M A R C O Z E R O D E A N D R A D E ' Décio Pignatari ! 1 "A enfermeira — Sabes o que é medo? O hierofante — É o sentimento inaugural" (Oswald de Andrade — A Morta, 1.° quadro) Alguns t ê m a volúpia e a coragem do zero, do de onde se começa. Pau Brasil, Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade, Marco Zero. São os criadores originais, radicais, de uma linguagem nova, i r r e v e r s í v e l aos termos de u m regime anterior, ininteligível mesmo em meio a uma l i n - guagem p r é - e x i s t e n t e j á estratificada em código. Por isso mesmo que exige uma nova meta-linguagem crítica mais adequada à sua análise e a p r e e n s ã o . Quando o setor é o da literatura, e o país, Brasil; e quando o poeta-inventor se en- coraja a t é à audaciosa e surpreendente veleidade de pensar, propondo projetos gerais de criação e cultura, é quase certo que venha a ser isolado como u m corpo estranho ou u m en- clave exótico, que o organismo procura ignorar para poder suportar. E' o caso de J o s é Oswald de Sousa Andrade. É o caso do seu h o m ô n i m o do século passado, Joaquim de S o u s â n d r a d e , "exótico", i . é, internacional, abstruso demais para o bom an- damento evolutivo de nossa h i s t ó r i a l i t e r á r i a — e, pois, sim- plesmente excluído dela, como u m intruso a que o tempo, mecanicamente, se encarregou de fazer justiça, anulando-o. 1. Língua, linguagem; evolução, revolução Normalmente, e insensivelmente, a crítica costuma ana- lisar a obra l i t e r á r i a segundo o parti pris da l í n g u a . E assim, o maior elogio que se pode fazer a u m autor se refere ao seu domínio da língua, tal como Nietszche elogiava Heine (e se — 42 — elogiava). Deste ponto de vista, a obra de Oswald de Andra- de é tachada de " f r a g m e n t á r i a " , "desigual". T a m b é m assim são estudados os influxos, as s e m e l h a n ç a s , os paralelismos en- tre obras de dois ou mais escritores — o que pode conduzir a rompantes definitivos e bizarros, como o que me manifes- tou, h á alguns anos, o folclorista Alceu Maynard de A r a ú j o (e não sem certo desdém) "Oswald está em J u ó Bananerei" ( 1 ) . A graça da tirada é que ela poderia ser oswaldiana... Não que a abordagem dentro dessa faixa seja de somenos — espe- cialmente quando o estudioso se chama Haroldo de Campos ou Antônio C â n d i d o . O preciso cotejo de certos aspectos das obras de Oswald e Mário de Andrade, por exemplo, efetuado por Haroldo de Campos (2) põe em relevo s e m e l h a n ç a s evi- dentemente menos casuais do que os sobrenomes dos estuda- dos. E aí está: semelhanças, isto é, r e d u n d â n c i a s de dicção e mesmo de processos j á catalogados ou tradicionais (a paródia, por exemplo). Mas só o enfoque do ponto de vista da lingua- gem pode detectar as diferenças reais, objetivas — as dife- r e n ç a s que, no caso, estabelecem a informação nova, a o r i g i - nalidade de Oswald de Andrade. Em verdade, essa dualida- de de enfoque é mais, bem mais, do que uma comodidade ana- lítica: resulta necessariamente de uma profunda contradição gerada no bojo da arte c o n t e m p o r â n e a , em função da revo- lução industrial — mas não é o momento de nos determos neste tópico. Observe-se, apenas, que a linha que se pode t r a ç a r entre Macunaíma e Grande Sertão: Veredas, por exem- plo, é uma linha evolutiva que penetra sem maiores tropeços na "literatura", isto é, no sistema estante de incorporação e tradição l i t e r á r i a s . Mas a linha que vai da poesia de Oswald de Andrade, de seus manifestos e das Memórias Sentimentais de João Miramar à poesia concreta, é uma linha revolucioná- (1) — Pseudônimo de Alexandre Marcondes — "Eu iniciara em dialeto ítalo- paulista as "Cartas d'Abaxo