Doc On-line, n. 10, agosto de 2011, www.doc.ubi.pt, pp.60-71. TÊNUES LIMITES ENTRE O CINEMA DOCUMENTÁRIO E FICCIONAL O EXEMPLO DE O MISTÉRIO DE PICASSO Soleni Biscouto Fressato  Resumo: Desde a invenção do cinema, duas grandes potencialidades se configuraram: o cinema enquanto reprodução verossímil do real com os Lumière e o cinema ilusionista e fantasioso de Georges Méliès. Na grande maioria das vezes esses dois grandes gêneros – documentário e ficcional – são analisados como divergentes. A partir da análise do filme O Mistério de Picasso (Henri-Georges Clouzot, 1956), o objetivo do presente artigo é analisar a possibilidade de síntese entre os dois gêneros. Palavras-chave: arte, cinema documentário, cinema ficcional. Resumen: Desde la invención del cine, se configuran dos grandes potencialidades: el cine como reproducción de lo real, con los Lumière, y el cine ilusionista y fantasioso de Georges Méliès. La gran mayoría de las veces esos dos grandes géneros, el documental y la ficción, se analizan como divergentes. A partir del análisis de la película El Misterio de Picasso (Henri-Georges Clouzot, 1956), el objetivo del presente artículo es analizar la posibilidad de síntesis entre ambos géneros. Palabras clave: arte, cine documental, cine ficcional. Abstract: From the invention of the cinema, two big potentialities configured : the cinema while reproduction of the real with the Lumière and the illusionistic cinema and fantasioso of Georges Méliès. In the large majority of the cases these two big genders – documentary and fictional – are analysed like divergent. From the analysis of the film The Mystery of Picasso (Henri-Georges Clouzot, 1956), the aim of the present article is to analyse the possibility of synthesis between the two genders. Keywords: art, cinema documentary, cinema fictional. Résumé: Depuis l'invention du cinéma, deux grandes tendances sont apparues: le cinéma comme reproduction du réel avec les frères Lumière et le cinéma illusioniste et fantastique de Georges Méliès. Dans la plupart des cas ces deux grands genres – documentaire et fiction – sont analysés comme divergents. A partir de l'analyse du film Le Mystère Picasso (Henri-Georges Clouzot, 1956), l‘objectif du présent article est d‘analyser la possibilité de synthèse entre les deux genres. Mots-clés: art, cinéma documentaire, cinéma fiction.  Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, Pesquisadora do grupo de pesquisa Oficina Cinema-História do Núcleo de Produção e Pesquisas da Relação Imagem-História da mesma universidade. E-mail: sol_fressato@yahoo.com.br Tênues limites entre o cinema documentário …. - 61 - À medida que a vida do homem se torna mais complexa e mecanizada, mais dividida em interesses e classes, mais ―independente‖ da vida dos outros homens e, portanto esquecida do espírito coletivo que completa uns homens nos outros, a função da arte é refundir esse homem, torná-lo de novo são e incitá-lo àpermanente escalada de si mesmo. (Antonio Callado, 1981:8) 1 No início dos anos 1950, Henri-Georges Clouzot (1907-1977), cineasta francês, amigo de Pablo Picasso (1881-1973) e apaixonado por pintura, resolveu fazer um filme inovador para a época. A idéia inicial era fazer um filme de arte e sobre arte de apenas 10 minutos, que não mostrasse, simplesmente, o pintor diante de sua tela, sendo filmado lateralmente ou de costas. Para tal intento, alguns amigos enviaram para Picasso uma tinta americana especial, o que possibilitou que a câmera fosse colocada atrás da tela e acompanhasse o ato criador sem nenhuma intervenção exterior. Com essa técnica, a tela de cinema se transformou numa tela em branco, pronta para receber os traços e as cores do pintor. O resultado final é emocionante, acompanhamos o passeio do pincel de Picasso sobre a tela, sua firmeza e precisão, mas também suas indecisões. Em tom provocativo, mesmo que de forma inconsciente, Clouzot denomina seu filme de Le Mystère Picasso, traduzido para o português como O Mistério de Picasso. A escolha do título e a estrutura do filme revelam a intenção do diretor em desvendar o mistério da arte de Pablo Picasso, revelar aos espectadores como suas telas são feitas, como é o seu processo de criação artística. Objetivo que, se não foi alcançado em sua 1 In Ernest Fischer, A Necessidade da Arte, Rio de Janeiro: Zahar, 1981. Soleni Biscouto Fressato - 62 - totalidade, teve boa recepção pelo público e pela crítica. O filme foi exibido no Festival de Cannes em 1956 e recebeu o Prêmio