O QUE RESTOU DO “SONHO AMERICANO”? O que restou do sonho americano 127 O QUE RESTOU DO “SONHO AMERICANO”? Eliana Lourenço de Lima Reis UFMG Se procurar você acaba encontrando Não a explicação (duvidosa) da vida, Mas a poesia (inexplicável) da vida. Carlos Drummond de Andrade I. “People fancy they hate poetry and they are all poets and mystics.” (Ralph Waldo Emerson) Em 1999, por ocasião das comemorações dos 50 anos da primeira montagem de sua peça mais famosa, Death of a Sales- man, Arthur Miller manifestou sua decepção com a situação do teatro no mundo contemporâneo: em lugar de se manter como veículo de reflexão sobre a história e a sociedade, o drama, em especial aquele produzido na Broadway, só consegue um financiamento para sua produção quando se trata de um musical ou quando conta com a presença de alguma estrela em seu elenco. Assim, para Miller, enquanto, no passado, muitas das personagens emblemáticas da cultura originaram-se no teatro, atualmente elas nascem do cinema. A posição antes ocupada por figuras chave para a compreensão da cultura ocidental do século XX, como o vendedor fracassado Willy Loman, personagem central da peça de 128 Eliana Lourenço de Lima Reis Miller, agora pertence a personagens cinematográficos que se tornam cada vez mais familiares ao grande público. Embora lamente a mudança de estatuto do teatro, o dramaturgo parece conformado com a situação, constatando o final do período áureo de centros como a Broadway, que, em sua opinião, conseguia, há algumas décadas, reunir um público heterogêneo, de tal forma que poderia representar o povo de forma análoga ao que acontecia na Inglaterra na época de Shakespeare. Hoje em dia, paralelamente à diminuição do interesse pelo teatro, o aumento do preço dos ingressos, limita a freqüência aos grandes teatros; para Miller, “[q]uanto mais restrito o público, mais se restringem as peças que o agradam”. E conclui: “Um ingresso que custa 40 dólares não aceita filosofias, tendendo, ao contrário, a banalidades” (Roudané 1985, p. 388). Se levarmos em conta a capacidade que atualmente os produtos da indústria cinematográfica têm de alcançarem um público amplo, tanto em termos espaciais quanto econômico-sociais, o cinema poderia agora funcionar como um instrumento mais efetivo para aqueles que Miller chama de “poetas-filósofos”, mesmo tendo em vista o número reduzido de espectadores interessados em obras que busquem mais do que o simples entretenimento. Na verdade, embora prefira claramente o teatro, Miller não ficou imune ao poder do cinema, como demonstra o fato de ter transformado The Crucible em roteiro, tendo lutado durante três anos para conseguir um diretor que se dispusesse a filmá-lo¾ felizmente, segundo afirma Miller, pôde contar com Nick Hytner, cuja experiência no teatro fez com que ele não se intimidasse frente à importância que a dramaturgia confere à linguagem, valorizando-a também no filme (Miller 1997, p. viii). Assim, a supremacia do cinema não significa o fim do teatro ou a ruptura de uma tradição, mas, em muitos casos, a retomada do arquivo da literatura dramática usando o filme como suporte e promovendo um diálogo produtivo entre teatro e cinema a fim de abordar questões cruciais da contemporaneidade. Entre estas certamente sobressaem as conseqüências do capitalismo na vida de indivíduos de sociedades diversas: com o O que restou do sonho americano 129 avanço avassalador do capitalismo através da globalização econômica, o chamado “sonho americano” deixou de caracterizar apenas a sociedade dos Estados Unidos, espalhando-se por grande parte do mundo. Isto faz com que os efeitos dolorosos da luta por esse sonho ultrapassem as fronteiras norte-americanas, adquirindo um caráter endêmico e transnacional. Isto explicaria o sucesso e a relevância de Death of a Salesman em épocas e locais diversos (por exemplo, na China, onde a peça foi co-dirigida pelo próprio autor) e a importância alcançada pelas comemorações de seu cinqüentenário em 1999. Explica também, em parte, o sucesso do filme mais premiado e debatido nesse mesmo ano: American Beauty, dirigido por Sam Mendes e com roteiro de Alan Ball, pode ser lido como uma versão pós-moderna da tragédia de Willy Loman, vendedor fracassado, herói medíocre da peça de Miller. II. “Hitch your wagon to a star” (R.W. Emerson) Como se sabe, o “sonho americano” consiste na crença de que os Estados Unidos são inerentemente a terra da