Piques" que encontraram um sucessor em Juó Bananere" — Oswald de Andrade, Um homem sem profissão — memórias e confissões — vol. 1, Sob as ordens de mamãe — Livraria José Olympio Editora, 1954, pág. 106. (2) — Miramar e Macunaíma — Supl. Lit. "O Estado de S. Paulo", 27-7 e 3-8-1963. — 43 — ria, anti-"literatura". A primeira está do lado da l í n g u a ; a segunda, da linguagem. As a u t ê n t i c a s vanguardas a r t í s t i c a s c o n t e m p o r â n e a s t ê m - se caracterizado por sua "anti-arte", desde o "rien ou pres- que nu art", de M a l l a r m é , passando pelo movimento Dada e por Oswald de Andrade, a t é à poesia concreta, o atual mo- vimento da pop art norte-americana (setor das artes visuais) e o desenho industrial (forma do produto). Paulo Prado, pre- faciando os poemas pau-brasil, chegou a p e r c e b ê - l o : " A poesia "pau-brasil"' é o ôvo de Colombo ( ) . Deus nos l i v r e ( ) de todos os "ismos"? parasitas das idéias novas, e sobretudo das duas inimigas do verdadeiro sentimento p o é - tico — a Literatura e a Filosofia" . É s t e ser anti-arte está intimamente vinculado ao estabe- lecimento de uma linguagem, de um projeto geral — ou de um roteiro, para utilizar u m termo oswaldiano. Envolve, em ú l t i m a instância, um problema de comunicação, e de comu- nicação com a massa por via imediata e direta; em oposição, portanto, ao sistema vigente de a d m i n i s t r a ç ã o da cultura (com- plexo editorial, ensino, museus, exposições, concertos e t c ) , que é de natureza consumista, impondo os ditames de seus interesses às fontes de criação a r t í s t i c a . O quixotismo, em to- da vanguarda genuína, é um risco — se o fôr — n e c e s s á r i o . . . e a l i m e n t í c i o . 2. Marginalização pelo realismo: o poeta iminente Oswald de Andrade, antropófago p r a g m á t i c o e internacio- nal, nada tem a ver com o suposto problema de forjar uma "língua brasileira" — p r e o c u p a ç ã o de M á r i o de Andrade e ou- tros. Ê l e não utiliza a falação altissonante (Machado Penum- bra) ou os malapropismos (Minão da Silva), ou os documen- tos dos primeiros cronistas como "recursos" para efeitos lite- r á r i o s — mas simplesmente os utiliza e/ou transcreve. Sem mais nada. Sem ilações. Exposição do sentido puro mediante a inocência construtiva, conforme diz no "Manifesto da Poesia Pau Brasil" (3): (3) — Revista do Livro — Min. Ed. e Cult., n.° 16 — dez. 1959. — 44 — " A poesia existe nos fatos. ( ) O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Bar- bosa: uma cartola na S e n e g â m b i a . Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de j ó q u e i . Odaliscas no Catumbi. Falar difícil. ( ) A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos". Ezra Pound afivelava m á s c a r a s , personae: Guido Caval- cânti, P r o p é r c i o , Arnaut Daniel. Fernando Pessoa, h e t e r ô n i - mos. As p e r s o n a e - h e t e r ô n i m o s de Oswald: Machado Penum- bra, Minão da Silva, Rui Barbosa, o canibal, qualquer autor de u m "secretário de amantes" qualquer. Assim como, pela Teoria da Informação e da Comunicação, todo ato criativo ou decisório se faz por probabilidade e seleção — chance & choice — o processo criativo de Oswald consiste basicamente num processo de seleção do j á existente, no momento ou na m e m ó - r i a . Recorte, colagem, montagem. A n t i - l i t e r à r i a m e n t e . O pro- cesso d o c u m e n t á r i o . "No jornal anda todo o presente". Mário de Andrade não entendeu a profundidade e/ou n ã o quis comprometer-se com a radicalidade de Oswald de Andra- de, embora temesse e julgasse imitá-lo em Macunaíma, onde, de fato, a d i l u i u e distorceu, com sua " l í n g u a brasileira", uma certa moral oportunista