123VELASCO, Nina. Fotografia digital, estética e sociedade de controle. Revista Galáxia, São Paulo, n. 16, p. 123-133, dez. 2008. Fotografia digital, estética e sociedade de controle Nina Velasco Resumo: A união entre a fotografia e a tecnologia digital produziu um híbrido cujas consequências sociais e estéticas foram pouco questionadas. A fotografia numérica vem sendo largamente utilizada em práticas as mais distintas. Ao nos depararmos com a produção de arte con- temporânea, encontramos algumas experiências que nos fazem refletir sobre o papel dessa tecnologia na arte e na sociedade, de uma forma geral. Duas obras que tematizam e proble- matizam a relação entre a fotografia e o poder servirão de base para uma reflexão acerca de algumas consequências do uso da fotografia nos diagramas disciplinar e de controle. Palavras-chave: fotografia; arte e tecnologia; poder Abstract: Digital photography, esthetics and society of control — The association of photography and digital technology has created a hybrid whose social and aesthetic consequences have still scarcely been addressed. Numerical photography has been used widely in the most diverse functions. Upon encountering the production of contemporary art, we find that some experiences lead us to question the role of this technology in art and society as a whole. Two works of art that center around and discuss the relation between photography and power will serve as the basis for a reflection about some of the consequences of the use of photography in disciplinary and control diagrams. Keywords: photography; art and technology; power Fotografia digital, estética e sociedade de controle A tecnologia é social antes de ser técnica. Gilles Deleuze A união entre a fotografia e a tecnologia digital produziu um híbrido cujas consequên- cias sociais e estéticas ainda foram pouco questionadas. A fotografia numérica digital vem 124 VELASCO, Nina. Fotografia digital, estética e sociedade de controle. Revista Galáxia, São Paulo, n. 16, p. 123-133, dez. 2008. sendo largamente utilizada (podendo-se dizer que praticamente extinguiu a modalidade analógica) em práticas as mais distintas: desde a clássica fotografia amadora da família e em viagens, passando pelo fotojornalismo e por todo o tipo de fotografia profissional, até a fotografia considerada artística. Ao nos depararmos com a produção de arte contemporânea, encontramos algumas experiências que nos fazem refletir sobre o papel dessa tecnologia na arte e na sociedade, de uma forma geral. Duas obras que tematizam e problematizam a relação entre a fotografia e o poder servirão de base para uma reflexão acerca de algumas consequências do uso da fotografia nos diagramas disciplinar e de controle. A fotografia surge exatamente no período em que o diagrama disciplinar se consolida e se aparelha. Foucault (1999, p. 170) relaciona o “diagrama” ao panótico. O diagrama (ou máquina abstrata), para Deleuze (2005, p. 46), é “uma causa imanente não-unificadora que se estende por todo campo social”. Walter Benjamin (1989, p. 45), ao teorizar sobre o processo de modernização da sociedade, já ressaltava as relações entre a fotografia e o poder policial: Nos primórdios dos procedimentos de identificação, cujo padrão da época é dado pelo método Bertillon, encontramos a definição da pessoa através da assinatura. Na história desse processo, a descoberta da fotografia representa um corte. Para a criminalística não significa menos do que a invenção da imprensa para a literatura. Pela primeira vez, a fotografia permite registrar vestígios duradouros e inequívocos de um ser humano. A comparação da fotografia com a imprensa, em Benjamin, nos faz pensar imediatamente na questão da reprodutibilidade técnica, que permeia quase todo o pensamento do autor sobre as mudanças na percepção do sujeito moderno. O enfoque dado na maioria de suas leituras costuma se ater à questão da decadência da aura e do fim da autenticidade da obra de arte com o advento da fotografia. Esse trecho deixa claro, no entanto, que o processo a que Benjamin se refere é bem mais amplo e faz parte de toda uma reconfiguração do campo social. Benjamin analisa o momento em que a esfera privada se torna cada vez mais pública, em que “uma múltipla estrutura de registros” faz com que o ser humano desapareça nas massas da cidade grande (BENJAMIN, 1989, p. 44). Além da importância da fotografia para o controle policial, entre os exemplos que o autor elenca, estão o registro das partidas e das chegadas de carruagens em praças públicas; a contagem das cartas pelo correio; e a numeração das casas nos bairros populares. O uso da fotografia pela criminalística representa um corte por seu caráter documental, verdadeiro “vestígio”, considerado “inequívoco”. Assim como uma im- pressão digital, a fotografia opera pela contiguidade do referente. Essa característica metonímica confere uma autoridade inédita à produção imagética, especialmente dos rostos de seres humanos. 