Formas de apropriação da arte pela publicidade a r t i g o ano 10 vol. 10 n. 28 p. 137-168 MAI./ago . 2013 Formas de apropriação da arte pela publicidade Formas de apropiación del arte por la publicidad Ways of art appropriation by the advertising Roberta Fernandes Esteves1 João Batista Freitas Cardoso2 Resumo Utilizando como base as distintas maneiras de apropriações das representações visuais artísticas pela comunicação publicitária propostas por Lúcia Santaella (2005) – imitação das maneiras de compor e incorporação da imagem artística –, o presente artigo apresenta, a partir do exame de peças publicitárias veiculadas em diferentes países, sete novas categorias delineadas em função do uso parcial ou total da imagem apropriada e de interferências realizadas nessas. Palavras-chave: Criação publicitária; Artes visuais; Apropriação Resumen Utilizando como base las distintas maneras de apropiaciones de las representaciones visuales artísticas en la comunicación publicitária propues- tas por Lúcia Santaella (2005) – imitación de las maneras de componer e incor- poración de la imagen artística – el presente artículo presenta, a partir del exa- men de los anuncios publicitários vehículados en diferentes países, siete nuevas categorías delineadas en función del uso parcial o total de la imagen apropiada y de interferencias realizadas en ellas. Palabras-clave: Creación publicitária; Artes visuales; Apropiación 1 Doutorado em andamento em Publicidad y Relaciones Públicas. Universitat Autònoma de Barcelona – UAB, Espanha. 2 Doutor pelo Programa Comunicação e Semiótica. Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Profes- sor no Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS, São Caetano do Sul, SP, Brasil; jbfcardoso@uol.com.br ppg co m – espm , com unicação m ídia e consumo a r t i g o 138 formas de apropriação da arte pela publicidade Abstract Based on the different ways of appropriation of the artistic visual representations by the advertising communication, proposed by Lucia Santaella (2005) – imitation of the ways of composing and incorporation of the artistic image – this article presents, as of the examination of advertisements broadcast in different countries, seven new categories outlined on the basis of partial or total use of the appropriated image and the interference performed in them. Keywords: Advertising creation; Visual arts; Appropriation Data de submissão: 15/08/2012 Data de aceite: 01/02/2013 a r t i g o roberta fernandes esteves | joão batista freitas cardoso 139 ano 10 vol. 10 n. 28 p. 137-168 MAI./ago . 2013 Introdução De maneira geral, as artes e a publicidade apresentam-se como sistemas assimétricos no que se refere a certos procedimentos no processo de con- cepção, produção e difusão de seus produtos. Na publicidade, por exem- plo, a comunicação sempre visa atingir um público específico, fazendo com que esse tome uma decisão que vá ao encontro das estratégias pre- vistas no planejamento. Dessa maneira, o sistema publicitário se carac- teriza pelo trabalho em equipe. Até o anúncio chegar ao receptor, vários profissionais com diferentes habilidades (planejamento, mídia, criação, redação, direção de arte, produção etc.), de uma maneira ou de outra, acabam impondo limites ou restrições ao texto – entendendo-se aqui “texto” em um sentido mais amplo e não limitado aos códigos verbais. Essa prática, por sua vez, determina em grande parte o uso dos elemen- tos visuais na composição das imagens publicitárias. Por outro lado, no caso da produção artística, ainda que os processos de concepção e produção possam também ser coletivos, existe a possibi- lidade de o artista desenvolver seu trabalho individualmente, do come- ço ao fim, sem que ninguém interfira em nenhuma etapa do processo. Assim, o artista não tem a obrigatoriedade de compor um texto que seja compreensível a um público específico e que transmita uma mensagem determinada. Nesse caso, a composição dos elementos visuais se define em função de crenças e interesses próprios. Contudo, ainda que possuam suas especificidades, as bases sígnicas (verbais, visuais e sonoras) utilizadas por esses dois sistemas e as influ- ências de outras linguagens que compõem a cultura (literatura, músi- ca, moda etc.) acabam permitindo que pontos fronteiriços surjam. Ao compartilharem certos tipos de signos e certos códigos culturais, as artes plásticas e a comunicação visual publicitária estabelecem uma série de relações intercambiáveis que fazem com que esses sistemas se misturem e até mesmo se confundam. As histórias das artes visuais e da comuni- cação publicitária apresentam diversos exemplos que reforçam a cren- ça nessas relações. A criação de cartazes, por Jules Cherèt e Henri de Toulouse-Lautrec, para os cabarés na Paris do final do século XIX, são ppg co m – espm , com unicação m ídia e consumo a r t i g o 140 formas de apropriação da arte pela publicidade apenas alguns desses. Essas produções colaboraram para comprovar o estreito vínculo entre a linguagem das artes visuais e a linguagem visual publicitária. Para Juan Carlos Pérez Gauli (2000, p. 11), um dos princi- pais aspectos da relação estabelecida entre o sistema da arte e da publici- dade é a constante vinculação icônica, que inicia no final do século XIX e se manifesta ao longo de diversos movimentos e tendências criativas do século XX. Partindo da estreita relação entre essas linguagens, o presente texto propõe o desdobramento das categorias de apropriação das imagens suge- ridas por Lucia Santaella em seu livro Por que as comunicações e as artes estão se convergindo? (2005). Tendo