e "sem c a r á t e r " , a aplicação decora- tiva de motivos i n d í g e n a s e l í n g u a i n d í g e n a , para efeitos de uma cosmologia mítico-folclórico-moderna. Bem vistas as coi- sas, juntou suas águas a uma diluição anterior: a do grupo " A n t a " . Uma corrente de incompreensões e equívocos t e r r í - veis, que acabou desaguando na moral "bom tom" do "homem cordial" e submergindo o projeto oswaldiano original, a pon- to de êle p r ó p r i o , Oswald de Andrade, acabar quase por i m i - tar seus pseudo-imitadores, em Marco Zero: seu verdadeiro marco zero, êle o chantara vinte anos antes! De fato, na d é - cada de 30, quando desceram os "Búfalos do Nordeste trazen- do nos cornos a q u e s t ã o social", abandona a "pesquisa alta", esmagado por "uma espécie de sentimento de culpa" — con- forme seu depoimento a Heráclio Salles, no ano de sua morte — 45 — ( 4 ) . Na entrevista, usa o " n ó s " , incluindo M á r i o de Andrade, de quem declara ter nascido, e dizendo-se inferior, como poe- ta, aos que se lhe seguiram... O propalado "indianismo" ou "neo-indianismo" de Os- wald nada tem de "indianista". O selvagem significou para ê l e o que Confúcio significou para Pound: a visão de uma no- va moral, não-cristã, e de uma nova linguagem, direta, ideo- g r â m i c a . Nunca esteve interessado no aproveitamento da lín- gua ou da literatura t u p i para efeitos estilísticos ou formais: só se lhe conhece a t r a n s c r i ç ã o de uma breve p e ç a t u p i , no Manifesto antropófago. Quem, como Oswald de Andrade, n ã o distingue entre v i - ver e criar, vive e cria em estado de iminência, em estado de réplica sobrevivencial a desafios que considera fatais. Como u m organismo que cria e se cria para poder viver; que é obri- gado a pensar e pensar-se, para não perecer. Não come r o t i - neiramente: seu roteiro é o já-e-aqui — devora. Organismo em pânico permanente, agressivo contra o habitat do homem histórico — a sociedade. Como diz A n t ô n i o Cândido, no "Pre- fácio i n ú t i l " às m e m ó r i a s oswaldianas (5): "Um escritor que fêz da vida romance e poesia, e íêz do romance e da poesia um apêndice da vida, publica as suas m e m ó r i a s . Vida ou romance? Ambos, certamente, pois em Oswald de Andrade nunca estiveram separados, e a única maneira correta de entender a sua vida, a sua obra e estas Memórias, é considerá-los deste modo. ( ) Por isto, as Memórias esclarecem a aventura lírica de Oswald de Andrade, gordo Quixote procurando conformar a rea- lidade do sonho. Daí a rebeldia dos que não aceitam a ordenação m é d i a dos atos pela sociedade, que criou em torno dele, como r e p r e s á l i a , a aura do maluco atirado contra tudo, contra todos. Visto de dentro, p o r é m , como o vemos neste l i v r o , é antes o menino inconsolável em fa- ce do mundo, onde não cresceu segundo a dimensão do i m a g i n á r i o . De um i m a g i n á r i o que fosse o modelo real das coisas". (4) — Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 24-1-1954. (5) — Op. cit. — 46 — O poeta iminente Oswald de Andrade, por isso mesmo, nunca se mostrou capaz de carreira l i t e r á r i a , nunca se mos- t r o u capaz de programar o êxito cumulativamente, por acres- centamento de obra — a ponto de despertar a suspeita de ama- dorismo ("Tem o t ú m u l o de Tutan-Kamen sob as areias dum aparente amadorismo" — Ribeiro Couto). Este amadorismo é o estigma da marginalização, fruto "poético" forçoso da des- cida às raízes, do realismo crítico-criativo. A posição inaugu- ral é uma posição crítica, implica em desvendamento, revela- ção, invenção e em violenta desidentificação (desalienação) com o sistema vigente — e abrindo-se para a ação de m u d a n ç a do estado de coisas. A