125VELASCO, Nina. Fotografia digital, estética e sociedade de controle. Revista Galáxia, São Paulo, n. 16, p. 123-133, dez. 2008. John Tagg (2005, p. 89-134), em seu artigo sobre a fotografia como prova jurídica, faz um panorama das relações entre a fotografia e a instituição da polícia. Coinciden- temente, os primeiros anos do desenvolvimento da técnica fotográfica correspondem ao período da criação do serviço policial na Inglaterra. Não demorou muito para que a polícia percebesse o importante instrumento de vigilância que a fotografia poderia se tornar. Ainda na década de 1840, a polícia inglesa contratou fotógrafos civis para retratar possíveis criminosos presos e acrescentar às impressões digitais uma fotografia que os identificasse. Torna-se evidente que a imagem fotográfica passa a ter um papel importante para a constituição das novas estratégias de poder na modernidade. No entanto, não se trata aqui do poder clássico, centralizado e restrito aos aparatos estatais. Deleuze identifica a posição teórica de Foucault a partir do abandono de uma série de postulados tradicionais da esquerda à cerca da noção de poder. Entre eles, estaria o “postulado da localização” (DELEUZE, 1992, p. 35), em que o poder poderia ser localizado no aparelho do Estado e em suas instituições. Para Foucault (1988, p. 35), o Estado “aparece como efeito de conjunto ou resultante de uma multiplicidade de engrenagens e de focos que constituem por sua conta uma ‘microfísica do poder’”. A disciplina não pode ser identificada com uma instituição, como a polícia, nem por um aparelho, pois ela é um tipo de tecnologia que atravessa diversas instituições, um modo de exercer o poder compartilhado por diversas instituições. É preciso ressaltar que a polícia não foi a única instituição a fazer uso da fotografia como forma de aperfeiçoar o controle dos corpos a serem normatizados. Praticamente todas as instituições chamadas disciplinares por Foucault, como o manicômio, a escola e o exército, absorveram imediatamente a fotografia em suas práticas cotidianas, dando grande relevância à documentação fotográfica. O uso de autorretratos pela instituição policial é bastante antigo e data, possi- velmente, da mesma época do uso de fotografias. O cruzamento dessas duas técnicas resulta em um mecanismo bastante eficaz de vigilância e disciplina. A pesquisa no arquivo fotográfico da polícia é o primeiro passo em uma investigação criminal que possui testemunhas oculares capazes de fornecer um autorretrato do delinquente. Essas são estratégias evidentemente disciplinares, ao produzir o efeito do panóptico descrito por Foucault (1999, p. 167): automatização e desindividualização do poder, que pode ser exercido por qualquer um que faça funcionar a máquina. A dissociação do par “ver/ser visto” se dá a partir do momento em que qualquer um é uma teste- munha em potencial. Novamente podemos citar Benjamin como um dos primeiros a atentar para essa característica na modernidade. Ao mesmo tempo em que a massa pode ser o refúgio para o criminoso (que busca o anonimato em meio à multidão), cometer um delito em praça pública é bastante temerário. Seria esse o paradoxo condensado na literatura policial: “O 126 VELASCO, Nina. Fotografia digital, estética e sociedade de controle. Revista Galáxia, São Paulo, n. 16, p. 123-133, dez. 2008. conteúdo social primitivo do romance policial é a supressão dos vestígios do indivíduo na multidão da cidade grande” (BENJAMIN, 1989, p. 41). Deleuze faz uma ressalva, entretanto, para o fato de que a sociedade disciplinar descrita por Foucault estaria passando por alterações significativas na contemporaneidade. O próprio Foucault situa o apogeu desse diagrama de poder no início do século XX e percebe uma progressiva mutação das instituições disciplinares a partir de meados desse século, após a Segunda Guerra Mundial. Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. A família é um “interior”, em crise como qualquer ou- tro interior, escolar, profissional, etc. Os ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. (DELEUZE, 1992, p. 220) Para Deleuze, as instituições de confinamento, modelares, funcionavam como variáveis dependentes, em que sempre se começava do zero, operando pela lógica ana- lógica. A sociedade do controle, que estaria dando lugar à sociedade disciplinar, por sua vez, possui variações inseparáveis, modulações que operam por uma lógica numérica. Enquanto na sociedade disciplinar o indivíduo estava sempre recomeçando, ao passar de uma instituição de confinamento a outra, na sociedade de controle, nunca se termina nada. O autor identifica, ainda, para cada modo de poder (soberania, disciplina e con- trole) técnicas ou máquinas distintas. Os equipamentos da sociedade disciplinar seriam “máquinas energéticas”, ao passo que a sociedade do controle opera por máquinas informáticas e computadores. Será, então, que a polícia e a prisão, enquanto agenciamentos pertencentes ao diagrama disciplinar, estariam se tornando obsoletos? Não parece ser o caso. O próprio Deleuze admite que não se trata necessariamente de anunciar apenas o fim dos mecanis- mos de poder antecedentes, mas de pensar o que está em vias de ser implantado, mesmo que meios antigos retornem (ou nunca deixem de existir, acrescentamos) devidamente adaptados. No caso específico da instituição de punição disciplinar por excelência (a prisão), o autor identifica a busca de penas “substitutivas” e o uso de coleiras eletrônicas como novos mecanismos de poder na lógica do controle. Poderíamos acrescentar o uso crescente de câmeras de vigilância que pulverizam o olhar centralizado do antigo panóptico. Mesmo que a lógica que o rege tenha mudado pouco em sua essência, (nunca se têm certeza se realmente existe alguém na torre observando, assim como a câmera não necessariamente precisa estar ligada para que seu efeito seja conseguido), a diferença é clara. “Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos se tornaram ‘dividuais’, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou ‘bancos’” (DELEUZE, 1992, p. 222). 127VELASCO, Nina. Fotografia digital, estética e sociedade de controle. Revista Galáxia, São Paulo, n. 16, p. 123-133, dez. 2008. Outra questão a ser levantada diz respeito às consequências do uso da tecnologia digital para a produção de imagens fotográficas no aparato policial. Será que a fotografia numérica perde o seu caráter documental ao deixar de ser uma reprodução puramente mecânica de um referente? A fotografia digital teria a mesma credibilidade do que a analógica? Será que haveria uma diferença de grau ou de natureza entre uma imagem fotográfica analógica e uma fotografia numérica? Para começar, deveríamos nos perguntar se é possível uma ontologia da imagem fotográfica. Para alguns autores, como Roland Barthes, a fotografia se caracteriza por uma relação direta com o referente, sem o qual não pode existir (BARTHES, 1984, p. 116). É essa a ideia condensada no noema “isso foi”. Philippe Dubois (1993, p. 94), por sua vez, define a fotografia por seu caráter indicial; como todo índice, a fotografia procede de uma conexão física com seu referente: é constitutivamente um traço singular que atesta a exis- tência de seu objeto e o designa com o dedo por seu poder de extensão metonímica.1 O que insiste nessas e outras definições é a “impressão” produzida pela luz que emana do referente na superfície sensível de sais de prata, gerando a imagem automaticamente. A fotografia digital mantém uma parte desse processo (ótico), porém a morfogênese2 da imagem será definitivamente diversa. A captação da imagem pela câmera fotográfica digital ainda se dá através do modelo de projeção inerente à câmera escura, como a represen- tação pictórica do Renascimento, a fotografia e o cinema. A distinção entre a imagem pictórica renascentista, por exemplo, e a fotográfica seria o automatismo do processo químico. Nesse caso, não podemos deixar de levar em conta o processo algorítmico que caracteriza a produção da fotografia digital. Antonio Fatorelli (2003, p. 16-17), no entanto, chama atenção para o fato de que todas as tentativas de encontrar uma ontologia da imagem fotográfica, denominadas por ele de “essencialistas”, se estabelecem sempre em referência à natureza técnica do processo fotográfico. Isso porque somente assim