Especial do Júri. A possibilidade de poder acompanhar o destino das pinceladas até sua produção final é no mínimo comovente. Para todos aqueles que mesmo minimamente simpatizem com o fazer artístico é a chance de não apenas aprender sobre a arte de Picasso, mas também um deleite estético. No mesmo ano, François Truffaut, presente no Festival de Cannes, afirmaria que Clouzot havia colocado a ciência cinematográfica a serviço da pintura. O resultado era um filme único, como se fosse um desenho animado muito mais bonito que o normal, incomum e poético. Truffaut ficou impressionado com a firmeza do traço, a perpétua invenção e o bom humor de Picasso, revelados pelo filme. Mas, também não deixou de tecer algumas críticas. Clouzot poderia ter incluído no filme outras telas de Picasso, feitas no aconchego de seu ateliê, no ritmo e no tempo do pintor, para o espectador ter uma idéia geral de sua obra. Truffaut também fica decepcionado com a música do filme, acreditando que Clouzot poderia ter sido mais criterioso. Por fim, revela indignação comentando a cena em que o diretor pressiona Picasso para finalizar uma obra, inclusive cronometrando seu tempo, antes que termine o rolo de filme. Para Truffaut são questões técnicas limitando a inspiração criativa. (Truffaut, 1989). As considerações de Truffaut são interessantes, mas, alguns comentários são necessários. Não foi intenção de Clouzot fazer um filme biográfico ou cronológico, ou ainda, sobre a história da produção artística de Picasso, revelando seu estilo e tendências. Mais do que isso, a proposta é revelar o fazer artístico de Picasso, seus momentos de avanço e de insatisfação com o que está produzindo. Com relação à música, vale destacar que foi produzida por Georges Auric especialmente para o filme. A orquestra regida por Jacques Metehen acompanha o ritmo do pincel de Picasso sobre a tela e é significativo que o som de uma guitarra espanhola seja privilegiado nas telas com o tema da tourada. Sobre a questão do Tênues limites entre o cinema documentário …. - 63 - tempo, Picasso reage com bom humor, parece não se sentir pressionado, ao contrário, para ele é um desafio fazer com que a sua criatividade artística vença o tempo. Aliás, esse é o propósito de todo artista e um dos elementos que identifica uma obra de arte: a sua vitória sobre o tempo e o espaço em que foi produzida, tornando-se significativa (esteticamente e em seu conteúdo) mesmo já alterado o contexto de sua produção. Desde o seu lançamento o filme foi classificado pela crítica e aceito pelo público como documentário. É um filme que documenta a realidade do processo de criação artística: o pintor é real, Pablo Picasso, e as telas também são reais. Porém, apesar desses elementos, podemos também compreender O Mistério de Picasso como um filme ficcional. É essa síntese entre documentário e ficcional, presente no filme de Clouzot, que será analisada nesse artigo. O Mistério de Picasso: documentário ou ficção? O sonho de capturar a vida em movimento e de recriar o mundo à sua imagem não foi específico do homem de fins do século XIX. As sombras chinesas e a lanterna mágica já revelavam a necessidade de representar a vida como ela realmente é, não estática, mas com todo o seu movimento e dinamismo. Mas, foi somente em fins do século XIX, após as pesquisas e experiências de Isaac Newton (ainda no século XVII) e, com mais precisão, de Louis e Auguste Lumière que o mundo pode experenciar o fascínio das imagens em movimento: estava criado o cinematógrafo, invenção mecânica que permitia a obtenção de fotografias animadas. No final de 1895, os irmãos Lumière apresentaram seu invento. Para um público pagante de 33 pessoas, atraído não pela possibilidade de visualizar a realidade, mas pela imagem dela, foi exibido três filmes: Saída dos operários das Usinas Lumière (La Sortie des ouvriers de l'usine Lumière), Chegada de um trem à estação (L´arrivée d´un train à gare de la Soleni Biscouto Fressato - 64 - Ciotat) - ambos reproduzindo cenas do cotidiano, e O regador regado, um jardineiro que se molha com a mangueira (L‘arroseur arrosé), primeira película de ficção cômica. Assim, desde o seu nascimento o cinema já revelava suas potencialidades, tanto para os filmes documentários, como para os ficcionais. Conta a lenda que, a chegada do trem assustou a platéia: ingenuamente, acreditou-se que o trem atravessaria a tela, invadiria a sala e atropelaria os espectadores. Curiosamente, o público não percebeu que as imagens não tinham cor, nem