d e n ú n c i a de u m sistema artístico vem de par com a d e n ú n c i a da infra-estrutura social — e a desiden- tificação ideológica ocorre com a mesma brutalidade. Em Os- wald de Andrade, ambos os "desencostos" se deram em luta acesa entre si e constituem o cerne de sua vida e de sua obra. Este fenômeno ajuda a compreender o rictus clownesco que vinca tanto uma como outra: quando quer falar " s é r i o " , Os- w a l d alça o tom do discurso, entremostrando o fácies de u m Machado Penumbra-Rui Barbosa sem alegria. Nisto, foi cruel- mente mal entendido por Carlos Drummond de Andrade — não falemos de outros — numa croniqueta-elogio f ú n e b r e , que lá está em Fala, amendoeira. Drummond, afinal, se desenvolveu num processo bastante semelhante, como tentei mostrar em S i - tuação atual da poesia no Brasil (relatório-tese apresentado ao I I Congresso de Crítica e História L i t e r á r i a , Assis, 1961) ( 6 ) ; sempre teve vias de acesso ao sistema e, por ocasião da morte de Oswald, se encontrava no ponto mais lamentavelmente bai- xo de sua capacidade criativa. Na década de 30, a tentativa de Oswald de Andrade de co- dificar a antropofagia em termos marxistas redundou em fra- casso (não sem brilho — veja-se o seu teatro). A desidentifi- cação com o stalinismo n ã o lhe foi menos dolorosa, no ime- diato a p ó s - g u e r r a . Em O homem e o cavalo, de 1934, pela boca do personagem-cineasta Eisenstein, julgou ter dado cabo da ma- (6) — Anais — Fac. Fil. Ciências e Letras de Assis, 1963, e revista Invenção, n.° 1, lº trimestre 1962, São Paulo. — 47 — gia; durante o processo de auto-desestalinização — mais u m au- to-da-fé purificador de que foi p r ó d i g a a sua e x i s t ê n c i a — a ela retornou, sob a d e n o m i n a ç ã o de "sentimento órfico", que aca- bou por identificar n ã o tanto com o absurdo existencial, mas com o ú l t i m o r e d u t o - n ú c l e o insolúvel, inexplicável, intransfe- rível, i n t r o d u z í v e l , irracional, do homem. Fiel a si mesmo, po- r é m , ainda empreendeu uma ú l t i m a cr . algada quixotesc, apon- tando, com a lança t r ê m u l a , para uma constelação de utopias. 3. Brevíssima montagem D A D A "Je ne veux m ê m e pas savoir s'il y a eu des hommes avant m o i " — Descartes (7) "un soir, trois autos s ' a r r ê t è r e n t devant le cabaret. Inva- sion inattendue: une douzaine de jeunes gens a c c o m p a g n é s de quelques professeurs viennois é t a i e n t v é n u s nous é t u d i e r . Carnets en main, ces disciples de Jung et de Adler p r i r e n t des notes sur notre cas: Étions-nous des schizoïdes ou bien nous fichions-nous de leur tête? La soirée t e r m i n é e , nous nous as- sîmes à boire un verre et à leur exposer notre credo, notre foi dans l'instinct c r é a t e u r en un art dire te, magique, organi- que comme celui des p r i m i t i f s et des enfants. Ils se j e t è r e n t des regards singuliers, puis, saisis de peur, mirent bas leur crayons et prirent la fuite". (8) "Die Kunst ist tot Es lebe die neue Maschinenkunst Tatlins" (9) ( " A arte morreu V i v a a nova arte maquinal de T a t l i n " ) "le cubisme construit une c a t h é d r a l e en p â t é de foie ar- tistique Que fait DADA? (7) — Dada 3, Zurique, 1918 — in DADA — monografia de um movimento, Wil- ly Verkauf — Arthur Niggli Verlag — Suíça, 1957 — edição trilingue (alemão, inglês, francês). (8) — Willy Verkauf, op. cit. — versão francesa de Alegra Sotiapira. (9) — Id. ibd. — foto onde aparecem George Grosz e John Heartfield segurando um cartaz — Berlim, 1920. — 48 — l'expressionnisme empoisonne les sardines artistiques Que fait DADA? le s i m u l t a n é i s m e en est encore à sa p r e m i è r e communion artistique Que fait D A D A ? le futurisme veut monter dans un lyrisme-ascenseur ar- tistique Que fait DADA? l'unanimisme embrasse le toutisme et p ê c h e à la ligne artistique Que fait DADA? le néo-classicisme d é c o u v r e les bienfaits de l'art artistique Que fait DADA? le paroxysme fait le trust de tous les fromages artistiques Que fait D A D A ? l'ultraisme recommende la m é l a n g e de 7 choses artistiques Que fait DADA? le créacionisme le vorticisme l'imagisme proposent aussi quelques recettes artistiques Que fait DADA? 50 francs de r é c o m p e n s e à celui qui trouve le moyen de nous expliquer DADA ( ) Méfiez-vous des contrefaçons! Les imitateurs de D A D A veulent vous p r é s e n t e r D A D A sous une forme artistique q u ' i l n'a jamais eu ( ) l'DIOTLE PURE r é c l a m é e par D A D A " (10) 4. O cadáver renitente "Horácio — Insensato! Poeta! G u a r d a r - t e - ã o para sempre os dentes fechados da morte!" ( A morta — f i m do 2.° quadro) (10) — Id. ibd. — 49 — Descobrir a mensagem original, primeira, de Oswald de Andrade, u m meio ao r u í d o , ao entulho e ao silêncio com que tentam sufocá-la, n ã o é apenas tarefa de paciência justiceira. Para tanto, é preciso uma identidade de propósitos e u m en- tendimento do papel significante das pontas de l a n ç a da arte — as vanguardas — que constituem, em nossa época, uma his- t ó r i a l i t e r á r i a paralela à h i s t ó r i a oficial. A linhagem da l i n - guagem. Tem-se uma idéia clara da situação oswaldiana quan- do se v ê que as suas obras não são reeditadas; a ú l t i m a obra que dele se editou — o volume de m e m ó r i a s — data de h á 10 anos. E ainda a questão dos inéditos, em particular de seu Diá- rio Confessional. Toda vez que vem à tona, o c a d á v e r de Oswald de Andra- de assusta. E sempre aparece u m p r á t i c o disposto a conjugar o cachopo minaz. Recentemente, num artigo equívoco — a co- m e ç a r pelo título: "O neo-indianismo de Oswald de Andrade" — Cassiano Ricardo induziu-se nos erros de praxe. Salvam-no, talvez, a l e m b r a n ç a de u m fato e uma o b s e r v a ç ã o . O fato, pa- lavras textuais do articulista: "o grupo Anta se opôs ao Pau Brasil alegando que em- bora Oswald preconizasse uma "poesia de e x p o r t a ç ã o " , o seu experimento — sob o aspecto formal (ou informal?) — não estava sendo mais que a " i m p o r t a ç ã o " do d a d a í s m o f r a n c ê s . . . " (11) Ora, acontece que, rigorosamente falando, n ã o existe "da- d a í s m o " . O que existe é Dada, tabula rasa de ismos, de v a l i - dade internacional. Nasceu na Suíça antes da I Guerra M u n - dial e fêz mancha de óleo no a p ó s - g u e r r a : F r a n ç a , Alemanha, Estados U n i d o s . . . e Brasil. Ao c o n t r á r i o do que se possa pen- sar, quando se leva em conta a p r e c e d ê n c i a da Paulicéia des- vairada, a verdade é que Oswald de Andrade captara a infor- m a ç ã o certa, a compreendera, assimilara e transfundira para nosso roteiro e uso. Como super-arma de "uma civilização o r i - ginal, em estado de legítima defesa" (observação de Cassiano Ricardo). Sim, foi Oswald, n ã o foi outro: nem M á r i o de A n - (11) — Supl. Lit. "O Estado de S. Paulo" — 21-12-1968. — 50 — drade, nem outros menos sapientes, como os do grupo Anta, que soltaram o manifesto Nhengaçu verde amarelo (12), con- trafação tupi-nacionalista dos manifestos oswaldianos, que re- dundou n u m "patriotismo a-priori", por mais que o negasse P l í n i o Salgado, j á em 1926 (13). Ao se declararem contra os ismos, os grupos Anta e Verde-amarelo decerto n ã o sabiam que estavam importando e imitando Dada, súcubo incômodo e des- conhecido que acabou degenerando em discurso patafísico: "E' velho refrão, desde o dadaísmo, que a arte