seria possível encontrar uma definição que fosse capaz de ser genérica o suficiente para abarcar a heterogeneidade das imagens e das produções sociais reunidas sob o rótulo de “fotografia” ao longo de mais de um século de história. Não se trata apenas de uma fotografia, mas sempre de fotografias no plural, como ressalta André Rouillé (2005, p. 16). Só será possível entender “a fotografia”, portanto, como um conjunto de práticas e imagens que possui relação com o contexto histórico e a materialidade do real em que estão inseridas. A clássica análise feita por Pierre Bourdieu acerca do papel social da fotografia e de seu estatuto enquanto estética intermediária, entre popular e elitizada, Un art moyen, já foi alvo de diversas críticas e considerações, no campo tanto da sociologia 1 Índice entendido como uma das três categorias peircianas de signo, que se distingue dos demais por ter uma relação de conexão física com o referente, e não convencional como o símbolo, nem por analogia como o ícone. 2 Conceito criado por Edmond Couchot para diferenciar o regime das imagens representacionais (criadas através do modelo da projeção) das imagens virtuais (criadas por simulação). 128 VELASCO, Nina. Fotografia digital, estética e sociedade de controle. Revista Galáxia, São Paulo, n. 16, p. 123-133, dez. 2008. quanto da crítica de arte. A afirmação de que a fotografia se caracterizava como um instrumento de coesão familiar e de representação dessa coesão na classe média, privilegiando alguns temas rituais como “fotografáveis” (casamentos, viagens de lua de mel, batizados, aniversários etc.), nos parece bastante válida para o momento em que o texto foi escrito. Resta saber se a tecnologia digital não está proporcionando outras funções sociais para a imagem fotográfica na contemporaneidade. Certamente, algumas mudanças no próprio ato fotográfico se impõem: a imediatez entre o fazer e o ver a imagem; a possibilidade de “apagar”, “jogar fora”, desproduzir; o aumento exponencial da quantidade de imagens; a flexibilidade das condições de iluminação necessárias para a imagem inteligível; entre outras. Nunca tantas imagens fotográficas foram produzidas como na atualidade, após a popularização das câmeras de fotografia digital em todos os seus formatos e preços (sejam câmeras profissionais e sofisticadas, até as pequenas câmeras de bolso point and shot, ou ainda as embutidas em telefo- nes celulares). Essas imagens serão visualizadas e divulgadas de múltiplas maneiras, através de troca de e-mails, álbuns virtuais de fotografias, torpedos fotográficos, ou até mesmo em impressões de alta qualidade que poderão retornar ao velho porta- retratos na cômoda da sala. A princípio, o uso da fotografia digital pelas instituições disciplinares que buscam se adaptar à nova lógica do controle não mudou significativamente. Os retratos 3x4 continuam a ser o padrão para a identificação do indivíduo perante qualquer instituição (seja no nível macro, nas carteiras de identidade, por exemplo, seja no micro, como em academias de ginástica ou videolocadoras). Entretanto, se torna cada vez mais comum que essas imagens sejam produzidas, armazenadas e consultadas apenas digitalmente. O que poderia parecer apenas uma economia financeira em relação à tecnologia anterior, na verdade resulta em uma nova estratégia de poder. A utilização de banco de imagens digitais cria uma série de novas possibilidades para a investigação e o controle. Pode-se citar como exemplo a identificação de cadáveres queimados (maneira pela qual crimi- nosos buscavam esconder vestígios) através da comparação feita por computador entre imagens de diversas naturezas e origens: fotografias feita por amigos e parentes, raios X do arquivo do médico clínico da família, próteses dentárias etc. Outro exemplo de como a tecnologia digital pode aprimorar as técnicas de controle e vigilância é o programa PhotoComposer Plus, criado pelo professor Isnard Martins para a produção de retratos falados. Usando um banco de dados formado por milhares de foto- grafias digitais, o programa permite criar um retrato digital a partir de traços decompostos de rostos (a lista dos moldes inclui: olhos, nariz, boca, queixo, cabeça, cabelo, bigode, cavanhaque, sobrancelha, bolsa nos olhos, vinco na testa, vinco no rosto e óculos). Mes- mo sem uma formação específica, qualquer um é capaz de fazer um retrato falado em poucos minutos, escolhendo diretamente dentre as opções os moldes que lhe pareçam mais adequados em relação ao rosto que pretende retratar. 