo de Aiqueologia e Arte do Ceiilro) 355 XXIX ERRATAS ANTIGAS Ficou dito atras, no artigo «0 que permanece do sec. xv na igreja monastica do paQo de S. Marcos», que nunca se virificam excessiva- mente letreiros e suas transcrigoes, quer feitas por nos ou por outros; copiam-se, transcrevem-se para as minutas, passam-se estas a limpo, ha a composigao, correcgoes apressadas e, em tantos passos, origina-se um erro ou, mesmo, multiplicam-se. Corrigimos duas gritantes. No volume do «Inventario da Cidade de Coimbra» (Ac. Nac. Bel. Art., Lisb., 1947, pag. 49, 1,^ col., lin. 27) saiu desastradamente a data, na parte final do letreiro do tiimulo antigo de S. Teotonio. o primeiro prior do mosteiro de Santa Cruz. Gralha essa que so notamos quando vimos transcrito tal qual o que o que erradamente foi impresso. A origem de tal disparate poderia ter sido (o que e corrente) em sair mal o que se quiz escrever a maquina, e martelar-se com outras teclas o local errado, para o inutilizar, e em seguida o emendar, o que se nao fez logo e passou. O compositor entendeu como pode aquilo. na sua boa vontade de interpretar, saindo uma coisa indefinivel. O letreiro foi gravado na frente da borda da tampa da area tumular, encontrando-se mutilado no principio e no final, e diz: ... XII : k(a)l(endas) : m(a)rcii : obiit : DO(m)NVS : THEOTONIVS : p(r)imvs : p(r)ior , ET : PATER : MONASTEERii : s(an)c(t)e : + (Crucis) : E : M : c(c) Foi este segundo C, colocado entre parentesis (por ter sido muti- lada a tampa naquele ponto) que sofreu o erro. 357 A Era Hispanica de 1200 corresponde ao ano comum dc 1162. Faleceu, pois, D. Teotonio a 18 de Fevereiro de 1162. A «Vita Sancti Theotonii» da a data do falecimento pelos anob regies, os de D. Afonso Henriques, o que, tendo sido muito respei- toso para o chefe de estado, nao da a verdadeira certeza. Outra saiu no volume «Museu Machado de Castro. Secgao de Ourivesaria. Catalogo-guia» (Coimbra, 1940, pag. 3, lin. 8), des- crevendo-se o calice que foi do convento de Refoios de Basto. A data gravada no calice e: e(ra) : m : c : lxxxx, isto e, Era Hispanica de 1190 que corresponde ao ano comum de 1152. Na composigao viram quatro xxxx e, como e corrente nao repetir a letra numerica mais que tres, julgaram erro e cortaram uma. A inscrigao e: + GEDA : MENENDIZ : ME FECIT IN ONOREM ; s(an)c(t)i : MiCHAEiis : e(ra) : M : c : LXXXX Logo a seguir, na mesma ementa, identificava-se pela primeira vez o nome ali gravado: — Em atengao ao doador deste calice, Gueda Mendes, e porque este Ihe deu 900 modios, D. Afonso Henriques passou, em 26 Outubro 1131, carta de couto ao mosteiro de Refoios de Basto, donde veio este mesmo calice para o Colegio de S. Bento de Coimbra. O nome de Gueda Mendes, que foi governador de Celorico e de Panoias (Vila Real), aparece varias vezes como confirmante nos documentos regios, tanto do conde D. Henrique e de D. Teresa como de D. Afonso Henriques. Vem variadamente grafado o seu nome: Geda, Gueda, Guedaz, Gueta, Veta, Queda. Gueda originou o patro- nimico Guedes, como se ve do filho, que igualmente se encontra como confirmante, Menendus Guedaz. Como no calice o nome de Gueda vem como Geda, e a pratica dos documentos medievais nao e comum, trouxe inquietagoes a certa gente que, a seu juizo, as regras da grafia actual desde sempre vigoraram. Em dois catalogos de exposigao de ourivesaria (Musee des Arts Decoratifs — Les Tresors de I'orfevrerie du Portugal — Paris, 1954; Exposigao de Ourivesaria Portuguesa e Francesa — Lisboa, 1955) 358 apesar de citarem o catalogo de Coimbra, que nos organizamos, le-se no primeiro «Don de Geda Menendiz», e no outro «Doagao de Geda Menendiz; proveniente do Mosteiro de S. Miguel de Refoios de Basto, donde passou por ordem de D. Afonso Henriques para o colegio de S. Bento de Coimbra». Julgou o calalogador salvar a sua inquieta- ^ao de consciencia cientifica repetindo o que hoje e a falsa grafia, e juntou urn disparate de interpretagao do que haviamos escrito, inse- rindo uma hilariante ordem real, visto que a fundagao do colegio beneditino e do meado do sec. xvi. 359 INDICE Pags. I — Prefacio 5 II — Evocagao da obra coimbra na epoca medieval 7 III — Lourosa 37 IV — A arte medieval em Coimbra 55 V — As pontes do mestre Zacarias de Cordova no seculo x . . . . 99 VI — A lanterna-corucheu da Se Veiha de Coimbra 117 VII — A igreja de Ferreira de Aves 131 VIII — A igreja medieval do mosteiro de Vilela 143 IX — A torre antiga dos sinos da igreja colegiada de S. Pedro ... 153 X — A torre de Bera 157 XI — Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Noticia historica ... 161 XII — A igreja romanica de Santa Cruz 169 XIII — A frontaria romanica de St." Cruz de Coimbra 177 XIV — O narthex romanico da igreja de St.'' Cruz de Coimbra ... 191 XV — Os arcos romanicos encontrados na igreja de Santa Cruz de Coimbra 207 XVI — As capelas do lado direito da igreja de Santa Cruz 213 XVII — A torre de Santa Cruz de Coimbra 219 XVIII — A capela de S. Pedro de Avo 227 XIX — O gotico vila-realense do sec. xv 239 XX — A capela de S. Louren^o e a de S. Mateus 271 XXI — Os pagos a par de S. Lourengo 273 XXII — A capela de S. Louren^o aos Lazaros 277 361 Pag.s XXIII — Datas gravadas em esculturas coimbras do sec. xv 281 XXIV — O que permanece do sec. xv na igreja monaslica do pa(;o de S. Marcos 299 XXV — O pago dos senhores de Pombeiro na cidade de Coimbra . . 315 XXVI — O castelo de Avo 325 XXVII — Dois tecidos medievais mouriscos 335 XXVIII — Evoca^ao do XI centenario da primeira reconquista crista de Coimbra 343 XXIX — Erratas antigas 357 •"J 362 I COMPOSTO E IMPRESSO NAS OFICINAS DA «Imprensa de Coimbra, Limitada» LARGO DE S. SALVADOR, 1-3 — COIMBRA L O THE LIBRARY UNIVERSITY OF CALIFORNIA Santa Barbara MARl 1983 THIS BOOK IS DUE ON THE LAST DATE STAMPED BELOW. 5 z > JO ■< o Series 9482 ^ iQ >->!^iin 3H1 o o Z V" iAN 1 t ■ w'rj^CMii^f.j d'J: \ X o THS IIBV THE UNIVtRSITV o io AMvuan iHx « O THE UBKARV OF o M^^ S <^ o wiNnojnva i o THE IIBRARV OF o ,.f~— — r WJjT i || ^ 000 237 013 8 " « THE imilAltv o vjjvfljiva viNvs ^1 O THE IIB^ a« / \ ?! 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