som, nem relevo. O impacto e a imposição das imagens em movimento impressionavam e surpreendiam, colocava a própria realidade diante do olhar. Os primeiros filmes, registros curiosos de imagens em movimento, eram expressão da técnica, que apenas registravam o que ocorreu, não passavam por ilhas de edição ou por montagens, eram apenas seqüências emendadas umas nas outras para serem, em seguida, projetadas. Nessa perspectiva, ainda em 1898, o polonês Boleslas Matuszewski, câmera da equipe dos Irmãos Lumière, já defendia o registro cinematográfico como testemunha ocular dos fatos, documentando uma verdade definitiva. Alguns anos mais tarde, Sergei Eisenstein e Dziga Vertov contestaram essa posição de Matuszewski e afirmaram que as imagens fílmicas constroem uma realidade. Apesar disso, no final dos anos de 1920, nos Congressos Internacionais das Ciências Históricas, os pesquisadores ainda seguiam as concepções de Matuszewski, afirmando que o filme era um registro fiel da realidade. As produções de atualidades eram as que mais atraíam o olhar dos pesquisadores, pois se acreditava que estavam livres das influências de seus realizadores. Os filmes produzidos durante a Grande Guerra Mundial (quando o governo britânico enviou diversos cinegrafistas para as regiões de conflitos, capturando imagens que eram reproduzidas sem nenhuma montagem ou tratamento em diversos cinemas do país), receberam esse estatuto de cinema Tênues limites entre o cinema documentário …. - 65 - que registra a realidade, pois não recebiam nenhum tipo de interferência técnica ou humana, notadamente a montagem. A partir dessas experiências iniciais, logo nas primeiras décadas do século XX, John Grierson, sociólogo inglês, cunhou o termo documentário, definindo-o como um tratamento criativo da atualidade e acabou por fundar a escola documentarista inglesa, como ficou conhecida. Nos anos 1950 e 1960, os franceses trilhariam percurso similar com seu ―cinema verdade‖, destacando-se Jean Rouch e Chris Marker. Atualmente, os documentaristas atribuem aos documentários essa característica dos primeiros filmes. O cineasta e documentarista Vladimir Carvalho defende a prerrogativa de que os filmes documentários são os mais próximos das origens do cinema, enquanto registro da realidade, uma vez que possuem a ―pureza do tratamento do real‖. (CARVALHO, 2003, p. 16) Segundo ele, no conturbado início do século XXI, o cinema documentário poderá vir a ser um ―cinema cidadão‖ com foros de um novo humanismo. No seio das universidades, o cinema-documentário poderá contribuir para a superação do academicismo, assim como, deverá ser aplicado à educação e às campanhas públicas de melhoria social. Se os irmãos Lumière lançaram os pressupostos daquilo que viria a ser chamado de cinema documentário, Georges Méliès percorreu outro caminho. Encantado com as projeções dos Lumière, Méliès, um mágico, vislumbrou no cinematógrafo a possibilidade de construir outra realidade, não desvinculada da realidade ela mesma, mas, mais próxima do mundo dos sonhos, das fantasias, das expectativas e das ansiedades. Desde 1896, Méliès produziu vários pequenos filmes, um dos mais conhecidos é Viagem à Lua (Le voyage dans la lune) de 1902. Com esses filmes, Méliès percebeu o que os Lumière não tinham captado: o realismo do cinema era recebido como realidade, mas também como uma ilusão da realidade. Com Méliès o cinema se tornava narrativa ficcional. Soleni Biscouto Fressato - 66 - Transcorrido mais de um século da invenção do cinematógrafo pelos Lumière e do cinema ter encontrado sua vocação pelas mãos de Méliès, a ―tipologia‖ documentário e ficção ainda é utilizada na classificação dos filmes e a partir dela outras tantas também são consideradas (drama, comédia, romântico, histórico, etc.). Atualmente os documentários ainda são considerados como registros da realidade, e numa grande maioria das vezes, ainda são compreendidos como fidedignos da realidade sócio-histórica. Afirmação frágil, afinal não seriam os filmes documentários também frutos de uma seleção, como são os ficcionais? Poderiam eles preservar a ―pureza do tratamento do real‖, como afirmou Vladimir Carvalho (2003), como os primeiros filmes? E, talvez mais ousadamente, mesmo os curtos registros da realidade dos Lumière, não refletiriam uma escolha? Afinal, por que filmar a saída dos operários de uma fábrica e a chegada de um trem numa estação? Não seria essa escolha já fruto das influências sociais, políticas e ideológicas de sua época? Os