129VELASCO, Nina. Fotografia digital, estética e sociedade de controle. Revista Galáxia, São Paulo, n. 16, p. 123-133, dez. 2008. Aparentemente, pouca coisa muda em relação aos retratos falados tradicionais, a não ser o fato de economizar tempo e dinheiro. Além, é claro, da alta definição da imagem criada pelo programa. Na página da internet que anuncia o software, temos a seguinte descrição: “Técnica inédita para geração de moldes com aparência de fotografia, oferece fidelidade e facilidade ao entrevistador e entrevistado na geração de retratos falados pelo sistema Photocomposer Plus”. A imagem criada, de fato, parece possuir alto poder de precisão, transformando uma imagem que deveria ser apenas um esboço do rosto de um criminoso em uma prova documental irrefutável. Pelo menos é assim que se autopro- clama no slogan que segue a descrição do produto no site: “No registro da sua próxima ocorrência, registre também a face do crime”.3 É justamente a “aparência de fotografia” que faz com que o retrato gerado por esse programa seja atraente e inovador. A automação e a fidelidade são o grande diferencial dessa tecnologia, como fica claro na propaganda do tipo “antes e depois” apresentada no site. A comparação entre o retrato falado feito a lápis com a fotografia e o gerado por computador deixa evidente a discrepância entre a verossimilhança da imagem digital composta por fo- tografias e a imagem analógica do desenho. Assim como a fotografia foi logo absorvida pela instituição policial em seus primórdios, a sua versão digital, com suas novas potencialidades, tem sido largamente utilizada como tecnologia de vigilância e controle. Fotografia e estética Muito já foi dito sobre a importância da fotografia para a arte moderna, como nos clássicos ensaios sobre a fotografia e o cinema de Walter Benjamin. A discussão sobre fotografia era ou não um meio legítimo de produção estética marcou as primeiras déca- das após o surgimento dessa tecnologia. Benjamin foi o primeiro a apontar uma solução possível para essas questões: em vez de procurar saber se a fotografia era arte ou não, tornava-se necessário pensar a “arte como fotografia” (BENJAMIN, 1985, p. 104). Ou, colocado de outra maneira, décadas depois, por Susan Sontag (2004, p. 164): “mais im- portante do que a questão de ser ou não a fotografia uma arte é o fato de que ela anuncia (e cria) ambições novas para a arte”. Uma das principais características da arte moderna foi justamente o sentimento de uma forte relação entre arte e vida, fazendo com que a percepção estética perpassasse campos tão distintos quanto o design industrial, a política e a guerra. Benjamin alerta para as consequências da estetização da política, que converge necessariamente para a guerra. Isso porque “somente a guerra permite mobilizar em sua totalidade os meios técnicos do presente, preservando as atuais relações de produção” (BENJAMIN, 1985, p. 195). Sua crítica está voltada claramente ao projeto fascista, mas resvala em projetos da 3 Disponível em: . Acesso em: 25 jul. 2008. 130 VELASCO, Nina. Fotografia digital, estética e sociedade de controle. Revista Galáxia, São Paulo, n. 16, p. 123-133, dez. 2008. arte moderna, como o futurismo. Em seu manifesto, Marinetti declara: “Há vinte e sete anos, nós futuristas contestamos a afirmação de que a guerra é antiestética [...] Por isso, dizemos: [...] a guerra é bela” (MARINETTI apud BENJAMIN, 1985, p. 195). Paul Virilio (1994, p. 21), em seus estudos sobre as máquinas de visão, identifica uma relação promíscua entre algumas técnicas audiovisuais e as experiências bélicas. As ações guerreiras sempre tiveram que se organizar à distância, favorecendo o surgimento de uma linguagem deslocalizada proporcionada por aparatos técnicos como o telégrafo, a fotografia, o cinema e a infografia (imagens virtuais obtidas, percebidas e analisadas por computador). Na realidade, o que Virilio aponta é a natureza híbrida dessas técnicas. A invenção da fotografia só foi possível graças à importante herança artística da litografia e da câmera escura e à igualmente importante contribuição científica de instrumentos óticos astronômicos. A polêmica instaurada entre o caráter documental ou estético da fotografia retorna sempre que um desses dois lados é realçado (VIRILIO, 1994, p. 73). A tecnologia digital foi incorporada