como base as categorias de incorpo- ração e imitação (SANTAELLA, 2005, p. 42), apresentamos a ampliação desses conceitos em forma de sete novas subcategorias fundamentadas a partir do uso parcial ou total da obra apropriada e de interferências realizadas nessa. A observação dessas categorias permite verificar como diferentes tipos de apropriações podem ser utilizados como práticas de articulação de sentido que permitem agregar valor às marcas a partir de determinados procedimentos da linguagem publicitária. Processo criativo e apropriações A publicidade, de uma maneira ou outra, sempre cultivou uma relação de proximidade com os sistemas das artes plásticas, uma vez que as artes servem de inspiração para os publicitários em seu processo cria- tivo e compositivo. João Carrascoza, ao falar sobre os criativos e suas associações de imagens no processo de brainstorm, faz uso das ideias de Everardo Rocha (2010) e define o publicitário como uma espécie de bricoleur: [...] definimos esse tipo de profissional como um bricoleur, já que sua missão é compor mensagens, preferencialmente de impacto, valendo-se dos mais diversos recursos que possam servir ao propósito de persuadir o público-alvo. Os criativos atuam, cortando, associando, unindo e, conse- quentemente, editando informações do repertório cultural da sociedade. (CARRASCOZA, 2008, p. 18). a r t i g o roberta fernandes esteves | joão batista freitas cardoso 141 ano 10 vol. 10 n. 28 p. 137-168 MAI./ago . 2013 Com isso, o autor afirma que, como a propaganda visa influenciar determinado público, é recomendável o uso de discursos já conhecidos desse target. E pontua: O objetivo, obviamente, é facilitar a assimilação, dando-lhe o que ele de certa forma já conhece – embora haja um trabalho para vestir esse conhecimento já apreendido, que é a própria finalidade do ato criativo publicitário. Esses materiais culturais, populares ou eruditos, são utili- zados como pontos de partida para a criação das peças de propaganda (idem, p. 24). É com base no já pronto, nas imagens consagradas e conhecidas por parte do público, que os publicitários iniciam o processo de associação de ideias. Essas imagens já conhecidas, muitas vezes, passam também a compor o próprio leiaute da peça. As maneiras como se apropriam de re- ferências das artes visuais para a criação de seus anúncios é objeto de es- tudo de diversos autores. Alguns desses as veem de forma negativa, como se o pastiche, a fragmentação das obras, fizesse com que a publicidade, ao associar essas representações aos seus produtos, roubasse os valores que as artes possuem. Outros apoiam esse discurso baseados nas ideias do pós-moderno, entendendo as apropriações como uma espécie de jogo intertextual que brinca com o espectador. Para Steven Connor (1989, p. 149), o pós-modernismo evidencia o interesse da crítica acadêmica por práticas culturais que antes eram ignoradas, e “isso constitui em si um fenômeno pós-moderno, por ser a marca do nivelamento de hierarquias e do apagamento de fronteiras” entre o popular (rock, moda etc.) e o eru- dito. Sobre essa prática pós-moderna, Danto comenta: [...] a principal contribuição artística da década [1970] foi o surgimento da imagem apropriada – a apropriação de imagens com sentido e identi- dade estabelecidos, conferindo-lhes um sentido e uma identidade novos. Como qualquer imagem poderia ser apropriada, segue-se imediatamente que não poderia haver uniformidade estilística perceptual entre as ima- gens apropriadas. (2006, p. 18-19). Com base nas experiências da arte pós-moderna é possível com- preender a apropriação da imagem artística pela publicidade. Affonso ppg co m – espm , com unicação m ídia e consumo a r t i g o 142 formas de apropriação da arte pela publicidade Romano de Sant’Anna, em Paródia, paráfrase & Cia (2007), defende a ideia de que a técnica da apropriação moderna se deu por meio das artes plásticas, [...] principalmente pelas experimentações dadaístas, a partir de 1916. Identifica-se com a colagem: a reunião de materiais diversos encontráveis no cotidiano para a confecção de um objeto artístico. Ela já existia no ready-made de Marcel Duchamp, que consistia em apropriar-se de obje- tos produzidos pela indústria e expô-los em museus ou galerias como se fossem objetos artísticos. (2007, p. 43). Para o autor, os artistas, “ao invés de representarem”, “re-apresentam os objetos em sua estranhidade”. Havendo, assim, dois graus de apro- priação: “quando é o próprio objeto que entra em cena”; e “quando ele é representado, traduzido para outro código” (idem, p. 45). Sant’Anna categoriza essas apropriações em dois tipos específicos: a “parodística, significando uma subversão do sentido original do texto”; e a parafrási- ca, que “prolonga o texto anterior no texto atual” (idem, p. 54-56). Ana- lisando alguns exemplos da publicidade mundial, podemos encontrar diferentes formas de apropriação das imagens artísticas na comunicação publicitária. Para a criação da campanha de lançamento, na Alemanha, do novo Golf GTI, da Volkswagen (Figura 1), os criativos partiram da obra In the car (Figura 2), do artista Roy Lichtenstein, que ficou conhecido por suas composições baseadas em comics. É visível que o anúncio publici- tário é praticamente uma imitação da obra original, “trata-se da apro- priação de um know-how para a criação visual” (SANTAELLA, 2005, p. 42). Apesar das pequenas mudanças compositivas, como a atualização da caracterização dos personagens e do carro, a peça mantém o mesmo enquadramento, a mesma representação gráfica de velocidade e pontos de impressão característicos das obras de Lichtenstein. Também na Alemanha, a agência DDB apropriou-se das formas de compor de Salvador Dalí, para comunicar o lançamento de um mode- lo econômico da Volkswagen chamado BlueMotion (Figura 3). A peça publicitária, ainda que não mantenha o mesmo nível de analogia com a r t i g o roberta fernandes esteves | joão batista freitas cardoso 143 ano 10 vol. 10 n. 28 p. 137-168 MAI./ago . 