cor- responde a um estado de e s p í r i t o . Acredito que nós, bra- sileiros, temos o nosso estado de espírito, que n ã o é o da- d a í s t a " . (14) Resultado: o verde-amarelo v i r o u verde-amarelismo... Os- wald não gerou nenhum ismo. N ã o se fale sequer em "con- cretismo": o que existe é poesia concreta, literatura concreta. Quando Cassiano Ricardo declara, no artigo citado, que o g r u - po Anta se opôs ao Pau-brasil "mais pelo prazer do debate do que por antagonismo", sente-se, quem sabe, movido por uma vontade de c o m p r e e n s ã o e apaziguamento — mas que n ã o con- diz com os fatos. O antagonismo era evidente. Ambas as po- sições predispunham e incitavam à ação: l i t e r á r i a , cultural, ideológica, política. Ambas representavam a tomada de cons- ciência do pragmatismo brasileiro, cuja bifurcação f o i tanto mais clara quanto i n e v i t á v e l : de Oswald, nasce o pragmatismo brasileiro de esquerda; da Anta, o de direita. M á r i o de A n - drade: no meio, a v i r t u d e . 5. Pobre obra Depois de S o u s â n d r a d e , revolução clandestina, tivemos em nossa literatura a revolução manifesta (depois diluída e aba- fada) de Oswald de Andrade. Dois roteiros-manifestos, dois volumes-cadernos de poemas e u m l i v r i n h o de prosa consubs- tanciam, basicamente, a r e v o l u ç ã o . S e q ü e l a s , auto-diluições, (12) — Revista do Livro — n.° citado. (13) — Antologia do Ensaio Paulista, José Aderaldo Castelo — Conselho Esta- dual de Cultura, Comissão de Literatura — São Paulo, pág. 16S. (14) — Id. ibd., pág. 160. — 51 — recuperações parciais, desforços, contradições, confusão de ca- minhos e desalento se dispersam nas demais. 1912: Oswald na Europa, às v é s p e r a s do início do movimen- to Dada e do primeiro conflito mundial. O que mais de perto tocou Oswald n ã o foi isto nem aquilo da literatura: foi o cubis- mo — e isto é fundamental para entender-se a prosa-lingua- gem de Memórias sentimentais de João Miramar. A guerra mundial revoluciona por dentro a neutralidade suíça de Dada inicial, conferindo-lhe os c o n t e ú d o s violentos da rebeldia aber- ta contra a "arte", os chamados valores espirituais eram zero face à irracionalidade material; a arte, o bôbo-da-côrte. o bo- neco-de-molas de uma civilização voraz e idiota. Dada parte para o centro internacional de Paris, para o epicentro dos grandes choques e cataclismas. Em 1923, u m ano após a Se- mana de A r t e Moderna e o l a n ç a m e n t o da Paulicéia Desvairada, Oswald volta à Europa, à cata de novos v í v e r e s e confrontos (trouxera futurismo e cubismo na primeira viagem) e trava conhecimento com Dada — n ã o se sabe como, ao certo, por meio de que contactos e leituras. T a m b é m não se sabe se bo- tou os olhos no Ulysses, de Joyce, publicado em Paris, em 1922. O certo é que na Riviera italiana, em 1923, escreveu o seu João Miramar, prosa sintética inovadora inclusive em re- lação ao p r ó p r i o Ulysses, naquilo que tem de pura estrutura descritiva aberta, sem alusões e arcaísmos, naquilo que tem de estatística da m e m ó r i a , onde as l e m b r a n ç a s selecionadas são fragmentos montados que se transitavam uns aos outros, coisas e fatos acionando diretamente outras coisas e fatos, nu- ma nova d i n â m i c a da p e r c e p ç ã o e da l e m b r a n ç a — prosa cubis- ta que somente a t r a v é s de uma mirada superficial pode ser confundida com uma certa prosa surrealista: "Fordes quilometraram açafrões de ocaso" (15) "Vinham motivos como gafanhotos para eu e Célia comermos amoras em moitas de bocas" (16) (15) — Memórias Sentimentaes de João Miramar — edição do autor, São Paulo. 