oportunidade, o país em que qualquer um pode galgar posições sociais e até mesmo se tornar o presidente da nação; o lugar em que o sucesso é um direito a ser reivindicado por qualquer cidadão que seja bem relacionado e benquisto¾ nas palavras de Willy Loman, “o que é maravilhoso neste país é que um homem pode acabar conseguindo diamantes apenas por ser querido” (Miller 1976, p. 86). Isso porque “[a] única coisa que se tem neste mundo é aquilo que se pode vender” (p. 97), como afirma Charley, vizinho de Willy. O corolário dessa crença de que qualquer um pode alcançar sucesso e prosperidade através do esforço, aliado a uma alta dose de marketing pessoal, acaba sendo a conclusão de que o culpado de um eventual fracasso é apenas o indivíduo. Como o sucesso financeiro é visto como o 130 Eliana Lourenço de Lima Reis único sinal de valor social ou de realização pessoal, não se apresentam soluções alternativas que resguardem a auto-estima de quem não conseguiu acumular bens. Sendo um vendedor, Willy Loman representa a figura arquetípica americana, em especial o materialismo associado ao desenvolvimento econômico que se seguiu à 2ª Guerra Mundial e que resultou na hegemonia dos Estados Unidos. Como Miller observou em uma entrevista, O “sonho americano” é a tela, em geral não percebida, diante da qual toda a escrita americana se encena–a tela da perfectibilidade do homem. Qualquer um que esteja escrevendo nos Estados Unidos está usando o “sonho americano” como um pólo irônico de sua história. (...) Afinal, as histórias que nos contam grande número de obras literárias significativas são sobre algum tipo de fracasso (...) em relação a essa tela, a esse pano de fundo. (Roudané 1985, p. 374) No entanto, esse lado materialista do “sonho americano” precisa ser entendido em conjunto com sua contraparte positiva e idealista, embora igualmente imaginária, e que tem suas raízes nos princípios do Transcendentalismo, em especial na confiança ilimitada no poder do homem de se transformar e de transformar a realidade natural e social, bem como na idealização da natureza, vista não só como a representação daquilo que o ser humano tem de melhor, mas também, em última análise, como uma criação individual e como busca pela beleza. O “sonho americano” confunde-se, assim, por um lado, com o individualismo inspirado na idéia emersoniana de autoconfiança [self-reliance] e de idealização da natureza, e, por outro, com a ideologia capitalista, também baseada no individualismo, bem como no sucesso material e na importância exagerada conferida à profissão que se exerce— como é esta que determina a identidade pessoal, todos os outros papéis desempenhados na vida são vistos como menos importantes. Daí o título da peça de Miller, que apresenta o último dia da vida do O que restou do sonho americano 131 vendedor Willy Loman, herói medíocre, que fracassa como pessoa, pai e marido ao perseguir até a morte o fantasma do sucesso. Na verdade, Willy literalmente dá a vida pelo sucesso que só o dinheiro representaria: ao se ver desempregado por não mais conseguir um desempenho profissional satisfatório, Willy conclui que “a gente acaba valendo mais morto do que vivo” (Miller 1976, p. 98), o que o leva a um gesto desesperado, que ele entende como sendo heróico, isto é, cometer suicídio para que a família receba seu seguro de vida–um sacrifício inútil, mais patético do que trágico, já que constitui mais uma falcatrua que será facilmente detectada. Ao final da peça, o filho mais velho observa que o pai “teve os sonhos errados” (p. 138). Já o outro endossa o projeto de vida paterno: “Ele teve um sonho digno, o único sonho que vale a pena ter: ser o número um.” (p. 139). Loman sonhou com grandes vendas, prosperidade e reconhecimento social; no entanto, aos 63 anos, exausto, endividado e à beira de perder o emprego, recusa- se a abandonar as ilusões, e sua mente vagueia entre momentos de lucidez e de devaneios. Seus filhos não se saíram melhor e, embora já adultos, não conseguiram atingir autonomia emocional ou financeira, vivendo de pequenos expedientes, incapazes de assumir a própria vida. Toda a ação se passa numa casa no Brooklyn cuja hipoteca ainda não foi totalmente paga, mas que já está decadente e abafada pelos edifícios ao seu redor: no jardim já sem árvores, Willy tenta pateticamente plantar algumas sementes, mas nada mais floresce em meio à desolação e à aridez do bairro invadido