2013 Figura 1. Anúncio alemão para o novo Golf GTI. Figura 2. Obra In the car, Lichtenstein, 1963. ppg co m – espm , com unicação m ídia e consumo a r t i g o 144 formas de apropriação da arte pela publicidade Figura 3. Anúncio para o lançamento do BlueMotion, o carro econômico da Volkswagen. Figura 4. Obra surrealista Jirafa en llamas, 1936/37. a obra artística como no exemplo anterior, faz uso de certas referências das obras de Dalí e do movimento surrealista: o ambiente desértico; a forquilha; as formigas. Alguns elementos do anúncio, apesar de adquiri- rem nova forma, referem-se diretamente à obra Jirafa en llamas (Figura 4) – os vários bolsos do frentista, insinuando o quanto estão vazios em virtude do surgimento do carro econômico, são clara referência às gave- tas na pintura original. Nesse exemplo, temos uma imitação do estilo do pintor e das formas de compor, já que os elementos, em sua maioria, são distintos dos da obra inspiradora. Uma das fotografias que integram o calendário promocional de 2009 da marca italiana de cafés Lavazza (Figura 5) faz uso da conhecida ima- gem Homem vitruviano (Figura 6), de Leonardo Da Vinci. Nessa pe- ça estão contidas algumas ideias do pensamento pós-moderno, como a fragmentação e o hibridismo dos elementos que compõem a imagem. A fotógrafa coloca a xícara de café como um dos pontos principais da ima- gem e, como que para quebrar a ideia de obra de arte, deixa evidente a estrutura do estúdio fotográfico e assume o cenário. A empresa Siemens, para divulgar seu novo modelo de celular (Figu- ra 7), ainda que não faça uso de nenhuma referência visual a obras artís- ticas, remete, por meio do título, ao polêmico quadro de René Magritte La trahison des images (Ceci n’est pas une pipe) – “A traição das imagens a r t i g o roberta fernandes esteves | joão batista freitas cardoso 145 ano 10 vol. 10 n. 28 p. 137-168 MAI./ago . 2013 Figura 5. Calendário promocional para a marca de café italiano Lavazza, 2009. Figura 6. Desenho de Da Vinci, Homem vitruviano, 1492. ppg co m – espm , com unicação m ídia e consumo a r t i g o 146 formas de apropriação da arte pela publicidade (Isso não é um cachimbo)” – (Figura 8). A paródia é constatada com o trocadilho Ceci n’est pas un mobile – “Isso não é um celular”. Segundo Sant’Anna, o objetivo da paródia como apropriação é desvincular “um texto-objeto de seus sujeitos anteriores, sujeitando-o a uma nova leitura” (2007, p. 46). Figura 7. Anúncio de celular da Siemens, 2001. Figura 8. Obra La trahison des images (Ceci n’est pas une pipe), Magritte, 1928/29. a r t i g o roberta fernandes esteves | joão batista freitas cardoso 147 ano 10 vol. 10 n. 28 p. 137-168 MAI./ago . 2013 No Brasil, apenas para dar um exemplo, a agência GiovanniFCB de- senvolveu para a gráfica Pancrom, em 2003, a campanha Arte e Pro- paganda. Como os serviços da gráfica são reconhecidos no mercado publicitário por sua alta qualidade em impressão, o conceito das peças comparou a qualidade da reprodução de uma obra de arte impressa feita pela gráfica com os trabalhos de renomados diretores de criação da pu- blicidade nacional. Para isso, nas peças foram exploradas as semelhanças entre pintores como Van Gogh (Figura 9) e Tintoretto (Figura 10) com diretores de criação da agência. Figura 9. “Nós imprimimos Van Gogh e Gabriel Zellmeister com a mesma qualidade”. Figura 10. “Nós imprimimos Tintoretto e Jaques Lewkowicks com a mesma qualidade”. ppg co m – espm , com unicação m ídia e consumo a r t i g o 148 formas de apropriação da arte pela publicidade Após esse breve panorama, com exemplos do uso das artes visuais na publicidade, pode-se afirmar que é recorrente o emprego das imagens artísticas na criação de anúncios. As formas de apropriação são diversas, mas o intuito-base é praticamente o mesmo: trazer o já conhecido co- mo forma de auxiliar não apenas no processo criativo como também na mensagem ao consumidor, assim como em seus valores culturais. O ob- jetivo deste trabalho é apresentar, a partir das categorias de apropriação das imagens proposta por Santaella (2005), sete subcategorias que mos- tram diferentes tipos de relações entre a publicidade e a arte. Formas de apropriação Considerando a vinculação icônica, muitos autores passam a estabelecer categorias de relações entre o sistema visual publicitário e as artes vi- suais. Lucia Santaella, em Por que as comunicações e as artes estão con- vergindo?, categoriza essas relações da seguinte maneira: [...] há pelo menos duas maneiras principais pelas quais as mídias, es- pecialmente a publicidade, apropriam-se das imagens da arte: (a) pela imitação de seus modos de compor, de seus estilos e (b) pela incorpora- ção de uma imagem artística mesclada à imagem do produto anunciado. (SANTAELLA, 2005, p. 42). Partindo das categorias de apropriação de Santaella, apresentaremos nas páginas seguintes sete novas categorias para análises de anúncios que fazem uso de imagens apropriadas das artes. Essas categorias foram delineadas em função do uso parcial ou total da imagem apropriada, assim como das interferências realizadas, ou não, nas obras apropriadas (Figura 11). Tendo em vista que a maioria das peças publicitárias possui algum tipo de assinatura de um produto ou de uma marca, nessas novas categorias, não consideraremos tais itens como interferência. Da mesma maneira, não é considerada interferência a inserção de título ou texto sobre a representação da obra. São compreendidas como interferências apenas as alterações formais nas representações visuais. Ou seja, interfe- rências que afetam de alguma maneira a obra artística apropriada. a r t i g o roberta fernandes esteves | joão batista freitas cardoso 149 ano 10 vol. 10 n. 28 p. 137-168 MAI./ago . 