documentários também passam por uma ilha de edição, momento em que o cineasta escolhe as imagens, sons e vozes que comporão o filme. Essas escolhas, muito longe de serem neutras e objetivas, são influenciadas por interesses, valores, crenças, preconceitos e convenções de uma época. A expressão registro da realidade não é a mais adequada, nem mesmo para os filmes documentários. Assim, a diferença entre documentários e ficcionais não pode estar pautada no caráter de fidedignidade sócio-histórica. Se a questão da fidedignidade não é suficiente para diferenciar os filmes documentários dos ficcionais, podemos pautar essa diferença na escolha das situações e dos personagens representados nos filmes. Os filmes documentários não criam situações, nem personagens, não inventam um mundo, sua proposta original é a informação e o aprendizado. Diferentemente das produções ficcionais, em que os cineastas possuem maior liberdade para criar. Tênues limites entre o cinema documentário …. - 67 - Nesse sentido, O Mistério de Picasso pode ser compreendido como um filme documentário, pois não cria situações nem personagens. Pablo Picasso é ele mesmo na película, um pintor exercendo sua atividade criativa. Essa é a proposta do filme, informar o espectador sobre o fazer artístico de Picasso. Esse caráter informativo é o que mais aproxima o filme do gênero documentário. Essa perspectiva informativa é pontuada logo no início do documentário. Uma voz- off nos explica que o pintor é um cego na escuridão das telas brancas. E a luz, paradoxalmente, é criada pelo próprio pintor, pelos seus traços na tela. É esse ―drama particular e diário‖ do pintor cego que será revelado no filme. Picasso resolveu mostrar para ―nós e conosco‖ esse seu drama. Apesar dessa voz-off inicial, o filme foge da estrutura tradicional de documentários: narração, voz-off, entrevistas. São poucas as cenas em que Picasso para de pintar e dialoga com Clouzot. Esses diálogos esclarecem mais sobre seu processo artístico e também sobre sua personalidade. Ele prefere a cor porque pintar colorido é mais divertido. Nunca está consciente do resultado final quando inicia um quadro, é um pintor que gosta de arriscar, que parte de uma idéia inicial e a percorre até estar satisfeito consigo mesmo. O ponto final é dado pela sua sensibilidade. Nunca se preocupou em agradar o público, em questionar-se como ele receberia suas telas, se o acharia simples ou dramático, se gostaria ou não. O documentário também nos informa sobre as preferências de Picasso. Se compararmos as vinte telas produzidas para o documentário com o restante de sua produção, poderemos identificar os temas mais recorrentes em suas obras. Temas muito associados ao contexto sócio-histórico vivido pelo pintor. Ateliês de artistas, com cavaletes, esculturas e nus femininos surgem em duas telas. Os animais, não apenas o touro, mas pomba, galo e peixe surgem em outras três. Os traços cubistas não são os únicos, apesar de Soleni Biscouto Fressato - 68 - ser seu estilo particular de pintar, e estão presentes em mais de uma dezena de telas. Mas, o mais significativo é o ambiente da tourada, seis telas contemplam o tema, seja diretamente ou apenas com a presença do touro ou do toureiro. Nelas as cores da Espanha, vermelho e amarelo, estão presentes. Para completar o momento artístico mágico, a guitarra espanhola acompanha os traços sobre a tela. Curiosamente, das quatro telas referentes à tourada, apenas numa o touro é vencido pelo homem, nesse caso Dom Quixote com seu fiel escudeiro Sancho Pança. Somos presenteados com uma composição harmoniosa entre pintura, música e literatura. Outra preocupação comum nas telas de Picasso, também surge no filme: expressar os sentimentos dos personagens por ele criados. E nesse momento, O Mistério de Picasso passeia pela ficção. Na frente da câmera, ao pintar as telas, não temos nenhuma informação exterior, apenas acompanhamos seu pincel. Vemos surgir pessoas, animais e ambientes. A arte de Picasso é, sobretudo, figurativa, mesmo em suas telas cubistas. O mundo ficcional criado por Picasso, conjugação de realidade e ilusão, passa a ser o centro do filme, se torna o próprio filme. Essa preocupação em expressar os sentimentos de seus personagens, que possibilitam a criação de um mundo ficcional, surge em todas as telas, mas, com mais intensidade na 15ª. Picasso inicia a tela com o esboço de um corpo feminino nu e deitado. Imediatamente sua preocupação volta-se para o rosto da mulher. Na tentativa de