pela degradação urbana. A descrição do cenário chama a atenção para o contraste entre “a luz azul do céu que recai sobre a casa e a frente do palco” e “o raivoso brilho alaranjado” projetado pelos edifícios, que constituem “uma abóbada sólida de prédios de apartamentos ao redor da casa pequena, de aparência frágil” (p.11). Ao encenar a tragédia do homem comum, como indica a própria escolha do nome de Willy Loman, Miller procura não só criticar o “sonho americano”, mas também o modo como o capitalismo produz novos modelos ideológicos que acabam por distorcer o 132 Eliana Lourenço de Lima Reis modelo puritano de ética do trabalho, que é traduzido em sua versão espúria, calcada num ideal de esperteza, culto da aparência e capacidade pessoal de sedução. Nos momentos em que, delirante, Willy Loman é invadido pelas lembranças do passado, ficam patentes as conseqüências éticas e psicológicas que a ideologia do sucesso tem sobre a família: nas cenas situadas no plano da memória, o pai vê sua família menos como realidade afetiva do que como promessa de um futuro brilhante, a ser alcançado não pelo trabalho árduo, mas pela esperteza ou até mesmo a desonestidade, pelo sucesso com as mulheres ou nos esportes. Como conseqüência, não é importante explicitar qual o produto vendido por Willy, que, em suas falas, transfere para si as qualidades da mercadoria – na verdade, ele busca vender a si mesmo, apontando para a identificação exagerada entre o sujeito e o objeto, entre o homem e a mercadoria ou própria atividade econômica que exerce. Assim, esgotada a capacidade de promover a circulação de mercadorias ou dos signos que estas representam, Willy Loman torna-se obsoleto como a casa ou os eletrodomésticos, que deixam de funcionar de modo adequado antes mesmo de serem quitadas as prestações da compra. Ao final da peça, ele próprio se torna mercadoria, quando comete suicídio numa tentativa desesperada¾e frustrada¾de deixar como herança o dinheiro de seu seguro de vida. III. “The difference between landscape and landscape is small, but there is great difference in the beholder” (R. W. Emerson) Meio século mais tarde, a família Loman é evocada em Ameri- can Beauty não só através das novas configurações do etos capitalista na década de 90, mas também de maneira direta, embora sutil: a casa situada ao lado da residência da família Burnham, centro do O que restou do sonho americano 133 enredo, foi vendida depois que os Lomans se mudaram. Como na peça de Miller, as relações entre os vizinhos são também tensas, já que Carolyn havia cortado a árvore plantada na divisa entre as duas propriedades—uma alusão aos elmos que, no passado, existiam no quintal de Willy Loman. Mudaram os moradores, mas permaneceram as estruturas familiares falidas; na verdade, o filme parece apontar para a deterioração crescente do modelo familiar. Na peça de Miller, o desajuste emocional e a decadência ética dos Lomans se contrapõem aos padrões mais positivos dos vizinhos, que tratam Willy com paciência e generosidade, e buscam preparar os filhos para o sucesso através do esforço e da seriedade. Em American Beauty, porém, até mesmo o modelo puritano é apresentado apenas em seu lado negativo: o Coronel Fitts representa a face hipócrita e repressora da ética do dever e do trabalho, com conseqüências destrutivas para a mulher¾ que se anula até o ponto de perder contato com a realidade ¾e o filho, que finge respeitar as regras severas do pai, mas é usuário e traficante de drogas. “Meu pai acha que eu compro tudo isto [sua sofisticada aparelhagem de vídeo] trabalhando como garçom. Nunca subestime o poder da denegação” (Ball 1999, p. 47), comenta Ricky Fitts, trazendo à luz questões cruciais da sociedade contemporânea. Na verdade, o poder das ilusões e das aparências, bem como a dificuldade de encarar a realidade e os mecanismos de evasão utilizados para isso, constituem o cerne tanto de Death of a Salesman quanto de American Beauty. Para ressaltar as visões altamente subjetivas do real, as duas obras evitam a abordagem realista, optando por mesclar momentos de devaneio com o plano da realidade. Ao lançar mão de recursos expressionistas, Miller organiza sua narrativa através de uma estrutura episódica e fragmentada, que busca captar a maneira como Willy Loman percebe o mundo, como demonstra o título inicial da peça, The Inside of His Head. Daí o uso de um esquema temporal complexo, que alterna o