2013 Tipos de incorporações (1) Segundo Santaella, a apropriação das artes pela publicidade por meio da incorporação é dada por “uma imagem artística mesclada à imagem do produto anunciado” (2005, p. 42). Sendo assim, as duas primeiras divi- sões apresentam-se pela incorporação total com (1.1.1) ou sem interferên- cia (1.1.2) da imagem artística. Incorporação total com interferência (1.1.1) No primeiro tipo de incorporação, total com interferência, o publicitá- rio toma determinada imagem artística e a incorpora de forma integral à sua composição. Para dar sentido à mensagem que a comunicação obje- tiva passar, realiza-se algum tipo de interferência na obra. Para compreendermos esse tipo de apropriação, tomamos como exem- plo o anúncio criado em 2008, por uma agência da República Tcheca, para o clube Misch Masch, em Praga (Figura 12). A obra incorporada é o tríptico O jardim das delícias, do espanhol Hieronymus Bosch (El Bosco) – que se divide em O paraíso, O jardim das delícias e O inferno (Figura 14). No anúncio, a parte central da obra (Figura 13) é totalmente incorporada e a interferência se dá pela inserção de um personagem de costas com as mãos levantadas, frente a uma típica mesa de DJ com caixas de som nas Figura 11. Categorização dos tipos de apropriações da imagem artística pela publicidade a partir dos conceitos de Lucia Santaella (2005). 1. Incorporação 1.1 total 1.2 de fragmento 2. Imitação 2.1 com referência a uma obra 2.2 com referência a uma série e/ou um movimento 1.1.1 com interferência 1.1.2 sem interferência 1.2.1 com interferência 1.2.2 sem interferência 2.1.1 total 2.1.2 fragmentada ppg co m – espm , com unicação m ídia e consumo a r t i g o 150 formas de apropriação da arte pela publicidade laterais. Apesar de bem integrada à composição da obra, chegando a ponto de a ilustração imitar em cores e traços a obra de arte, a interferência, um elemento da atualidade, é facilmente identificada ao encontrar-se inserida em uma obra criada por volta de 1500. A interferência na obra transforma O jardim das delícias em uma festa no estilo rave. Figura 12. Anúncio para o clube Misch Masch. Figura 13. Obra central de O jardim das delícias. Figura 14. Tríptico O jardim das delícias, 1500-1505, Bosch. a r t i g o roberta fernandes esteves | joão batista freitas cardoso 151 ano 10 vol. 10 n. 28 p. 137-168 MAI./ago . 2013 Incorporação total sem interferência (1.1.2) Nessa categoria, a incorporação total não sofre interferência que afete diretamente os aspectos formais da representação visual. Nesse caso, a imagem artística apropriada consegue transmitir de forma quase que exata a mensagem que o criativo deseja passar, não havendo a necessida- de de nenhum tipo de edição da imagem (fragmentação) nem a inserção de um novo elemento gráfico na composição. No exemplo seguinte, o retrato da famosa madona de Da Vinci, a Monalisa (Figura 15), é inserido integralmente na composição do anún- cio criado em 2009, pela agência Ogilvy & Mather Brussels, da Bélgica, para a rede europeia de lojas de produtos para pintura artística Schleiper (Figura 16). Nesse caso, não há interferência alguma na imagem artís- tica apropriada, apenas é inserida uma espécie de cupom fiscal com a lista de produtos que podem ser adquiridos na loja. O publicitário não precisou fazer nenhuma interferência na imagem artística para passar a Figura 15. Monalisa, Da Vinci, 1503-1506. Figura 16. Anúncio para a rede Shleiper de produtos para arte, 2009. ppg co m – espm , com unicação m ídia e consumo a r t i g o 152 formas de apropriação da arte pela publicidade mensagem, uma vez que o público-alvo naturalmente associa a consa- grada tela renascentista à rede de lojas. Incorporação de fragmento com interferência (1.2.1) Assim como na incorporação total, a incorporação de fragmentos de uma obra também pode ser dividida em dois tipos: com (1.2.1) ou sem in- terferência (1.2.2). Ao incorporar parte de uma obra, o publicitário apro- Figura 17. Anúncio criado para os relógios Vagary, com o slogan: “Vagary, feito na Itália”. Figura 18. Afresco A criação de Adão, aproximadamente 1511, Michelangelo. a r t i g o roberta fernandes esteves | joão batista freitas cardoso 153 ano 10 vol. 10 n. 28 p. 137-168 MAI./ago . 2013 pria-se apenas dos detalhes que são pertinentes para a composição de seu anúncio. Contudo, algumas vezes o simples detalhe não é suficiente para transmitir a mensagem desejada, é preciso realizar algum tipo de interferência no fragmento. Podemos ver esse tipo de incorporação em um anúncio criado para a marca de relógios Vagary (Figura 17), que incorpora uma parte da obra mestra de Michelangelo, o afresco A criação de Adão (Figura 18), que se encontra no teto da Capela Sistina (Vaticano). Mas, ao contrário do original, a figura de Adão é substituída por uma mulher sedutora sentada tranquilamente em um sofá. Com a interferência, o sentido original da figura de Michelangelo também se altera. Incorporação de fragmento sem interferência (1.2.2) No segundo tipo de incorporação de fragmento, o publicitário apro- pria-se de determinada obra, incorporando