1924, pág. 44. (16) — Id. ib., pág. 45. — 52 — "Rosas vermelhas buscaram Madama Rocambola na gase cautelosa do B r á s " (17) "Levaram-me para uma casa velha que fazia doces e nos mudamos para a sala do quintal onde tinha uma f i - gueira na janela" (18) Mário de Andrade, "o homem que sabia j a v a n ê s " do mo- dernismo — deitou falação para explicar a "simultaneidade" (19), citando um magote de autores s e c u n d á r i o s de suporte, elevando Luís Aranha a paradigma " s i m u l t a n e í s t a " , metendo tudo no saco do subconsciente, amarrando-o com u m precon- ceito musical acadêmico — e i n j u s t i ç a n d o clamorosamente a Oswald de Andrade. Mário de Andrade era o homem dos dis- tinguos embasbacantes: simultaneidade/polifonia, simultaneida- de real/simultaneidade psicológica. Expressionista que sempre foi, tudo, para êle, se resolvia em psicologia. Ignorava as ar- tes visuais, e descartava o futurismo, e passava por cima da poe- sia espacial (sem falar na t é c n i c a a f i m de evitar tropeços à sua discreteação: "a não ser m ú s i c a e mímica, nenhuma outra arte realiza realmente a simultaneidade". Sobre o cubismo — referindo-se à t e n d ê n c i a de despojamento que, segundo êle, estaria caracterizando a decoração teatral: " A influência cubis- ta — a mais torta tolice a que poderia atingir uma o r i e n t a ç ã o direita". U m polígrafo, u m p o l í g r a f o ! . . . A poesia de Oswald de Andrade é a poesia da posse con- tra a propriedade. Poesia por contacto direto. Sem explica- ções, sem andaimes, sem p r e â m b u l o s ou p r e n ú n c i o s , sem poeti- zações. Com versos que não eram versos. Poesia em versos pondo em crise o verso: u m prosaísmo deliberado que é uma s á t i r a c o n t í n u a ao p r ó p r i o verso, l i v r e ou preso. Aliás, nunca se colocou tal problema, de verso l i v r e ou metrificado. Sua poesia é um realismo auto-expressivo. Alguns poemas são sim- ples transcrições de a n ú n c i o s da é p o c a . Destacados do contex- (17) — Id. ibd., pág. 68. (18) — Id. ibd., pág. 14. (19) — Antologia do Ensaio Paulista. Observação. Não ocorreu a Mário de An- drade que o trocadilho e a palavra-montagem constituem realmente fenô- menos de simultaneidade na palavra escrita e falada, correspondentes ao acorde musical. — 53 — to, os textos adquirem novo c o n t e ú d o : de lugares-comuns se transformam em lugares-incomuns. Exatamente como acontece com a atual pop art norte-americana ( t a m b é m batizada de "neo- dadaista"...) — o primeiro movimento de vanguarda a u t ê n t i c o dos Estados Unidos para o mundo: t a m b é m uma rebelião con- tra a cultura e u r o p é i a . Uma arte a n t r o p ó f a g a . Lembrar que a capa da primeira edição da Poesia Pau Brasil, 1925, trazia a r e p r o d u ç ã o de uma bandeira brasileira, sem mais nada. Jas- per Johns, pop-artist pinta bandeiras norte-americanas, tais quais. 40 anos depois de Oswald. Algumas manifestações da pop art são chamadas de "happenings": na hora se faz, na ho- ra existe como arte — e f i m . Claes Oldenburg reproduz, em papier mâché, sorvetes e bolos — fac-símiles únicos de coisas produzidas em quantidade. Somos concretistas, diz Oswald, em seu manifesto canibal. A coisa, n ã o a idéia da coisa. O f i m da arte de r e p r e s e n t a ç ã o , o começo da arte de signos. Realis- mo sem tema ou t e m á t i c a realista: apenas transplante do exis- tente. Os ready-made, de Man Ray, na época Dada. A poesia de Oswald de Andrade é uma poesia ready-made. Faz e s t a t í s - tica, copia nomes de casas comerciais — e eis o poema Nova Iguaçu. J á é a teoria do texto, que Max Bense e os poetas con- cretas desenvolveram. O sentido puro, a que se referia Oswald, e que em Dada era a idiotie pure. Textos — n ã o l i t e r a t u r a . O cartão postal como