tempo histórico com as memórias e devaneios de Willy, e que se associa à fragmentação espacial, intensificada pela justaposição das imagens da cidade, com sua luz 134 Eliana Lourenço de Lima Reis “raivosa, alaranjada” e os edifícios altos, que abafam a casa transparente, quase onírica, que serve também de espaço para os acontecimentos que voltam à memória de Willy e que compõem também o imaginário americano. Assim, o espaço mítico, a natureza idealizada (o oeste desbravado pelo pai de Willy, a selva onde seu irmão Ben teria se enriquecido da noite para o dia), se mistura ao “território” comercial controlado pelo vendedor e à casa modesta da família, chamando a atenção para o contraste en- tre a base mítica e ilusória do “sonho americano”, inspirado em um passado imaginado como composto de aventuras e realizações, em contraste com o presente, marcado pelo declínio e o desapontamento em termos financeiros e afetivos. Em Death of a Salesman, da natureza exuberante e dos sonhos só ficaram rastros: o som da flauta e o jardim árido. Já em American Beauty, em contraste com o cenário da peça de Miller, as árvores e os jardins ocupam a tela em vários momentos. Trata-se, porém, de uma natureza paradoxalmente construída, “fake”, como que um simulacro da paisagem natural de uma América mítica. O mesmo acontece com os outros espaços, que são apresentados através de uma abordagem hiper-realista, que resulta de seu caráter estereotípico: o que se vê é a América dos bairros residenciais prósperos, planejados, arborizados e tranqüilos, com casas bem cuidadas e jardins floridos¾como em maquetes ou peças publicitárias de um empreendimento imobiliário. A própria beleza da espécie de rosa que dá nome ao filme parece perfeita demais para ser real; na verdade, a flor pertence ao reino das mercadorias ou dos signos de sucesso ao ser mostrada em toda sua perfeição, cuidadosamente cortada por Carolyn, cujas ferramentas de trabalho no jardim, de cores combinadas, apontam para a artificialidade e pretensa aparência de sucesso que ela procura transmitir. A apresentação da paisagem como participando da ordem da simulação é reforçada pela cena inicial do filme, mediada pelo vídeo, em que Jane Burnham descreve o pai como incapaz de servir O que restou do sonho americano 135 de modelo de comportamento adequado para a filha. Ao mesmo tempo, a pose artificialmente à vontade da adolescente e sua aparente frieza ao dizer a Ricky, que grava a cena, que gostaria que este matasse o pai, sugerem que Jane está na verdade atuando para a câmera, o que é reforçado por seu receio de que o rapaz leve seu pedido a sério¾detalhe que só é revelado ao final do filme, quando a cena é repetida dentro do contexto geral do enredo. IV. “Build your own world.” (R. W. Emerson) Como observa Alan Ball no posfácio ao roteiro, o filme pretende criticar os “valores da classe média americana na era da mídia”, bem como sua “cultura manufaturada”, que “prospera através do ato de simplificar e abalar a experiência rapidamente a fim de vendê-la” (Ball 1999, p. 114). Ricky certamente representa o comportamento típico “na era da mídia”, enquanto Carolyn Burnham encarna essa “cultura manufaturada”, sobretudo aquela utilizada na busca pelo sucesso financeiro. Como os estudos sobre a mídia têm destacado, a forma de comunicação mais comum, a interação direta, baseada na presença física, vem sendo aos poucos substituída pela interação mediada, resultando em novos tipos de relações sociais e pessoais, isto é, entre indivíduos e até consigo mesmo (Thompsom 1995, p.4). Em conseqüência disso, o material simbólico mediado muitas vezes deixa de ser apenas um dos recursos disponíveis para a formação do sujeito e para a comunicação, tornando-se quase que um substituto das interações pessoais diretas (Thompsom 1995, p. 219). É isto que acontece com Ricky, em American Beauty, cuja família reage aos efeitos da repressão exercida pelo pai militar através da evasão da realidade e das dificuldades de convivência em 136 Eliana Lourenço de Lima Reis sociedade— seja através da alienação patológica de Barbara, seja através do uso de drogas e da obsessão (quase uma adição) por equipamentos de vídeo, no caso de Ricky. Para ele, a realidade precisa se transformar em imagem para poder ser apreendida através do processo de construção de um “cotidiano desdobrado”, enquadrado pela reprodução mecânica, e compreendido por meio de uma “retrovisão” (Guidieri 1997, p. 14). Porém, como observa Remo Guidieri a respeito da hipertrofia da informação mediada na sociedade contemporânea, “[e]ssa extensão paradoxal, sempre enquadrada, da visão, tem seu preço, e provoca uma espécie de estupor, uma necessidade que incita a ânsia, sempre frustrada, de, ainda assim, apreender mais imagens.” (p. 31). Provoca também a ânsia de construir o que Susan Sontag1 denomina “uma antologia de imagens”, resultante do “novo código visual” que regula nossas vidas, e que produz não só “uma gramática” mas também “uma ética do ato de ver” (Sontag 1977, p. 3), baseada em uma “relação voyeurista crônica com o mundo” (p. 11). Isso faz com que os meios eletrônicos usados para se captar imagens funcionem como “um dos principais meios de se vivenciar algo, de dar a impressão de participação” (p. 10). Essa sensação é, certamente, ilusória, já que as imagens, pelo fato de serem mediadas, constituem “um ato de não-intervenção” na realidade (p. 11), ao propiciar, paradoxalmente, “tanto a participação quanto a alienação em nossas próprias vidas e na dos outros”(167). Através do comportamento de Ricky, American Beauty faz uma crítica dessas novas formas de se vivenciar o real, bem como da obsessão de acumular as imagens do presente, que muitas vezes só consegue ser vivenciado quando transformado em passado, para o qual se volta o olhar nostálgico. Pode-se notar essa tendência não só nas inúmeras vezes em que Lester contempla o retrato da família, mas principalmente na compulsão de Ricky em colecionar e consumir as imagens da vida à sua volta, em lugar de participar dela, como atesta seu arquivo de fitas de vídeo. Assim, como observa Susan Sontag, as imagens constituem O que restou do sonho americano 137 uma maneira de aprisionar a realidade, percebida como recalcitrante, inacessível; de fazer com que ela não se mexa. Ou elas podem ampliar uma realidade que se sente como empobrecida, esvaziada, perecível, remota. Não se pode possuir a realidade, mas pode-se possuir imagens (e ser possuído por elas—pois, de acordo com Proust, o mais ambicioso dos prisioneiros voluntários, não se pode possuir o presente, mas pode-se possuir o passado. (Sontag 1977, p. 163) “A fotografia é o inventário da mortalidade” (p. 70), conclui Sontag, mas na verdade sua afirmação poderia ser estendida aos outros meios de reprodução de imagens na época contemporânea, marcada pela produção e consumo da nostalgia, ou pelo processo que Andreas Huyssen denomina a “musealização” da realidade, que, na vida privada, se traduz na “obsessiva auto-musealização através do vídeo” (Huyssen 1997, p.223). O vídeo, como a fotografia, torna-se então “uma arte elegíaca”, pois, ao captar a realidade em imagem, confere a qualquer objeto um certo pathos, já que, nas palavras de Sontag, “[t]odas as fotos são memento mori”(p.15)—sendo que o mesmo pode ser dito a respeito do vídeo. E é justamente a consciência do “caráter mortal, vulnerável, mutável” (Sontag 1977, p. 15) daquilo que se enquadra através das lentes de uma câmara que faz com que o objeto pareça cercado de uma aura. Talvez seja isso que explique a beleza que Ricky diz encontrar na dança do saco plástico empurrado pelo vento; afinal, como observa Sontag, “Ninguém jamais descobriu a feiúra através de fotografias. Mas muitos, através de fotografias, descobriram a beleza”. (p. 85) A beleza, então, existe apenas quando construída e mediada pelas lentes de uma câmera. Pode-se dizer que as imagens são utilizadas por Ricky com um objetivo epistemológico (como ferramentas para compreender o mundo) e estético (captar a beleza que o olhos, sem a ajuda da tecnologia, não conseguem ver). Já para Carolyn, o mundo das imagens e aparências tem uma finalidade mais pragmática: “Como 138 Eliana Lourenço de Lima Reis você sabe, meu negócio é vender uma imagem. E parte de meu trabalho é viver de acordo com essa imagem—”, ela adverte o marido em uma festa de profissionais do mercado imobiliário (Ball 1999, p. 29). Suas idéias são reforçadas pouco mais tarde por Buddy, cujo sucesso nas vendas faz com que Carolyn o veja como modelo: “[...] é minha filosofia que, para ser bem sucedido, a pessoa tem que projetar uma imagem de sucesso, o tempo todo” (p. 51). Ou, como diria Willy Loman, “a questão não é o que você faz... É quem você conhece e o sorriso no seu rosto!” (Miller 1976, p. 86). E, além disso, é a crença de que uma carreira vitoriosa depende do esforço pessoal e de uma confiança no poder quase mágico das técnicas de motivação para se garantir a construção de um indivíduo “centrado em si mesmo” (“me-centered”) e, portanto, apto para o sucesso financeiro, como sugere a fita que Carolyn ouve no carro a caminho do trabalho: “Apenas quando se assume total responsabilidade por seus próprios problemas—e pela solução deles—é possível se libertar do ciclo contínuo de vitimização.”