apenas parte dela sem haver nenhum tipo de interferência, tanto na imagem quanto na composição. Na campanha desenvolvida para o Masp pela agência DM9DDB Brasil, em 2010, foram incorporados fragmentos de obras que fazem parte do acervo permanente do museu. As peças impressas, intituladas “Olhos”, têm como conceito contar um pouco da trajetória da obra, des- de o momento que foi concebida até sua chegada ao museu. A composi- ção dos anúncios foi feita apenas com fragmentos das obras, e a trajetória da obra é apresentada em um texto inserido ao redor dos olhos dos per- sonagens das obras referenciadas. Esses textos, sobrepostos à figura, não alteram a composição visual da obra. No anúncio Van Gogh (Figura 19), por exemplo, foi apropriada parte da obra O escolar (Figura 20). Na face da figura, foi inserido o seguinte texto: “Eu vi o fracasso de um gênio. Eu vi os últimos anos de Vincent van Gogh. Vi franceses não reconhecendo meu valor. Vi um mestre morrer na miséria. Vi a Europa se arrependendo. Vi milionários me disputando em leilões. Vi um novo lar. Vi professores en- sinando. Vi crianças aprendendo. Vi um jovem museu virar o museu mais visitado do país. Mas no meio disso tudo, uma coisa ainda não vi: você. Venha. Eu quero te ver”. ppg co m – espm , com unicação m ídia e consumo a r t i g o 154 formas de apropriação da arte pela publicidade Tipos de imitações (2) A segunda maneira de apropriação proposta por Santaella, a imitação, é realizada “pela imitação de seus modos de compor, de seus estilos” (2005, p. 42). A imitação pode se referir a uma obra específica, ao modo de compor de um artista, ou ao estilo de determinado movimento artís- tico. Dessa observação, surgem três novas subcategorias: a imitação com referência a uma obra específica (2.1) – que se divide em total (2.1.1) e fragmento (2.1.2); e imitação com referência a uma série e/ou movimento (2.2). Imitação com referência a uma obra total (2.1.1) A imitação com referência a uma obra total é dada quando o publicitá- rio encontra em determinada obra todos, ou grande parte, dos elementos necessários à comunicação. Na peça criada pela agência J.W. Thompson Brasil, em 2009, para o Banco HSBC (Figura 21), observa-se a imitação da gravura Céu e água I (Figura 22), do holandês M. C. Escher. Como na obra original, o anúncio mantém a composição com a divisão do fundo em preto e branco, invertendo a relação figura/fundo. No entanto, na obra origi- Figura 19. Anúncio contando a trajetória da obra de Van Gogh até sua chegada ao Masp, 2010. Figura 20. Obra O escolar, Vincent van Gogh, 1888. a r t i g o roberta fernandes esteves | joão batista freitas cardoso 155 ano 10 vol. 10 n. 28 p. 137-168 MAI./ago . 2013 Figura 21. Anúncio para o Banco HSBC. Figura 22. Obra Céu e água I, Escher, 1938. nal, peixes transformam-se em marrecos, já no anúncio, latas trans- formam-se em araras. A referência à obra apropriada é notada não só pela forma de compor, como também pela transformação de um obje- to em outro na exata proporção e quantidade de elementos utilizados no anúncio. Não há a incorporação das figuras de Escher, mas sim de sua composição. Imitação com referência a fragmentos de uma obra (2.1.2) Como na incorporação de fragmentos (1.2.1 e 1.2.2), na imitação com referência a fragmentos de uma obra, o publicitário faz uso apenas de parte, ou partes, de determinada obra. Mas, nesse caso, a diferença se dá pela imitação do fragmento apropriado e não pela incorporação dos elementos figurativos. Esse tipo de apropriação também pode ser observada no anúncio de- senvolvido para o lançamento do carro Polo BlueMotion. A peça (Figura ppg co m – espm , com unicação m ídia e consumo a r t i g o 156 formas de apropriação da arte pela publicidade 23) é uma imitação com referência a fragmentos da obra O jardim das delícias, de Bosch. Contendo elementos de uma atmosfera onírica muito marcante do pintor flamenco, é evidente a imitação e referência direta a partes da obra na peça publicitária. Figura 23. Anúncio para o lançamento do Polo BlueMotion, 2008. Figura 24. Tríptico O jardim das delícias, 1500-1505, Bosch. a r t i g o roberta fernandes esteves | joão batista freitas cardoso 157 ano 10 vol. 10 n. 28 p. 137-168 MAI./ago . 2013 Um dos personagens em destaque, o “frentista-caixa-registradora” (Figura 25) é uma citação direta ao “homem-árvore” que se encontra no pórtico direito da obra, assim como algumas figuras com facas contidas em O inferno (Figura 26). Figura 25. Detalhe do anúncio com o “frentista-caixa-registradora”. Figura 26. Detalhe do pórtico direito O inferno com o “homem-árvore”. Podemos ainda conferir nos detalhes abaixo referências a elementos marcantes na composição de Bosch (Figura 27), como, por exemplo, as imitações de figuras dentro de flores e frutos (Figura 28). Figura 27. Detalhe do pórtico central O jardim das delícias. Figura 28. Detalhe do anúncio. ppg co m – espm , com unicação m ídia e consumo a r t i g o 158 formas de apropriação da arte pela publicidade Com referência a uma série e/ou um movimento (2.2) A imitação com referência a uma série refere-se a diversas obras de um artista, não apenas uma específica, ou a um movimento artístico. Muitas vezes, como apresentaremos a seguir, o publicitário necessita apropriar- -se de mais elementos para compor a mensagem desejada, tornando ne- cessário mais de uma obra. Em 2011, a agência DM9DDB Brasil desenvolveu seis peças para a campanha de 92 anos da marca de eletrodomésticos KitchenAid. A mar- ca tornou-se conhecida no mercado pelo design inovador de seus produ- tos, sendo a batedeira o mais conhecido – o design desse produto é tão consagrado que se encontra no acervo do MoMA, Museu de Arte Mo- derna de Nova York. Os criativos associaram a marca à história da arte e à arte da gastronomia (DM9DDB). Na peça intitulada Modernismo bra- sileiro (Figura 29), a imitação se deu com referência a uma série de obras da artista brasileira Tarsila do Amaral: a mão de Abaporu (Figura 30); as casas de O mamoeiro (Figura 31); e o céu de Sol poente (Figura 32). Figura 29. Anúncio para a marca de eletrodomésticos KitchenAid com referência às obras de Tarsila do Amaral. a r t i g o roberta fernandes esteves | joão batista freitas cardoso 159 ano 10 vol. 10 n. 28 p. 137-168 MAI./ago . 