ao instrumental da arte desde o seu surgimento, em meados do século XX. O campo da chamada “Arte e tecnologia”, ou “artemídia”, como prefere Arlindo Machado, se consolidou como uma das principais vertentes da arte contemporânea. Naturalmente, a fotografia digital vem sendo largamente utilizada por muitos artistas em experiências das mais diversas. Interessa-nos aqui, entretanto, pensar de que maneira duas experiências específicas de artistas brasileiros tematizam ou proble- matizam a relação entre essa tecnologia e o poder na sociedade de controle. Tomemos como primeiro exemplo a Série Vulgo, da artista Rosângela Rennó. Para a obra, a artista escolheu doze imagens em um arquivo resultante de levantamento fotográfico que se estendeu entre 1920 e 1940, no setor de Psiquiatria e Criminologia da Penitenciária do Estado de São Paulo, todas representando redemoinhos de cabelo de detentos. Assim como a impressão digital, esses traços físicos são completamente únicos e servem, em sua origem, como identificação dos condenados e reconhecimento de possíveis fugitivos. Em nenhuma das imagens está visível o rosto do fotografado; a maioria focaliza apenas a nuca e o couro cabeludo dos modelos. A intervenção digital da artista se restringe (pelo menos aparentemente) a uma coloração vermelho-clara acrescentada justamente no centro do redemoinho do couro cabeludo de cada indivíduo. As imagens resultantes do tratamento digital da artista são, então, ampliadas em grande formato (165 cm x 115 cm), ganhando uma dimensão monumental ao serem expostas na galeria. Em uma primeira apreensão, o espectador se coloca diante de imagens enigmáticas e constrangedoras. São fotografias visivelmente deslocadas de seu lugar original, carregando marcas do contexto do qual faziam parte: na borda superior, algumas ainda possuem furos redondos regulares típicos de uma catalogação em arquivos; em cinco casos é possível distinguir séries de letras e números rabiscadas no negativo, que aparecem na foto im- pressa em suas margens, (W104 — fig. 1 — e P1337 à caneta; P104, 4250 e P777 com estilete, em todos os casos os números e letras aparecem invertidos); o mofo que mancha 131VELASCO, Nina. Fotografia digital, estética e sociedade de controle. Revista Galáxia, São Paulo, n. 16, p. 123-133, dez. 2008. algumas imagens não foi retirado no tratamento digital; os picotes da borda e os arranhões permanecem, indicando a passagem do tempo; em uma das imagens, uma mancha dá a impressão de que o topo da cabeça do detento foi carcomido, deixando-o incompleto. São vestígios, marcas, sinais que remetem a um tempo, a uma história. No entanto, o espectador não está diante de uma exposição oficial de um museu penitenciário. A sutil intervenção da cor, o tamanho exagerado da imagem e a relação que elas estabelecem com as demais obras expostas na galeria criam um deslocamento de sentido evidente. Não está em jogo a relação da imagem com seu referente, não se trata da represen- tação de indivíduos reais que um dia estiveram diante de uma câmera. Ao mesmo tempo, não se trata, tampouco, de imagens-objeto pertencentes ao discurso cientificista do estudo criminalista. Sem que a história dessas imagens seja renegada, um novo contexto discur- sivo nasce no deslocamento produzido pela artista. Um deslizamento que não apaga o sentido original, mas produz uma nova experiência discursiva. Outro exemplo a ser analisado é a instalação Autorretrato Falado, de Jair de Souza. Na exposição, o interator4 entrava em uma cabine onde, primeiramente, era fotografado com uma webcam e, em seguida, compunha seu autorretrato falado com o auxílio do software PhotoComposer Plus em apenas quinze minutos. Finalmente seu autorretrato e sua fotografia eram impressos e expostos em um painel composto por todos os resultados das experiências com a obra. Na página oficial da obra, o autor explica que sua inspiração surgiu ao ter contato com o livro italiano Wanted! sobre a história, a técnica e a estética da fotografia crimina- lística. Jair de Souza relata que durante anos esse livro o instigou, até ler uma matéria de jornal sobre o programa PhotoComposer Plus. Foi então que se tornou possível a criação da instalação. Um dos problemas a ser resolvido, entretanto, para que o efeito pretendido fosse possível, era uma maior identificação entre o público e as imagens criadas pelo programa. Para solucionar esse impasse, o projeto produziu um