(pp. 85-86) Assim, a frase “Eu me recuso a ser uma vítima” deve ser repetida “como um mantra”, até ser totalmente incorporada ao seu comportamento (p. 90), funcionando de maneira semelhante à repetição contínua e compulsiva das pretensas fórmulas de sucesso por parte de Willy Loman. E interessante observar que, passadas cinco décadas da primeira apresentação de Death of a Salesman, a ideologia do capitalismo deixa de ter uma face eminentemente masculina e, ao contrário do que promete a fita que Carolyn ouve, transforma as mulheres nas vítimas mais recentes do “sonho americano”. Daí a enorme distância que separa o mundo doméstico de Linda Loman e a total imersão de Carolyn Burnham na competitividade do mercado imobiliário. Assim, enquanto para Happy Loman, “tornar-se o número um” é “o único sonho que se pode ter” (Miller 1976, p. 139), para Linda isso não faz sentido:“Por que cada um tem que conquistar o mundo?” (p. 85), ela pergunta. No entanto, essa questão vai se tornar crucial à medida que as mulheres buscam não só se O que restou do sonho americano 139 integrar ao mundo profissional, mas também ser vitoriosas nele. Em American Beauty, parece não haver uma solução positiva para as mulheres, condenadas à alienação, por razões diversas. Por um lado, a mãe de Ricky, em especial devido às limitações impostas pela mentalidade machista do marido militar, perde aos poucos qualquer contato com qualquer realidade que não ser a busca da perfeita ordem e limpeza da casa. Por outro lado, Carolyn abafa seus sentimentos tanto pelo marido quanto pela filha, investindo toda sua energia na busca do sucesso, ou mesmo na aparência do sucesso, isto é, na aparência de felicidade (os jantares de família, cuidadosamente encenados até mesmo na escolha da música ambiente, constituem um dos índices da erosão de qualquer sentimento de intimidade). Da felicidade só restou a fotografia da família quando Jane era criança, que Lester olha nostalgicamente. “Ela [Carolyn] costumava ser feliz. Nós costumávamos ser felizes”, ele observa, surpreso (Ball 1999, p. 4). As mulheres da nova geração acham-se também marcadas pelo culto das aparências e da beleza, que acaba se mostrando como o correlativo feminino do que para Happy, em Death of a Salesman, significava “se tornar o número um”. “Acho que não há nada pior do que ser comum...”, diz Angela, a amiga de Jane por quem Lester se sente atraído, e cujo sonho é seguir a carreira de modelo. De certa forma, Angela constitui uma das manifestações da beleza americana a que se refere o título do filme; no entanto, como a rosa a que está associada, trata-se de uma beleza artificial, ou apenas imaginada por Lester como um signo do desejo ou da juventude perdida, mas que não consegue enganar Ricky, que lhe diz a verdade que ela teme: além de desinteressante [boring], An- gela é “totalmente comum”; mais, ainda, no fundo, ela sabe disso (Ball 1999, p. 88 ). Por sua vez, embora Jane sinta-se pouco atraente e não pareça em modificar a situação, seu sonho é uma cirurgia plástica nos seios, para a qual vem economizando desde o começo da adolescência. Embora se mostre mimada e distante em relação aos pais e mesmo aos colegas, seu relacionamento com Ricky parece 140 Eliana Lourenço de Lima Reis apontar para uma mudança positiva, semelhante àquela experimentada por seu pai. Na verdade, tanto para Jane quanto para Lester, o espaço de tempo em que se passa a ação do filme significa uma época de confronto com o real, num tempo localizado como que fora do tempo histórico, análogo ao que Miller propõe em Death of a Salesman. V. “For through that better perception he stands one step narer to things, and sees the flowing metamorphosis; perceives […] that within the form of every creature is aforce impelling it to ascend to a higher form […]” (R. W. Emerson) Para Miller, a ação de sua peça “está suspensa fora do tempo cronológico”, como em um sonho (citado em Bigsby 2000, p. 6). Isto explica um dos títulos