2013 Esse mesmo tipo de referência também pode ser dado pela imitação de um movimento. Muitas vezes o que pode interessar a um publicitário ao apropriar-se das imagens artísticas é o estilo de compor de determina- do movimento, não havendo a necessidade de reunir diferentes obras de um único artista ou referenciar um artista específico. Figura 30. Obra Abaporu, 1928. Figura 31. Obra O mamoeiro, 1925. Figura 32. Obra Sol poente, 1929. ppg co m – espm , com unicação m ídia e consumo a r t i g o 160 formas de apropriação da arte pela publicidade No anúncio Arte Moderna (Figura 33), também da KitchenAid, é fei- ta referência a um estilo que pode ser atribuído a Henri Matisse ou Paul Gauguin. Ainda assim, os traços, cores e formas de compor podem ser re- conhecidos pelo observador como um tipo de genérico de Arte Moderna. Figura 33. Anúncio para os eletrodomésticos KitchenAid com referência à Arte Moderna, 2011. Apropriações como estratégia de comunicação No período de 2007 a 2012, a rede espanhola de lojas de departamento El Corte Inglês veiculou uma série de peças publicitárias, direcionadas aos turistas que visitam a Espanha no verão, em que foram utilizados dife- rentes modos de apropriação de obras de renomados artistas espanhóis na composição dos anúncios. Segundo José Maria Cañas, responsável pelo Departamento Criativo da rede, o critério de escolha dos artistas foi defini- do em função de sua notoriedade internacional: “Hay que pensar que esta campaña pretende dar la bienvenida a extranjeros que vienen básicamente a España por el arte español. Entonces, debíamos coger autores internacio- nalmente conocidos”. (apud CARDOSO; ESTEVES, 2012). a r t i g o roberta fernandes esteves | joão batista freitas cardoso 161 ano 10 vol. 10 n. 28 p. 137-168 MAI./ago . 2013 Em uma dessas peças, Venus de Miro (Figura 34), o publicitário apro- pria-se do estilo do artista catalão Joan Miró (1893-1983), a partir de certas formas e linhas da obra O Carnaval de Arlequim (Figura 35). Consideran- do as categorias propostas, esse tipo de relação se apresenta como imita- ção com referência a fragmentos de uma obra. A apropriação publicitária, assim, foi dada pela imitação de diversos fragmentos da obra em todo o fundo da peça. Porém, sem deixar de imitar as cores e os traços, característicos do estilo do artista, o publicitário acabou por contextualizar al- guns dos fragmentos da obra com objetos de costura, como tesoura, tecidos e até um ma- nequim. Como é da natureza da apropriação por imitação, os elementos visuais da peça pu- blicitária não são reproduções exatas da obra do artista. Ape- nas os modos de compor as for- mas, linhas e cores indicam a apropriação do estilo. A escolha do artista cata- lão para representar a marca, nesse caso, justifica-se pela sua importância para a cultu- ra espanhola e também para a história da arte em geral. Nes- se sentido, acredita-se que há o reconhecimento, por parte do público da campanha, de ele- mentos da obra do artista na peça publicitária. Figura 34. Anúncio El Corte Inglés. Figura 35. O carnaval de Arlequim (1924-1925), Miró. ppg co m – espm , com unicação m ídia e consumo a r t i g o 162 formas de apropriação da arte pela publicidade Segundo Erns H. Gombrich (apud AUMONT, 2009, p. 86), “recono- cer algo en una imagen es identificar, al menos parcialmente, lo que se ve en ella con algo que se ve o podría verse en la realidad. Es, pues, un proceso, un trabajo, que utiliza las propiedades del sistema visual”. Para compreender o conceito de reconhecimento, Jacques Aumont dividiu- -o em duas dimensões: “el trabajo del reconocimiento” e o “placer del reconocimiento”. No que tange ao “trabajo del reconocimiento”, além da constância de um bom número de características visuais que reencon- tram entre o mundo real e as imagens que representam essa realidade, o autor complementa: […] este trabajo de reconocimiento […] se apoya en la memoria, más exactamente, en una reserva de formas de objetos y de disposiciones espa- ciales memorizadas: la constancia perceptiva es la comparación incesante que hacemos entre lo que vemos y lo que ya hemos visto (idem, p. 86). Para Aumont, no momento do reconhecimento há o “placer del re- conocimento”. Nesse sentido, a parcela do público que identifica na peça publicitária a citação a Miró sentiria certo tipo de prazer nesse reconhecimento. Baseados nesse “prazer” de reconhecer imagens, pu- blicitários trabalham com enunciados e discursos já prontos em seus anúncios, recontextualizando-os junto ao produto anunciado. São nes- ses jogos intertextuais que as imagens de artistas são inseridas, para de alguma maneira interagir com o espectador. A principal intenção dessa estratégia comunicativa, obviamente, é que a mensagem possa ser assi- milada e compreendida facilmente, já que são imagens já conhecidas por parte do público-alvo e que possuem seus valores e representativi- dade estabelecidos. Ainda que elementos estranhos ao universo mironiano façam parte da composição da peça publicitária, é possível que o público ao qual a men- sagem se dirige reconheça e rememore a citação ao artista. O conceito de rememoração, para Gombrich (apud AUMONT, 2009, p. 88), dá-se por meio da codificação da imagem, sendo preciso possuir certo saber sobre o real para compreendê-la, já que possui uma função simbólica. Aumont (2009, p. 88) complementa a visão de Gombrich dando como a r t i g o roberta fernandes esteves | joão batista freitas cardoso 163 ano 10 vol. 10 n. 28 p. 137-168 MAI./ago . 