arte. O clichê do clichê como arte. O pro- blema do kitsch, a chamada pseudo-arte (como a chamou o Prof. Anatol Rosenfeld, que inaugurou a q u e s t ã o entre nós) (20), a chamada arte de mau gosto." Abrimos caminho para uma coisa que n ã o existia a t é e n t ã o entre n ó s : uma literatura de pobres. Nunca tivemos uma literatura de pobres" (21). Pop art: arte popular, arte de estalo, "espocarte". Os poemas de Oswald de Andrade, da década de 20, formam u m e x e m p l á - rio d i d á t i c o . Didática que, depois, Drummond, J o ã o Cabral de Melo Neto e os poetas concretos da primeira fase (22) pas- saram a limpo, fenomenològicamente, com poemas sobre o (20) — No reino da pseudo-arte — Supl. Lit. "O Estado de S. Paulo", 31-3-1962. (21) — Depoimento citado a Heráclio Salles. (22) — Noigandres 3 — poesia concreta — edição dos autores, S. Paulo, 1956. — 54 — poema. Apenas, os dois primeiros não conseguiram superar essa fase, nem o verso, nem o discurso. A poesia concreta cor- tou as amarras em 1958 (23), retomou Oswald e deu mais uns passos adiante, rumo a u m novo salto radical. Suas mais recentes realizações — a serem dadas a público ainda este ano — envolvem a criação de novos alfabetos, novos léxicos, nova sintaxe e novos c o n t e ú d o s . 6. Antropofagia: confrontos curiosos Jacopetti, em seu filme d o c u m e n t á r i o "Mondo cane", mos- tra o sucedido numa ilha de aborígenes, quando lá se instalou um moderno campo de a v i a ç ã o . Os selvagens iam ver. No alto de um acolina, c o n s t r u í r a m u m simulacro de avião e de pis- ta de pouso: para que os deuses se dessem conta da injustiça e do engano e ali fizessem aterrissar a estranha ave que, por direito de terra, lhes pertencia — e n ã o aos brancos. A antro- pofagia de Oswald de Andrade teve antecessores em Dada — e u m sucessor em M a r i n e t t i . Para u m espetáculo Dada, Paris, 1920, o pintor Francis Picabia preparou o texto e a música de u m "Manifeste cannibale dans l ' o b s c u r i t é " , lido por A n d r é Bre- ton, acompanhado ao piano por M l l e . Marguerite Buffet (24). Em II Club dei Simpatici, de 1931 (Hodierna Editrice, Paler- mo), M a r i n e t t i p r o p õ e uma nova moral canibal. O magistra- do Paranza e outros membros do clube propugnador dirigem- se, de hidroavião, a uma ilha canibal. Depois de uma identi- ficação geral de pontos de vista, os selvagens totemizam o apa- relho, devorando-o: (o canibal Curreno:) —Stiamo allargando alie macchine europee la nostra morale a n t r o p ó f a g a . A d d e n t e r ò , dopo le ali, i l carbura- tore che, spero, t r a s m e t t e r à la sua capacita vorace al mio stomaco imperfeito. Tokkamatok lavorava coi denti nella carlinga, s t r i l - lando: (23) — Noigandres 4 — poesia concreta — edição dos autores, S. Paulo, 1958. (24) — Willy Verkauf — op. cit. — 55 — — Cosa ne dici, Paranza saggissimo, della mia idea di mangiare lo stabilizzatore ser equilibrare i l mio corpo che oscilla troppo quando bevo sangue fermentato?" (pág. 164). S o u s â n d r a d e , Oswald de Andrade, o grande pintor V o l p i e os poetas concretos n ã o ficaram esperando pelo beneplácito dos deuses da cultura mundial para produzir obras originais destinadas ao confronto e ao julgamento internacional: deglu- t i r a m o avião, anticolonialmente. 7. Poesia de exportação Está-se cumprindo o roteiro de Oswald de Andrade. N ã o mais como produto exótico-subsidiário, mas como idéia atuan- te e influente, a poesia concreta brasileira e s t á nas revistas l i t e r á r i a s suíças, a l e m ã s , francesas, japonesas, escocesas, por- tuguesas, espanholas, checas. N ã o falemos em valor — e sim na comprovação da validez do roteiro oswaldiano. São Paulo, maio de 1964.