que o autor imaginou para Death of a Salesman inicialmente: A Period of Grace, uma referência “àquele período anômalo em que o tempo de uma apólice de seguro já expirou, mas continua valendo, temporariamente, sem nenhum referente temporal” (Bigsby 2000, p. 6). Como Willy Loman em seu último dia de vida, Lester Burnham vive seu último ano de vida suspenso entre o presente e a rememoração nostálgica do passado. De certo modo, ele abandona o tempo histórico ao renegar a vida que se espera de um adulto tanto em suas obrigações profissionais quanto familiares; para isso não hesita em lançar mão de meios desonestos (a chantagem contra seus empregadores) e em buscar recriar a adolescência perdida através da tentativa de recuperar o vigor físico e o gosto pelo prazer, metaforizados em seus devaneios, centrados numa imagem idealizada de Angela. Pode-se aplicar a Lester o comentário de Miller sobre Willy Loman, já que ambos buscam, neste período suplementar de suas vidas, “ver o presente O que restou do sonho americano 141 através do passado, e o passado através do presente” (citado em Bigsby 2000, p. 12). O sentimento de urgência de recuperar o tempo perdido torna- se mais forte em American Beauty pela posição em que o espectador é colocado ao saber, desde as primeiras cenas do filme, que a história está sendo contada em forma de memórias póstumas. Como indica o roteiro, “[e]stamos voando sobre a América dos bairros residenciais [suburban America], descendo devagar em direção a uma rua arborizada” (Ball 1999, p. 1), ironicamente chamada “Robin Hood Trail”, em uma alusão a um passado mitológico associado, por um lado, a aventuras dentro do mundo natural (análogo ao “mundo verde” que Willy Loman imagina ser o espaço masculino, propício ao sucesso), mas, por outro, a condutas moralmente duvidosas, mesmo que sancionadas socialmente (o mundo profissional de Lester e Carolyn, bem como o de Willy Loman). Ouve-se então a voz de Lester: “Meu nome é Lester Burnham. Este é meu bairro. Esta é minha rua. Esta… é minha vida. Tenho quarenta e dois anos. Em menos de um ano, estarei morto. [...] É claro que eu ainda não sei disto. […] E, de certa forma, já estou morto.” (Ball 1999, p. 1) Assim, as memórias de Lester estão revestidas da autoridade de quem teria uma visão distanciada da vida, fora do alcance dos vivos, pois consistem numa espécie de visão da existência que se imagina acontecer no momento da morte. Isto fica ainda mais claro ao final do filme, quando ouvimos a voz de Lester: “Sempre ouvi dizer que a vida inteira de uma pessoa passa rapidamente diante dos seus olhos um segundo antes de morrer. [...] Só que esse segundo não é bem um segundo— ele se prolonga para sempre, como um oceano de tempo…” ( Ball 1999, p. 97) E é a partir desse tempo fora do tempo que a história é narrada, adquirindo a autoridade que Walter Benjamin confere aos narradores tradicionais que, para ele, ainda eram capazes de legar uma experiência; no entanto, Lester difere desse modelo pela atitude extremamente irônica, que alcança seu ponto alto nas palavras que encerram o filme: “Certamente vocês não estão entendendo nada 142 Eliana Lourenço de Lima Reis do que estou falando. Mas não se preocupem... […] Um dia vocês ainda vão entender.” (Ball 1999, 100) Ao apelar para a mortalidade humana, o filme reforça o significado de Lester como representante do homem comum da sociedade contemporânea– ou Everyman, como Willy Loman—nos seus erros e desejos. Assim, o personagem começa como a figura do perdedor, tão temida pela cultura capitalista , mas é alguém que sente que “perdeu algo” ao longo da vida, embora não consiga precisar exatamente o quê (Ball 1999, p. 5), e que se vê ameaçado de perder o emprego, não pela idade, como Loman, mas devido à política de cortes de pessoal, típica da década passada, que busca a “eficiência” em parte dispensando os trabalhadores considerados desnecessários [“expendable”] (Ball 1999, p. 7). Sua reação é chantagear o chefe, receber uma indenização alta e voltar a uma vida de adolescente, na busca nostálgica da felicidade perdida. E, nesse ano que funciona como o “period of grace” de Loman, Lester acaba conseguindo, pelo menos, se sentir bem consigo mesmo. Ao examinar com ternura o porta-retrato com a foto da família, no momento antes de ser baleado, “[ele] de repente parece mais velho, mais maduro... e então sorri: o sorriso largo, satisfeito, de um homem que