2013 exemplo a imagem artística e os estilos que usam “esquemas” (estruturas simples, memorizáveis) para representar. Esses “esquemas”, quando são empregados como instrumento de rememoração, utilizam formas sim- ples e legíveis em sua representação. Sendo algo que não está fechado por absoluto, os esquemas mudam, já que correspondem a certas formas esquemáticas nas quais estão adaptados, chegando até a desaparecer à medida que mudam esses usos, que também produzem novos conheci- mentos convertendo-os em inadequados. “Para decirlo brevemente, hay un aspecto ‘experimental’ en el esquema, sometido permanentemente a un proceso de corrección”. (idem, p. 88). No caso desta peça, os esque- mas se definem a partir de certo estilo que permite a rememoração de um artista, corrente ou movimento. Naturalmente, a imitação formal não implica a incorporação do discurso da obra, já que há na comunicação um discurso publicitário. Enquanto o original apresenta um ambiente onírico do Carnaval, a imitação cria um ambiente imaginário onde as ideias para elaboração das roupas se materializam a partir de formas, cores, movimentos e texturas. Como em qualquer texto da cultura, no momento em que ele é apropriado, há uma nova leitura, atualizando-o. Essa atualização, no caso específico dessa campanha, permite a construção de um discurso, destinado a um público de diferentes origens, que atravessa as frontei- ras entre local e o global. São códigos culturais locais que teoricamente estão arraigados ao processo histórico de determinado grupo, mas que podem ter longo alcance a ponto de muitos se identificarem com eles. Essas referências, de alguma maneira, formam a memória de grande parte do público. Outra série de peças da marca, Las torres de Gaudí (Figura, 36), enquadra-se na categoria incorporação de fragmento com interferência, em que o publicitário apropria-se de detalhes de uma ou mais peças e realiza nesses certas interferências que considera pertinentes à compo- sição do seu anúncio. Nessa peça, as torres gaudinianas da Casa Mi- lá (Figura 37), Park Güell (Figura 38) e Sagrada Família (Figura 39) servem como base para que as imagens das modelos representem um desfile de moda. ppg co m – espm , com unicação m ídia e consumo a r t i g o 164 formas de apropriação da arte pela publicidade Figura 36. Anúncio Las torres de Gaudí. Figura 37. Park Güell, detalhe do telhado de La Portería. Figura 38. La Azotea, área do telhado da Casa Milà. Figura 39. Torres dos apóstolos, La Sagrada Família. No caso desta peça, a arte de Gaudí, ainda que represente uma cul- tura local, de uma dada região, possui uma expressividade que vai além da região da Catalunha, faz parte da memória coletiva de um tempo. Quando ocorre a compreensão dessa produção simbólica de uma socie- a r t i g o roberta fernandes esteves | joão batista freitas cardoso 165 ano 10 vol. 10 n. 28 p. 137-168 MAI./ago . 2013 dade, tanto por parte de consumidores locais, moradores de Barcelona, quanto por parte de consumidores estrangeiros, turistas de diversas par- tes da Espanha e de outros países, a incorporação dos códigos culturais de uma localidade e uma época pela marca exerce sua principal função. As torres foram utilizadas estrategicamente para que o público reconhe- ça esses códigos culturais e faça a relação entre arte e moda. Na prática publicitária, em casos como este, a comunicação explora o potencial de semelhança figurativa das representações, o aspecto mi- mético. Mesmo alterando partes das torres para a inserção das modelos e ajuste aos corpos – como, por exemplo, os movimentos de braços e postu- ra corporal que dão continuidade às formas das torres ao mesmo tempo em que sugerem a representação de desfile –, existe a possibilidade de reconhecimento, por parte do público, dos fragmentos de obras do artista utilizados na comunicação. Contudo, ainda que alcance o nível de re- conhecimento, a rememoração de cada edifício dependerá do repertório do observador, uma vez que todas as referências foram misturadas e in- seridas no mesmo contexto. Nesta peça fica claro como é impreciso o limite fronteiriço entre o local e o global. Como bem lembra Iuri Lotman (1996, p. 24), essa fron- teira apresenta-se como “un conjunto de puntos perteneciente simul- táneamente al espacio interior y al espacio exterior”. A fronteira, nesse caso, oscila entre um lado e outro a partir do momento em que mora- dores da região reconhecem a loja, a marca, a língua e a obra artística como elementos da sua terra, e o estrangeiro, sob outro ponto de vista, reconhece esses mesmos elementos como parte do seu repertório. A in- tencionalidade da comunicação publicitária, no que se refere especifica- mente a esse aspecto, pode ser verificada no uso dos signos verbais – são utilizadas nas peças as duas línguas oficiais locais: o castelhano, por ser o idioma oficial espanhol, e o catalão, a língua oficial da Catalunha; e, dividindo o mesmo espaço, a língua inglesa. Considerações finais Com base nos termos de Charles S. Peirce, Gombrich entende