expressar como ela está se sentindo, ele modifica seu rosto cerca de 20 vezes. Algumas vezes parece estar mais triste e introspectiva, em outras assume uma atitude de maior contemplação, em outras de preocupação, alguns rostos possuem o traço mais cubista, até a completa definição: é ainda uma mulher jovem, está envolvida com a leitura e sua expressão é serena. Para finalizar, Picasso faz uma colagem de papéis coloridos que dão leveza e jovialidade à tela. Tênues limites entre o cinema documentário …. - 69 - Além de verificarmos a insatisfação do pintor frente à própria obra, na busca da expressão por ele considerada de ideal, acabamos por nos sensibilizar com os sentimentos daquela mulher, criatura de Picasso, que não existe realmente, mas durante aqueles minutos tem uma existência. No que estará pensando? Quais são suas preocupações e aflições? Na busca de personagens mais expressivos e de ambientes mais intensos, Picasso corre mais riscos e expressa melhor o que eles pensam e sentem. O Mistério de Picasso, com seus elementos de cinema documentário (narrativa informativa, personagem e situação reais) e ficcional (destaque para os personagens criados por Picasso), transforma-se numa síntese entre os dois gêneros. De fato, todos os filmes são um misto de documentário e ficcional, pois de forma consciente ou não nos informam algo sobre o contexto de sua produção. Mesmo os filmes ficcionais mais surreais e futuristas, mesmo os mais marcados pela indústria cultural podem possuir o caráter informativo do documentário. As artes possuem um caráter humano e social e uma racionalidade própria, sensível e estética. A estética realista é apenas uma possibilidade de representar a realidade. A inversão da realidade não deslegitima a produção cinematográfica e não a afasta da realidade social. Os exageros narrativos são recursos e não uma infidelidade ou superficialização factual, são uma forma de expressar a realidade. Embora não sejam produções de pesquisadores e sim de cineastas, os filmes, mesmo os mais ingênuos e espetaculares, possuem informações, muitas vezes, precisas sobre determinada época e sociedade. Infelizmente, estava estabelecido em contrato que, todas as 20 telas produzidas durante as gravações de O Mistério de Picasso seriam destruídas. Quantas pessoas ficariam emocionadas ao contemplarem essas telas? Quantos museus, em diversos países do mundo, ficariam honrados em mantê-las em seus acervos? Quantos colecionadores pagariam pequenas fortunas para tê-las em suas casas ou galerias? Quanto desse dinheiro Soleni Biscouto Fressato - 70 - Picasso poderia ter revertido para obras assistenciais? Em todas essas possibilidades o pintor esbarraria na questão do mercado da arte, em suas regras e normas, que desafortunadamente, transforma a arte em mercadoria. Por fim, O Mistério de Picasso é um filme fundamentalmente de sensações, visual e auditiva, que proporciona o deleite estético, o contato não apenas com a arte, mas com o fazer artístico. O próprio filme se transforma numa obra de arte. Possibilita-nos não apenas acompanhar a seqüência de traços e cores de Picasso, mas, sobretudo, o seu processo criativo e artístico. Podemos até, pausando ou deixando bem lentamente as imagens, copiá-lo ou imitá-lo, reproduzirmos sua técnica. Mas, jamais conseguiremos capturar sua inspiração. É-nos dito no início do filme que iremos ―conhecer o mecanismo secreto que guia o criador‖, será? Será que, terminado o filme, conseguimos descobrir o que o move Picasso a pintar uma cena de tourada? Ou somente o touro? Ou o ateliê de um artista? Ou uma cena circense? Ou nus femininos? Por que fica tão insatisfeito com suas telas, se nos parecem tão comoventes, interessantes e sedutoras? Nesse sentido, o mistério Picasso permanece. Os mecanismos que guiam os criadores, Picasso ou não, permanecem secretos, e esse é o grande fascínio da arte, que jamais poderá ser transformado em mercadoria. Referências bibliográficas CARVALHO, Vladimir (2003), ―Do cinematógrafo ao cinema cidadão‖ In: Acervo: Revista do Arquivo Nacional, n. 1, v 16, Rio de Janeiro, janeiro/junho, pp. 9-22. FISCHER, Ernest (1981), A Necessidade da arte, Rio de Janeiro: Zahar. TRUFFAUT, François (1989), Os Filmes da minha vida, Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Tênues limites entre o cinema documentário …. - 71 - NÓVOA, Jorge, FRESSATO, Soleni Biscouto, FEIGELSON, Kristian (orgs), (2009), Cinematógrafo. Um olhar sobre a história, Salvador, São Paulo: EDUFBA, Editora da UNESP.