acaba de entender o significado de uma piada que ouviu há muito tempo...” (Ball 1999, p. 96) A felicidade está em momentos aparentemente sem importância, parece indicar o filme, apontando para a nostalgia que marca as sociedades ocidentais contemporâneas. A felicidade ficou perdida em algum lugar do passado, mesmo que imaginário: em American Beauty, a juventude e a esperança de felicidade; em Death of a Salesman, a vida próxima à natureza, o início do casamento, as promessas de sucesso para os filhos, a floresta, o jardim. Em American Beauty, Lester reencontra um pouco de felicidade na redescoberta do corpo e do prazer, na busca de relações humanas desvinculadas de interesses profissionais, na falta de compromissos; porém, isso depende de uma opção que funciona por algum tempo, apenas neste “period of grace”, em que foi possível ignorar o tempo O que restou do sonho americano 143 histórico—um período que, estranhamente, parece se prolongar depois da morte. Da vida, Lester guarda apenas algumas imagens: o céu estrelado no acampamento de escoteiros, as folhas de outono, as lembranças da avó, a filha quando criança, e, finalmente, o vídeo gravado por Ricky, que mostra um saco plástico movido pelo vento: “O vento carrega-o em círculos em volta de nós, algumas vezes sacudindo-o violentamente, ou, sem avisar, empurrando-o em direção ao céu, para em seguida deixá-lo flutuar graciosamente ate o chão...” (Ball 1999, p. 100) Ao mesmo tempo, ouvimos a voz de Lester, que ecoa em parte as palavras anteriormente proferidas por Ricky: Acho que poderia estar danado da vida com o que aconteceu comigo... mas é muito difícil ficar com raiva quando há tanta beleza no mundo. Algumas vezes eu me sinto como se estivesse vendo tudo ao mesmo tempo, é demais, meu coração se enche como um balão que está a ponto de estourar... e então eu me lembro de relaxar, e paro de tentar me agarrar a isso, e tudo flui através de mim como chuva, e eu só posso sentir gratidão por cada um dos momentos da minha vidinha boba... Você não tem a menor idéia do que estou falando. Mas não se preocupe...Um dia você vai entender. (Ball 1999, p.100) VI. “Nature cannot be surprised in undress. Beauty breaks in everywhere.” (R.W. Emerson) Onde está, então, a “beleza americana”? Na rosa vermelha e perfeita, ou no saco plástico que se entrega à força do vento, sem opor resistência? Onde esta a felicidade? No sonho americano alcançado pelo “self-made man” ou na experiência dos pequenos 144 Eliana Lourenço de Lima Reis momentos? A resposta sugerida por Death of a Salesman e Ameri- can Beauty baseia-se, por um lado, no firme repúdio da face materialista do “sonho americano”, e, por outro, numa atitude de compaixão para com aqueles que perseguem “os sonhos errados”— sobretudo quando a vida é apresentada do ponto de vista distanciado de alguém que já não participa mais dela, como Lester. Ou então quando mediada pela perspectiva de uma figura de narrador-Deus, também situado fora do tempo cronológico, como o Stage Man- ager de Our Town, uma das peças mais populares nos Estados Unidos. Ao final da peça, Emily, que morre ao dar a luz ao primeiro filho, pergunta: “Será que os seres humanos algum dia compreendem a vida enquanto ainda vivem?— cada minuto dela?” A resposta do Stage Manager é evasiva, insegura: “Os santos e poetas, talvez— um pouco.” (Wilder 1998, p. 108) Nota 1. Em On Photography, Susan Sontag, afirma haver uma diferença entre o significado das imagens na fotografia e nas imagens em movimento no vídeo e no cinema. Porem, para o que me interessa discutir neste trabalho, não estou levando em conta essa distinção. O que restou do sonho americano 145 Bibliografia BALL, Alan. American Beauty. The Shooting Script. New York: Newmarket, 1999. BIGSBY, Christopher. Arthur Miller: Time Traveller. In: MARINO, Stephen (Ed.). “The Salesman Has a Birthday”. Lanham, MA / Oxford: University Press of America, 2000. p. 1-17. GUIDIERI, Remo. El museo y sus fetiches. Crónica de lo neutro y de la aureola. Trad. Isabelle Touet de Matallana. Madrid: Tecnos, 1997. MARTIN, Robert A. e Stephen R. Centola (Eds) The Theater Essays of Arthur Miller. New York: DaCappo Press, 1996. MILLER, Arthur. The Crucible. London: Methuen Film, 1997. Author´s Note to The Crucible as Film. p. v-viii. MILLER, Arthur. Death of a Salesman. New York: Penguin, 1976. ROUDANE, Matthew C. 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