a repre- sentação visual como um signo icônico à medida que essa tem algo em ppg co m – espm , com unicação m ídia e consumo a r t i g o 166 formas de apropriação da arte pela publicidade comum com seu aspecto denotativo. Nesse sentido “o significado dos sig- nos é transmitido não por sua aparência geral, mas por aquilo que se conhece como características identificadoras”. (GOMBRICH, 2007, p. xviii). Partindo do estreito vínculo icônico que existe entre os sistemas das artes visuais e da comunicação publicitária, ou seja, partindo do princípio de que existem características identificadoras que permitem reconhecer na representação visual de um sistema elementos já apresentados no ou- tro, este texto propôs diferentes formas de apropriações das imagens ar- tísticas utilizadas na composição de peças publicitárias. Os conceitos de incorporação e imitação, desenvolvidos por Lúcia Santaella (2005, p. 42), serviram de base para o desenvolvimento dessas sete novas subcategorias (Figura 11). O uso das diferentes formas de apropriações das representa- ções visuais artísticas, como apresentado, pode gerar uma série de sen- tidos distintos que permitem aos criativos optar por uma dada categoria como estratégia de comunicação, como forma de agregar valor à marca ao mesmo tempo em que comunica o benefício do produto ou serviço. Ao identificarmos que a publicidade incorpora uma obra de arte de forma integral sem interferência (1.1.2), podemos inferir que o criativo se vale de uma composição pronta que é capaz de comunicar os benefí- cios da marca, afirmação básica da comunicação publicitária. Ao mesmo tempo em que comunica os benefícios, essa representação visual apro- priada agrega valores culturais à marca anunciada. Esse mesmo tipo de apropriação ocorre com a incorporação de fragmentos de uma obra sem interferência (1.2.2). A proposição de valor da marca é condicionada ape- nas a um fragmento da obra artística exposta no anúncio. Não há, tam- bém nesse caso, qualquer tipo de interferência formal (cores, texturas, volumes etc.) que altere a representação visual. Diferente dos casos em que a interferência (1.1.1; 1.2.1) é realizada para alterar o sentido original da representação artística. No caso das subcategorias de imitação (2), os publicitários apropriam- -se da maneira de compor de um determinado artista (2.1) ou movi- mento (2.2). A apropriação do estilo do artista, ou artistas, pode se dar na referência a uma obra de arte específica ou um conjunto delas. Nes- se caso, a representação publicitária indica a(s) obra(s) e, consequente- a r t i g o roberta fernandes esteves | joão batista freitas cardoso 167 ano 10 vol. 10 n. 28 p. 137-168 MAI./ago . 2013 mente, o(s) artista(s). Esse tipo de apropriação também pode limitar-se a fragmento(s) da(s) obra(s) (2.1.2) ou referenciar uma obra em toda a sua composição (2.1.1). Já no caso da apropriação do modo de compor de um determinado movimento artístico, a representação publicitária não permite o reconhecimento de uma obra ou de um autor. Se no pri- meiro modelo é preciso que o público tenha em seu repertório alguns elementos das obras do(s) artista(s), no segundo, é preciso que tenha co- nhecimento dos traços que marcam essa escola para que reconheça no anúncio a referência. O nível de conhecimento do público – das obras dos artistas ou dos movimentos – indicará o melhor uso de uma forma de apropriação ou de outra. De qualquer maneira, em maior ou menor grau, há sempre a necessi- dade, nesse tipo de comunicação publicitária, que o público tenha algum conhecimento das referências utilizadas. Essa espécie de jogo intertex- tual com o público-alvo parte do princípio de que as imagens apropria- das já fazem parte do repertório do receptor. Dessa maneira, é preciso que o publicitário tenha em conta o repertório do espectador que irá receber tais mensagens. Pensando no espectador como um ser que parti- cipa e faz parte do sistema da cultura, os produtores do texto publicitário devem considerar os aspectos locais, regionais e globais, que definem os códigos culturais que formam esse ser cultural. É justamente do reco- nhecimento dos textos da cultura, no qual público e marca estão inseri- dos, que os publicitários iniciam o processo de associação e apropriação. Referências AUMONT, J. La imagen, Barcelona: Paidós Comunicación, 2009. CARDOSO, J. B. F.; ESTEVES, R. F. Apropriações da arte: o caso El Corte Inglés. In: Anais do XXI Encontro Anual da COMPÓS, Universidade Juiz de Fora, 2012. Dis- ponível em: . Acesso em: 28 nov. 2012. CARRASCOZA, J. A. Do caos à criação publicitária: processo criativo, plágio e ready-made na publicidade. São Paulo: Saraiva, 2008. ppg co m – espm , com unicação m ídia e consumo a r t i g o 168 formas de apropriação da arte pela publicidade CONNOR, S. Cultura pós-moderna: introdução às teorias do contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1989. DANTO, A. C. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da História. São Paulo: Odysseus Editora, 2006. GOMBRICH, E. H. Arte e ilusão – um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 2007. LOTMAN, I. M. La semiosfera: semiótica de la cultura y del texto. Madrid: Ediciones Cá- tedra, 1996. PÉREZ GAULI, J. C. El cuerpo en venta: relación entre arte y publicidad. Madrid: Ediciones Catedra, 2000. ROCHA, E. P. G. Magia e capitalismo: um estudo antropológico da publicidade. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 2010. SANTAELLA, L. Por que as comunicações e as artes estão convergindo? São Paulo: Paulus, 2005. SANT’ANNA, A. R. Paródia, paráfrase & Cia. São Paulo: Ática, 2007.