banco de dados inédito formado por mil rostos de brasileiros (moradores da cidade do Rio de Janeiro). Nas pala- vras do autor: “Isso representa uma verdadeira doação pública de milhares de elementos faciais”.5 Posteriormente, uma equipe formada por alunos da Escola Nacional de Belas Artes trabalhou essas imagens, resultando em cerca de 8 mil elementos faciais codificados e armazenados por grupo. Essas imagens tornaram o programa muito mais eficiente em reproduzir faces com características específicas da população nacional. Após a exposição, esse banco de imagens foi disponibilizado para a polícia carioca. A psicanalista e artista plástica Graça Pizá (BOUSSO; PIZÁ, 2007, p. 8-9) encontra um sentido possível para a instalação: “o auto-retrato falado, ao provocar esta procura da forma, da harmonia da proporção da face ideal, está ensinando a fazer arte”. O pressuposto 4 O termo “interator” vem sendo usado por diversos autores para dar conta da nova natureza do espectador nas obras de arte interativas. 5 Disponível em: . Acesso em: 30 jul. 2008. 132 VELASCO, Nina. Fotografia digital, estética e sociedade de controle. Revista Galáxia, São Paulo, n. 16, p. 123-133, dez. 2008. dessa afirmação, no entanto, nos parece equivocado. Harmonia e proporções ideais já não são há muito as preocupações do fazer artístico. Para a crítica Daniela Bousso (BOUS- SO; PIZÁ, 2007, p. 4-5), a obra coloca “em jogo a diferença entre o mítico e o ilusório, entre aquilo que somos e aquilo que supomos ser”. Isso devido ao fato de a imagem do autorretrato falado ser necessariamente “bem diferente de um instantâneo fotográfico ou de um flagrante”. Esse seria um dos méritos da obra. A autora parte da ideia de que um instantâneo fotográfico de fato é capaz de representar “aquilo que somos”, equivalendo a um flagrante. Esquece-se do fato de que a própria fotografia pode nos surpreender com “uma de suas facetas que você ainda desconhece” (outro mérito da obra, para Bousso). A imprensa em geral destacou o aspecto lúdico da instalação (a palavra “jogo” aparece em diversas matérias sobre a obra).6 De fato, o sucesso que a exposição obteve no CCBB do Rio de Janeiro, onde foi exposta, em grande parte se deveu ao caráter de entretenimento da instalação. O desafio de compor um autorretrato a partir de um quebra-cabeça de elementos faciais com um tempo limitado torna a experiência curiosa e divertida. A comparação do au- torretrato digital com a fotografia muitas vezes cria um resultado cômico ou constrangedor. Se a distinção entre diversão e arte se torna bastante tênue na contemporaneidade, poderíamos perguntar se a instalação possui um sentido utilitário, como muitas reporta- gens da grande imprensa nos levam a crer. Praticamente todas as matérias enfatizaram a informação de que o banco de dados resultante do projeto posteriormente seria doado à Polícia Civil do Rio de Janeiro. Muito se debate, desde o nascimento da Estética, se a arte deve ou não ter caráter interessado ou útil. Mesmo que a resposta mais uma vez não seja tão simples, em se tratando de arte contemporânea, é preciso ressaltar que nenhuma obra de arte pode ser eticamente isenta. Algumas ambiguidades se tornam evidentes nesse caso: quem doou sua imagem para o projeto o fez para uma obra artística ou trabalhou para a polícia? Os alunos de belas-artes trabalharam para um projeto estético ou policialesco? A resposta a essas questões são no mínimo contraditórias. O fato é que atualmente a polícia do Rio de Janeiro dispõe de uma ferramenta de vigilância e de um inédito banco de imagens, além da obra “Autorretrato falado” ser a principal peça publicitária do programa PhotoComposer Plus, tendo como objetivo a venda para outras polícias municipais do Brasil. Enquanto a obra de Rosangela Rennó faz um deslize no significado das fotografias, primeiramente pertencentes a uma instituição disciplinar (a polícia), ressaltando seu caráter estético e fazendo uma crítica à modalidade de poder em que estavam inseridas original- mente, o contrário parece acontecer na obra de Jair de Souza. Em “Autorretrato falado” as fotografias produzidas primeiramente dentro de um discurso essencialmente estético são, posteriormente, assumidas e integradas ao diagrama de poder contemporâneo, sem levantar nenhum questionamento sobre ele. 6 Um clipping sobre a exposição está disponível em: . 133VELASCO, Nina. 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